Saiu no site G1′
Na região de Ribeirão Preto, mulher morta em sítio por se negar a fazer almoço para o marido vivia rotina de humilhação, dizem familiares.
Três a cada dez mulheres no Brasil já sofreram algum tipo de violência doméstica, segundo informações do DataSenado, em uma pesquisa divulgada no fim de 2023 em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV). Entre as vítimas consultadas, as agressões de caráter psicológico predominam e foram mencionadas por 89% delas, superando modalidades como a física, a moral e a patrimonial (veja mais em gráfico abaixo).
Controlar roupas e amizades, humilhar a pessoa na frente dos outros e chantagear são algumas das situações mais comuns que, segundo especialistas, caracterizam esse tipo de conduta, que têm previsão legal para proteção das vítimas e que, se não combatida a tempo, pode evoluir para outras formas de agressão.
Familiares de uma mulher recentemente assassinada na zona rural de Santo Antônio da Alegria, no interior de São Paulo, por não fazer o almoço para o marido, segundo alegações do próprio acusado, relatam que a vítima já pensava em se separar porque vivia uma rotina de humilhações constantes, mas nunca teve coragem de procurar as autoridades.
“O crime de violência psicológica é um crime que é uma extensão da ameaça. No caso, se lê como uma ameaça qualificada, justamente porque uma das condutas pode ser a ameaça”, afirma Gabriela Rodrigues, advogada criminalista e diretora adjunta da 12ª Subseção da Ordem dos Advogados (OAB) de Ribeirão Preto (SP).
Nos tópicos a seguir, entenda o que é e como se manifesta a violência psicológica e como a legislação brasileira protege as vítimas.
- O que é violência psicológica e como ela se manifesta?
- Quais os riscos da violência psicológica?
- Por que as vítimas nem sempre recorrem às autoridades?
- Como a legislação brasileira trata da violência psicológica?
- O que as vítimas devem fazer para se proteger?
1.O que é violência psicológica e como ela se manifesta?
Segundo a diretora adjunta da OAB, a violência psicológica se caracteriza como qualquer conduta que cause danos emocionais, prejudique o desenvolvimento e tenha o objetivo de degradar, controlar ações e comportamentos, crenças e decisões. Ela acontece, via de regra, por meio das seguintes situações:
- ameaça
- constrangimento
- humilhação
- manipulação
- isolamento
- vigilância constante
- perseguição
- insulto
- chantagem
- violação da intimidade
- ridicularização
- exploração
- limitação do direito de ir e vir
- qualquer meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
“A violência psicológica é assim. É um cupim de corrói a dignidade de qualquer mulher”, afirma Gabriela.
Segundo a advogada, essas práticas ocorrem em situações rotineiras, por vezes naturalizadas pelas mulheres, do controle da roupa que ela vai usar ao isolamento da vítima com relação a parentes e amigos.
“Essas são algumas formas de como a violência psicológica se manifesta, mas é certo que, na maior parte dos casos, nunca haverá apenas um evento. Ao contrário do que é corriqueiro em uma de uma lesão corporal, a violência psicológica é um crime em que a vítima tende a sofrer reiteradas vezes a partir de condutas diferentes, mas que visam diminuir a mulher.”
2.Quais os riscos da violência psicológica?
Um quadro de violência psicológica constante pode ser perigoso para as mulheres e, em muitos casos, resulta em prejuízos à saúde mental.
“Os danos gerados são catastróficos, pois a violência atua no âmago da mulher, destrói a dignidade, a auto-imagem e a esperança. A violência psicológica tira a vitalidade da mulher e a desassocia das suas vontades e sonhos”, afirma Gabriela.
Isso, sem contar quando as constantes situações que evoluem para ameaças e agressões físicas ou mesmo para crimes mais graves. Iniciativas de diferentes instituições, como um formulário de avaliação de risco do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ajudam a avaliar a gravidade das condutas.
“Eu diria que é quase uma condição. A violência, em aspectos gerais, é sinalizada pela violência psicológica, progredindo para violências físicas, chegando, infelizmente, em vários casos, ao feminicídio. Acontece que, embora a teoria seja muito redonda, não é fácil a identificação, pois há uma naturalização muito grande de comportamentos violentos e agressivos que são realizados por homens e mulheres.”
3.Por que as vítimas nem sempre recorrem às autoridades?
Para a advogada criminalista, o principal motivo para que grande parte das vítimas não procure ajuda da polícia e de outras instituições é amenizar ou naturalizar as situações em que sofre violência psicológica.
“A mulher muitas vezes sofre a violência, mas ela acha que aquela humilhação, aquele isolamento, aquela chantagem, aquela humilhação, aquela degradação fazem parte do casamento, irá passar ou que seja natural vivenciar aquilo”, diz.
Na avaliação dela, muitas ainda têm dificuldade de associar o comportamento do parceiro a condutas abusivas e, quando isso acontece, acabam desmotivadas por questões paralelas, como família, julgamentos sociais e a própria integridade.
“Mesmo identificando, a mulher se depara com outros empecilhos, como o medo do parceiro, o medo do que irá ocorrer com os filhos, o medo de ser julgada pelo próprio judiciário. O caminho que leva a mulher a denunciar é um caminho bastante desafiador antes de ser libertador.”
4.Como a legislação brasileira trata da violência psicológica?
A caracterização da violência psicológica está evidente na Lei Maria da Penha, de número 11.342, sancionada em 2006, e um modelo internacional de defesa dos direitos das mulheres. Desde então, o código trata da questão quando a coloca entre as diversas modalidades de violência doméstica e familiar, assim descritas no artigo 7.
Em 2021, a legislação passou a tratar as condutas associadas a ela como criminosas. Com isso, segundo Gabriela,a violência psicológica passou a ser descrita no Código Penal.
No mesmo trecho, a legislação prevê pena de seis meses a dois anos de prisão, além de multa para quem comete esse crime. Além disso, a Lei Maria da Penha estabelece que não se pode realizar nenhum tipo de acordo com o agressor que estava em um relacionamento com a vítima, ainda que seja um réu primário
“Sendo a lei aplicada, é possível que se chegue a um desfecho bem gravoso a quem pratica esse delito”, afirma a dirigente adjunta da OAB Ribeirão.
Reveja reportagem sobre mulher que foi morta por não fazer o almoço no interior de São Paulo
5.O que as vítimas devem fazer para se proteger?
A advogada criminalista orienta que, antes de tudo, a vítima deve reconhecer que as condutas do agressor não são normais e, a partir daí, procurar as autoridades competentes. A primeira providência é ir a uma delegacia de polícia, o fórum, Defensoria Pública ou um órgão especializado em atendimento às mulheres para obter orientações sobre como solicitar uma medida protetiva.
Em cidades como Ribeirão Preto (SP), há entidades como o Núcleo de Atendimento Especializado à Mulher (Naem).Em canais de atendimento como o 180, do governo federal, também é possível tirar dúvidas.
“Se possível, constitua um advogado ou advogada criminalista para amparar nos aspectos legais, pois a carga emocional de lidar com os sentimentos e com a burocracia pode ser pesado”, afirma Gabriela.
Essas instituições também podem auxiliar com relação a questões como aluguel, guarda provisória, distanciamento e até apreensão de armas. “Há várias medidas que devem se adequar à realidade da vítima para que ela seja protegida na sua integralidade.”
Prédio da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) em Ribeirão Preto, SP — Foto: Cacá Trovó/EPTV
A busca de auxílio da Justiça não para, no entanto, na medida protetiva. No âmbito judicial, os casos de violência psicológica podem resultar em processos criminais ou mesmo em ações cíveis, para obtenção de indenizações. Até setembro de 2023, segundo estimativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quase 12 mil ações foram ajuizadas contra esse tipo de prática.
Em todos os casos, a vítima pode contar com o benefício de, ao participar de uma audiência, não depor na presença do agressor, explica a advogada.
“É direito da vítima não ter contato e não dar seu depoimento na frente do réu, portanto, não se preocupe com esses desdobramentos. (…) O caminho que leva a mulher a denunciar é um caminho bastante desafiador antes de ser libertador. Mas não existe nada mais libertador do que tomar uma decisão que traga sua vida de volta. “