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Violência moral causa traumas em vítimas de relacionamentos abusivos

Saiu no site O GLOBO:

 

Veja publicação original:   Violência moral causa traumas em vítimas de relacionamentos abusivos

 

Pesquisa indentificou que 27% das mulheres já passaram por isso

Por EDUARDO VANINI

 

RIO – Durante os quase dez meses vividos ao lado de um ex-companheiro sob o mesmo teto, uma gerente de marketing de 40 anos, que prefere não ter a identidade revelada, viu sua vida se transformar em uma “anti-vida”. Ela deixou de dar likes em posts de colegas nas redes sociais e passou a se policiar sobre tudo o que dizia. Quando ia a um restaurante com ele, passava a maior parte do tempo olhando para o chão. Estava em estado permanente de medo.

 

Caso ele visse uma mensagem minha chamando um amigo de querido, dizia que eu estava dando mole. Quando uma ida à farmácia durava mais do que 20 minutos, já começava a me mandar mensagens. Se estava em uma reunião de trabalho e não conseguia dar atenção a ele, era acusada de não estar cuidando de nossa relação — enumera ela. — Havia momentos incríveis de paixão e cumplicidade, mas um comentário meu mal interpretado por ele mudava tudo. Entravam em cena acessos de raiva, discussões homéricas, puxões de cabelo e muitas noites em claro.

 
A relação terminou quando, numa dessas explosões de fúria, ele a jogou no chão e chutou seu joelho. Ali ela entendeu, de uma vez por todas, que aquele namoro se tratava de um relacionamento abusivo. Mas não é preciso que haja agressão para que isso se configure. E essa é uma questão cara e urgente na pauta feminina. O abuso psicológico e moral acomete uma infinidade de mulheres cotidianamente no Brasil, causando traumas profundos em suas vidas.

 
Na Central de Atendimento à Mulher, mais conhecida como “Ligue 180”, o número de registros de violência psicológica saltou de 16.845 em 2014 para 47.721 este ano, segundo a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres. Em pelo menos 17,15% dos casos, o autor é o companheiro; em 11,76%, o ex. Como os levantamentos sobre agressões físicas contra mulheres ainda são defasados no país, a falta de informações é ainda maior quando o recorte buscado diz respeito ao campo emocional. A recém-divulgada “Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher” foi uma das primeiras a mapear esse aspecto. O estudo feito com 10 mil mulheres no Nordeste e coordenado pelo professor da Universidade Federal do Ceará José Raimundo Carvalho identificou que 27% das entrevistadas já sofreram esse tipo de abuso ao longo da vida.

 
A psicóloga do Ambulatório de Sexualidade Feminina da Unifesp Maria Claudia Lordello afirma que, em geral, as primeiras indicações de que um relacionamento está sendo abusivo partem de situações de ciúme que passam do limite aceitável.
— Estou falando de quando esse comportamento começa a cercear a liberdade do outro. No início do namoro, estes homens tendem a valorizar o aspecto sedutor das mulheres. Depois que as conquistam, começam a cortá-los. Não podem mais usar batom, decote. Tudo o que indicar sensualidade será atacado por ele — descreve ela.

 
Segundo Maria Claudia, isso acontece porque, muitas vezes, eles enxergam essa sensualidade como poder e, portanto, ameaça. Para manterem o controle em suas mãos, iniciam uma repressão que se estende a vários aspectos.

 
— É comum nunca aceitarem a opinião da mulher e, quando há uma discussão, sempre invertem a situação para que elas apareçam como culpadas. Eles também sempre escolhem o filme a ser visto, a viagem a ser feita e interrompem constantemente as falas delas. Quando agem assim, é como se estabelecessem que os pensamentos da companheira não valem nada — comenta Maria Claudia.
As ilustrações que acompanham esta matéria são da designer gráfica Silvana Mattievich, de 47 anos. Durante quase um ano, ela foi vítima de um relacionamento abusivo que causou muito desconforto emocional e a fez refletir sobre essa situação.

 
— Ele gostava de escolher minhas roupas e já chegou a fazer minha sobrancelha. Queria que eu estivesse sempre bonita, mas apenas para ele. Uma vez, fui encontrá-lo usando uma blusa com decote nas costas e ele me fez vestir uma jaqueta. Naquele dia, disse que eu havia estragado o passeio — recorda-se ela.

 

 
Silvana, que não foi agredida fisicamente, se lembra de como carregava um doloroso sentimento de culpa durante o namoro.

 
— Acho que estava carente e confundia esse tratamento com proteção e carinho. Mas depois comecei a notar que aquilo só me fragilizava cada dia mais. Sempre que a gente brigava, ele me fazia parecer a culpada por tudo. Então, comecei a questionar isso, porque nunca tinha me percebido egoísta como ele dizia — conta ela, sobre o relacionamento encerrado há três anos. — Na época, cheguei a ficar em dúvida sobre as minhas competências e talentos. Para me livrar disso, precisei fortalecer minha autoestima.

 
As frentes de combate ao relacionamento abusivo passam pela visibilidade ao tema. Nos últimos anos, mulheres de diferentes perfis têm reunido esforços para isso, em meio a hashtags e depoimentos nas redes sociais. A modelo Luiza Brunet, por exemplo, comemorou recentemente a condenação do seu ex-marido, Lirio Parisotto, por agressão física. O episódio aconteceu em maio do ano passado, durante uma viagem a Nova York. Na ocasião, ela relatou ter tido quatro costelas quebradas, além de lesões no olho esquerdo.

 
— Quando você conhece um homem, tudo é bonito num primeiro momento. Depois, eles começam a se revelar impacientes e autoritários. Lembro-me de que no começo era tratada como maravilhosa e depois passei a ouvir todos os adjetivos opostos a isso. O problema é que você está tão envolvida e apaixonada que não dá valor aos primeiros sintomas desse abuso. E aí, em casos como o meu, acaba em agressão — diz ela. — Mas expor tudo o que passei foi importante para mostrar como nenhuma mulher está livre disso.

 
A cantora Preta Gil também colocou a boca no trombone. Recentemente, gravou, ao lado de Pabllo Vittar, a música “Decote”, para chamar atenção para o assunto.
— A letra fala sobre uma mulher que dá seu grito de independência psicológica. Logo que a ouvi, pensei em relacionamento abusivo e nas relações em que um acaba querendo impor sua vontade ao outro — diz ela, sobre a obra que tem versos como “Não se importe com o meu decote / Eu te falei / Que eu era mais forte”.
A própria artista, inclusive, já viveu um relacionamento com essas características no passado:

 
— Ele implicava com minha maneira mais sensual de vestir e pedia para que eu não desse gargalhadas. Quando um homem manda você rir mais baixo, é porque ele não quer que você seja você mesma.

 
A defensora pública Arlanza Rebello, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, observa que os casos mais frequentemente levados ao órgão envolvem agressão física. Mas, invariavelmente, há um histórico de violência moral que, muitas vezes, as vítimas não percebem.

 
A agressão psicológica, na opinião dela, ainda é muito naturalizada e é comum as mulheres não percebê-la. Mas, como enfatiza Arlanza, toda forma de violência contra a mulher oriunda de relacionamentos abusivos pode ser objeto da Lei Maria da Penha.

 

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— Não é uma lei que simplesmente pune o agressor, mas protege as mulheres. Mesmo que existam algumas atitudes do parceiro que não ensejem uma conduta criminal, medidas protetivas e encaminhamentos para serviços especializados poderão ser feitos — afirma a defensora pública.

 
Mas, além da assistência jurídica, Arlanza ressalta que todas as esferas públicas e políticas precisam se debruçar sobre o combate a este tipo de abuso:

 
— Precisamos de uma rede de ajuda, envolvendo escolas, grupos de apoio e serviços de atendimento psicológico, para que elas entendam como não estão sozinhas. Afinal, a violência psicológica é tão grave que chega ao aniquilamento de uma pessoa. As vítimas se sentem desamparadas e não enxergam saída. Esse é o lado mais perverso da coisa.

 

 

 

 

 

 

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