Saiu no site O GLOBO:
Veja publicação original: Um perfil de Diva Guimarães, a professora de 77 anos que roubou os holofotes na Flip
Da plateia, paranaense falou sobre racismo em mesa com Lázaro Ramos e Joana Gorjão Henriques
— Eu estava passeando pela rua, quando uma mulher me chamou de forma agressiva e disse: “aposto que esse cachorro que vem aqui e faz cocô em tudo é seu!”. Por que aquele cachorro tinha que ser meu? Ele poderia ser de qualquer outra pessoa. Eu apenas disse: “eu sei porque você está dizendo que esse cachorro é meu”. É racismo. Às vezes eu ignoro, às vezes eu respondo de forma cínica, dessa vez falei no mesmo tom — explica. — Isso aconteceu aqui, na Flip, quando estão homenageando quem? Lima Barreto, que é negro. Nem todo mundo tem essa capacidade de compreensão — completa ela, dona de uma ironia fina, no melhor estilo do homenageado da festa.
Alfabetizadora e professora de educação física aposentada após 40 anos de trabalho, ex-velocista e ex-jogadora de basquete, esporte que ainda acompanha com paixão, Diva é neta de escrava com português, filha de uma lavadeira, que trabalhava em troca de material escolar para que a filha pudesse estudar. Adora ir ao cinema e ao teatro (“quando o preço do ingresso permite”) em Curitiba, onde mora, mas principalmente gosta de ler. Também se diverte contando suas histórias. Diva é muitas, mas não é vítima. E nem “dona” Diva. Só Diva. “Sou também uma sobrevivente”, enfatiza.
— Eu descontava a raiva pelo que acontecia comigo no esporte. Acho a melhor coisa para educar. O esporte disciplina, e ensina até mesmo a lidar com as frustrações e as injustiças. Educação física não é festinha – conta ela, que foi treinada por Almir Nelson de Almeida, “basquetebolista” que representou o Brasil nas olimpíadas de 1952, e considera Pelé o maior atleta de todos os tempos – Mas como pessoa influente, que poderia ter nos ajudado, ele falhou. Ele diz que não existe preconceito, é uma decepção.
Fã de Jorge Amado, escritor que “as pessoas leem como historinha, mas não captam as denúncias que ele faz”, veio para ver as participações de Lázaro Ramos e de Edimilson Pereira de Almeida, negros como ela (“me reconheço em todos”). Sempre quis vir à Flip e não reclama do chão de pedras “que contam seu passado”. Ela, que ajuda familiares, só conseguiu juntar dinheiro para participar da festa este ano, por insistência da sobrinha, Maitê, que veio na edição passada. Ao lado de Maitê e das amigas Elizabete e Maria Alice, a quem chama de “irmã”, pegou um avião que fez escala em São Paulo, parou no Rio e encarou as 5 horas de estrada feliz e contente.
Diva queria também conhecer Conceição Evaristo, escritora carioca que, no ano passado, levantou a voz contra a falta de negros na programação oficial da Flip. Avessa à tecnologia (“Google é nada, meu negócio é dicionário”), não acompanhou a polêmica que originou mudanças profundas no evento, que pela primeira vez em 15 edições traz mais convidadas que convidados e aumentou a participação de negros em 30%. Chorou copiosamente ao abraçar a nova amiga (“são lágrimas de resistência”, disse Conceição).
Conta en passant que passou frio e passou fome, mas hoje vive bem e já não se deixa abater pelo racismo. Quando percebe que está sendo seguida por um vendedor em uma loja, gosta de “dar nele uma canseira”, andando de um lado para o outro. Levanta a voz contra a hipersexualização da mulher negra e, com segurança, conta que não quis ter filhos para que eles não passassem pelo sofrimento que ela passou. Fica ofendida quando perguntam se ela tem uma cuidadora (“a cuidadora de mim sou eu mesma”). Diz que, se ganhasse R$ 1 a cada visualização de seu vídeo, construiria casas populares. No fim das contas, apesar do susto, admite se divertir com o carinho recebido dos novos fãs.
— As pessoas estão falando que eu virei verbo! Eu divei, tu divaste, ele divou. Mas eu divei mesmo — ri, envergonhada.
* Colaborou Jan Niklas
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