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Veja publicação original: Violência doméstica expõe filhos de vítimas a fogo, surra e abuso sexual
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Em 2017, 193 mil mulheres registraram queixas de agressões em casa. O número não mostra efeitos da exposição das crianças ao ambiente hostil
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Por Fabíola Perez
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O fogo se alastrou rapidamente pelo lençol e fez Adriana Silva*, de 34 anos, despertar apavorada para salvar os dois filhos pequenos que dormiam com ela. “Lembro como se fosse hoje daquilo. Peguei um cobertor, joguei por cima e quando abriu uma brecha tirei eles de lá”, diz.
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Atacada pelo hoje ex-marido, Adriana é uma das milhares de mulheres vítimas de violência doméstica no país. De acordo com números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 193 mil mulheres registraram queixas de agressões sofridas dentro de casa em 2017. Em média, 530 mulheres acionam a Lei Maria da Penha por dia — ou seja, 22 vítimas por hora. Em relação ao feminicídio foram registrados 1.133 casos no ano passado, considerando que se tratam de crimes com alto índice de subnotificação.
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O que esses números não mostram, porém, é uma das faces mais graves dessa violência: crianças e adolescentes que crescem expostos à episódios que vão desde violência verbal e psicológica até a morte de suas mães.
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“Ele tinha uma personalidade agressiva, mas eu não sabia que aquilo era anormal”
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Os filhos de Adriana, uma menina e um menino, tinham apenas dois anos e seis meses, respectivamente, quando se viram em meio às chamas na cama incendiada. Esta, segundo ela, foi apenas a primeira de uma série de comportamentos agressivos e criminosos que o ex-companheiro viria a adotar. “Ele tinha uma personalidade agressiva, mas eu não sabia que aquilo era anormal”, afirma.
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No dia em que ateou fogo na cama, o marido teria dito a Adriana que era porque ela dava mais atenção à filha mais velha, de outro relacionamento, do que para o filho que tivera com ele. Adriana trabalhava fora e o marido era quem cuidava das crianças. “Eu trabalhava o dia todo no trem, chegava em casa com o corpo cansado e ele queria ter relação sexual”, lembra. “Como eu não queria, ele começou a ter fetiche pelos próprios filhos. Soube que, quando minha filha tinha sete anos, ele passava a mão nas partes íntimas dela.”
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Um dia, o menino, com nove anos, telefonou para a mãe e pediu ajuda. “Não posso falar por telefone porque ele vai ouvir”, disse o garoto. Ao chegar em casa, Adriana se deparou com o marido colocando o órgão genial no corpo da irmã mais nova, de seis anos. “Ele falava que queria mostrar para os meninos como tratar uma mulher”, diz ela. Depois disso, Adriana e a irmã chamaram a polícia. No dia 13 de junho de 2010, aniversário do filho, a família passou o dia no Conselho Tutelar.
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“Se eles não reproduzissem o que pai ensinava, eles apanhavam de pau, de cinto”, diz uma das psicólogas que atende Adriana, na Casa de Isabel, ambulatório especializado em atendimento de vítimas de violência, no Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo. “Os irmãos começaram a ficar confusos em relação à sexualidade e passaram a ter relações entre si”, diz a psicóloga que a atende. Separada do marido, Adriana começou a se prostituir para sustentá-los.
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O silêncio das crianças
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A promotora de Justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Gevid) do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian, afirma que os casos de agressão contra a mulher vitimam as crianças de forma direta. “O sujeito que é violento agride o vulnerável”, diz. “As crianças que assistem os episódios de violência podem sofrer com isolamento social, distúrbios alimentares, de sono, medo, depressão e síndrome do pânico.”
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O caçula de Adriana, de 16 anos, também agredido pelo pai, relatou em terapia que tinha dificuldades para dormir, problemas para se concentrar, tinha um comportamento agressivo consigo mesmo e não gostava de abraços. Silencioso e com a fala tímida, ele confirma que as agressões haviam se tornado rotina. “Acho que fiquei muito fechado para os outros”, diz. “Lembro que não conseguia fazer muita coisa, só tentava separá-los. Mas tento não pensar mais nisso. Não é legal.”
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A advogada e integrante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, Teresa Cristina Cabral, afirma que as mulheres têm dificuldades em perceber o comportamento dos companheiros como abusivos e em se enxergar como vítimas de violência. “Apesar das consequências físicas, muitas permanecem no relacionamento pelos filhos e só conseguem sair quando eles entram na adolescência”, diz.
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A cabelereira Ana Santos*, de 44 anos, foi agredida seis anos pelo ex-marido. “Ele era da noitada. Certa vez o segui e descobri que ele estava me traindo. Levei a garota com quem ele estava se relacionando até o serviço dele e o desmascarei. Nesse dia, levei uma surra”, lembra. Ana foi aconselhada pelos familiares a não fazer boletim de ocorrência. Natural de Altinho, no agreste pernambucano, ela saiu de casa por não suportar ver a mãe violentada. “Optei por ter uma família.” Em São Paulo, porém, a rotina se mostrou diferente de suas expectativas.
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Ela conta que o ex-marido a obrigava a ter relações sexuais mesmo quando ela não tinha vontade e que, não raro, costumava dizer “mulher minha não trabalha”. Certo dia, após uma briga, ele a furou com uma caneta. “Ele bateu e machucou minhas costas com cimento até que segurei o filho dele no colo para me proteger e ele disse ‘não te mato porque você está com meu filho’”, afirma sobre o dia em que realizou o primeiro boletim de ocorrência, em 2001.
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“Não podia contar a ninguém porque meus irmãos também eram agressores.” Com a sensação de estar presa ao ciclo de violência, Ana decidiu acabar com o sofrimento. “Decidi matar minha filha e me suicidar. Mas quando me sentei na posição para esfaqueá-la ela acordou”, diz interrompida pelas lágrimas. Tempos depois, Ana pensou em matar o então marido. “Ele já tinha me humilhado muito, procurei álcool para jogar nele, mas ele acordou.”
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Carla Santos*, 24 anos, acompanha os relatos da mãe sem esboçar reação. E decide romper o silêncio para narrar a memória que mais a marcou. “Quando era criança, minha mãe estava com a cabeça no meu colo e meu pai começou a bater nela”, diz. “Vi coisas quebradas dentro de casa. Foi muito dolorido”, afirma. Carla admite que os conflitos que presenciou atrapalharam seu desenvolvimento. “Sou uma pessoa muito fechada.”
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Com uma aliança dourada na mão direita, Carla diz não querer repetir o ciclo de violência vivido pela mãe. “Sou mais intolerante, não aceito brigas.” Hoje, ambas trabalham em um salão de cabelereiro. Depois de tudo o que viveu, Ana afirma que, pior do que as surras, eram as palavras que vinham junto: “Ele apertava minha cabeça e dizia que deixaria marcas que nenhum homem iria me querer.”
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“Quando era criança, minha mãe estava com a cabeça no meu colo e meu pai começou a bater nela”.
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Violência à noite e no fim de semana
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De acordo com Tereza Cristina, os episódios de violência ocorrem em sua maioria dentro de casa, sobretudo, nos períodos da noite e nos fins de semana, quando os companheiros passam mais tempo em casa. “Muitas vezes, a violência ocorre na frente das crianças como forma de intimidação, outras são feitas diretamente aos filhos”, diz. Daniela Almeida*, 38, foi agredida pelo ex-marido ainda durante a gravidez. Mas os abusos começaram em sua vida desde os sete anos.
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“Fui abusada por um primo de 17”, lembra. Aos 10, ela e a mãe foram colocadas contra a parede pelo revólver do pai militar. “Ouvi o barulho da arma engatilhada. Ele tinha problemas com bebida”, diz. Anos depois, Emanoele se casou com um homem que também bebia e era usuário de drogas. “Ele bebia de segunda a segunda. Um dia vi cocaína no nariz dele”, diz. “As agressões começaram com tapas e empurrões, até que ele me deu uma chave de braço e bateu na minha barriga.”
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Daniela tentou suicídio. “Fiquei 40 minutos em um viaduto no centro de São Paulo.” A gravidez foi considerada de risco por causa da agressão. Hoje, a filha tem três anos e, segundo a mãe, os médicos ainda observam se ela possui alguma sequela. “Ela já falou que queria matar o pai e demonstra agressividade”, afirma. A menina se encontra com o pai algumas vezes, mas em todas elas com o intermédio da avó paterna. Há seis meses, faz terapia na Casa de Isabel. “Quero acreditar que a dor não é para sempre.”
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“Ele bebia de segunda a segunda, vi cocaína no nariz dele”
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Mãe e filha superam juntas os traumas causados por um marido e pai violento
Fabíola Perez / R7
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Embora as leis Maria da Penha e do feminicídio tenham jogado luz sobre episódios de violência contra mulheres, crianças e adolescentes que vivem sob este cenário tem consequências psicológicas semelhantes a jovens que crescem em regiões de conflito armado. “Elas sofrem com a invisibilidade e com entraves da própria Justiça”, diz Chakian. Um deles, segundo a promotora, é o sistema compartimentado. “A falta de articulação entre as varas da violência e da família contribui para que o impacto nas crianças não seja investigado”, diz.
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É o caso de Renata Costa*, de 13 anos, que cresceu presenciando brigas frequentes entre os pais. “Fiquei doente de ver o bate-boca entre minha filha e meu genro discutirem. Tinha medo de acontecer uma tragédia”, diz a avó da garota. “Eles não me deixam buscar minha neta.”
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Renata, durante as discussões, se fechava no quarto com a irmã, agredida com um tapa no rosto pelo pai. “Ela sempre tentava me proteger”, diz. “Lembro deles se desentendendo e minha mãe chorando na cozinha.” A garota irreverente de boné para trás muda de aspecto quando se recorda do processo de separação. “Fiquei bem mal, sentia muito a falta do meu pai. Isso me afetou demais, tinha crises de ansiedade e só queria ir para casa e chorar”, diz. “Às vezes conversava com minhas amigas que diziam ‘você tem a gente’ e eu me sentia melhor.”
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A mãe de Renata, Norma*, teve depressão após dez anos de relacionamento. “Ele era manipulador e a deixava sempre irritada”, relata a avó. Segundo ela, o ex-marido de Norma se mudou para Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, e a deixou com R$ 10 mil em dívidas. A garota vai à terapia uma vez por semana, cursa teatro e pratica luta. “Apesar de tudo, seria muito difícil se eles estivessem juntos”, diz.
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Problema de Estado
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Quando uma mulher sofre violência doméstica, segundo a promotora Silvia, o Ministério Público age independentemente da situação da vítima. “Passou a ser um problema do Estado”, diz.
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Em setembro deste ano, o ministro Dias Toffoli, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), sancionou a lei 13.715/18, que amplia as hipóteses de perda do poder familiar pelo autor de agressões contra o pai ou a mãe dos filhos em casos de lesões gravíssimas e abuso sexual. “É um avanço porque reconhece a gravidade dessas hipóteses”, diz Silvia.
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Segundo a presidente da Associação Brasileira de Direito da Família, Karina Bueno Timachi, quando o pai da criança é o autor do crime, ele perde automaticamente a guarda. Em casos de feminicídio, a Justiça determina com quem a criança deve ficar.“Ela pode ficar com familiares, porém, se não houver estrutura, abre-se possibilidade para terceiros. Não há proibição de a criança ficar com familiares do autor do crime”, diz Karina.
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Trauma e superação
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Tatiana Souza*, de 52 anos, saiu de casa dos pais aos 18 porque não suportava ver a mãe ser abusada pelo marido.
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“Foi a pior coisa que fiz na vida”, diz. Ao fugir da violência praticada pelo pai, se deparou com um relacionamento abusivo com o homem que a acompanhou por 20 anos. Um dia, ao chegar do trabalho, notou as portas e janelas de casa trancadas. O marido a jogou na cama e a imobilizou.
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“Levei vários socos no nariz, meu filho de seis anos chorava e gritava muito”, lembra. “Saí de casa com o rosto todo ensanguentado, mas não tinha para quem pedir ajuda.” Tatiana teve mais quatro filhos que tiveram a vida profundamente marcada pela violência da mãe. Tânia*, de 25 anos, parou de fazer faculdade para fazer programa no centro de São Paulo. Joyce*, de 23, foi agredida pelo ex-marido da mãe. “Ele achou que minha filha o tinha denunciado”, afirma. Tatiana se lembra que as meninas foram as mais agredidas pelo então companheiro.
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“Tânia começou a usar drogas, ameaçava se jogar do alto dos muros e não quer fazer tratamento.” Tatiana está há três anos separada, mas ainda não conseguiu ajudar os filhos a se recuperarem dos traumas sofridos.
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Doralice Cunha*, de 45 anos, voltou a sorrir há seis meses. Ela teve o cabelo cortado e quase todos os dentes quebrados pelo marido. O primeiro abuso veio aos seis anos de idade. O agressor era o primo de 21. “Minha mãe não me dava abertura para falar sobre esses assuntos”, diz. O pesadelo vivido na infância fez com que Doralice não tivesse entendimento sobre a própria sexualidade. Na vida de casada, passou a ser pressionada a ter relações sexuais com o marido constantemente.
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“Tinha que ser toda hora do jeito que ele quisesse”, afirma. Até que a filha mais velha, de 13 anos, denunciou o pai por abuso sexual. “Como eu também já havia sido abusada, fiquei ao lado dela. Mas naquele momento meu chão se abriu: tudo que fazia comigo, ele fazia com ela.” Doralice conta que só chorava por meses e sentiu vontade de se matar. “Tenho três filhos usuários de drogas, uma menina que não consegue se relacionar com ninguém.”
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“Quero fazer do meu passado um presente para mulheres que enfrentam essa situação”
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Daniela Almeida conseguiu se separar após apanhar ainda na gravidez
Edu Garcia / R7
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Diagnosticada com esquizofrenia, depressão bipolaridade, Doralice não vive mais com os filhos, mas mantem contato com alguma frequência. Há seis meses, porém, faz psicoterapia uma vez por semana. “Não sabia falar não, achava que se eu fizesse isso, deixariam de gostar de mim”, diz.
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A Casa de Isabel, na qual Doralice faz terapia, é conveniada com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo e atende em média 2.600 pessoas por mês que integram o ciclo da violência doméstica nos bairros do Itaim Paulista, São Miguel Paulista, São Mateus, Itaquera, Cidade Tiradentes, Ermelino Matarazzo e Guaianazes. No último ano, o número de atendimentos de vítimas cresceu 20%.
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Hoje, ela diz que reaprendeu a fazer coisas como cozinhar e se envolver com pessoas. “Pela primeira vez, me sinto em busca da minha felicidade. Quero fazer do meu passado um presente para mulheres que enfrentam essa situação.”
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* Os nomes foram modificados para preservar a segurança das entrevistadas
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“Pela primeira vez, me sinto em busca da minha felicidade”, diz Doralice
Edu Garcia / R7
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