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Tricotando o feminino com Marina Colasant

Saiu no site DIÁRIO DO NORDESTE:

 

Veja publicação original:  Tricotando o feminino com Marina Colasant

 

Em entrevista, a escritora fala sobre o ofício, questões de gênero e a relação com os leitores

 

Autora de mais de 40 títulos, como “E por falar em amor”, Marina Colasanti também atuou como jornalista

 

 

Por Tânia Dourado – Especial para o Caderno 3
Marina Colasanti é um daqueles nomes que trafegam conosco ao longo da vida. Dona de uma das vozes mais vibrantes da nossa literatura, tive a alegria de conversar longamente com ela sobre literatura, feminismo, questões de gênero e do seu importante papel como desbravadora de territórios historicamente tão masculinos.

 

 

Como linguista e leitora, percebo uma voz marcadamente feminina na sua literatura. No entanto, muitas escritoras consideram isso bobagem e renegam qualquer associação entre linguagem e gênero, como se isso de algum modo empobrecesse nosso discurso literário.

 

 

Não acho bobagem, apesar de todo o risco que isso contém. Sempre afirmei que a minha escrita é uma escrita de mulher, porque vejo o mundo com olhos de mulher, penso o mundo com cérebro de mulher e a ciência nos diz que o cérebro dos homens funciona de uma maneira diferente do cérebro das mulheres. Vivo a vida com a sensibilidade de mulher. Os homens não têm filhos, os homens não têm útero, os homens têm outros hormônios, eu não tenho excesso de testosterona. Acho que, embora o escritor se ponha na situação do outro…

 

 

Seja esse outro quem for.

Isso, seja esse outro quem for. E ao me colocar no lugar do outro, estou vendo o outro com os meus olhos de mulher.

Os homens, dentro da literatura, decerto se colocam numa posição privilegiada. Eles são apenas escritores, enquanto nós acumulamos muitas jornadas e, não raro, o leitor questiona como conseguimos dar conta das nossas outras responsabilidades. Não lembro de alguém perguntar isso aos escritores.

Tenho até um poema sobre isso. Meus amigos homens, escritores, relatam que de manhã vão caminhar na praia, voltam e trabalham até a hora do almoço, almoçam, repousam e depois se dedicam a leitura ou retomam a escrita. Bom, mas alguém botou o almoço, não é mesmo?

Alguém fez as compras.

Eu, às terças-feiras, faço feira, faço supermercado, segunda faço o menu de toda a semana para poder comprar todos os ingredientes, mas acho que isso enriquece de alguma maneira a minha escrita, não considero como uma sobrecarga. Considero um contato intenso com aquilo que é vital. A comida é uma coisa vital. Cozinho toda noite, gosto dessa alquimia, de inventar comidas, isso é muito rico, quem não faz isso perde.

É uma parte da vida que se perde. Você não acha que o feminismo abriu caminho para os homens? A emancipação da mulher criou oportunidades para os homens também se aventurarem em territórios tão marcadamente femininos?

Vejo os homens hoje em dia muito mais amorosos, dão beijinho em bebês, no próprio filho, como não fariam há vinte ou trinta anos. O feminismo deu os filhos de presente para os homens, embora no Brasil a gente saiba que os homens ainda se mandam muito. Fazem filhos nas mulheres, partem, somem e largam elas com os filhos.

Principalmente os pais de crianças com deficiência.

Aí então é fatal! Microcefalia, se tiver três pais ao lado do filho, é muito. (Uma garota interrompe a nossa conversa. O avô dela foi um grande leitor da Marina e fez questão de deixar seus livros de herança para a neta).

Você deve receber inúmeros depoimentos como esse. Como se sente sabendo que foi e é tão importante para alguém, para os seus leitores?

Tânia, eu não gosto de usar a palavra importante em relação a mim mesma.

Embora você seja.

Mas prefiro pensar que consegui aquilo que era e é a minha finalidade. Consegui uma aproximação amorosa com os leitores. Uma aproximação do tipo de encostar na alma do leitor. Que ele se aproprie do que eu escrevi, que ele sinta que é dele, como se ele tivesse escrito. Isso é o que quero fazer.

Outro aspecto do seu discurso é a intensidade com que você lida e aprofunda temas difíceis, como a morte e a solidão na sua literatura para crianças e jovens leitores.

Não quero distrair ninguém. Não quero divertir ninguém, entreter ninguém. Não sou um clown. Eu quero emocionar, levar à reflexão, não sei em que direção a pessoa vai refletir com os meus textos, não é um caminho pré-concebido, ‘conselhoso’. Eu não dou conselho. Quero que, através da emoção, a pessoa se questione, reflita, pense, interrogue-se. A literatura serve para isso.

As suas conquistas, o seu sucesso em territórios historicamente tão masculinos influenciou e influencia toda uma geração de mulheres. Atribuo a você um papel valoroso no encorajamento das mulheres a lutarem por seus direitos e na afirmação do feminismo no Brasil.

Tive uma atuação direta nas questões de gênero. Sou uma feminista de primeira hora – de primeira hora não, porque o feminismo começou no século XIX. No Brasil, o feminismo tem uma floração em meio à ditadura militar, porque as mulheres que se exilaram entraram em contato com os grupos ativistas feministas no exterior e trouxeram todo um know-how de como trabalhar. Eu militei com a palavra durante vinte anos, período muito intenso da minha vida e espero que isso tenha ajudado mulheres a se repensarem, a se recolocarem.

Diante de si mesmas primeiro, e do mundo depois.

Isso.

A palavra feminista esteve limitada a um grupo de mulheres com atuação muito restrita; hoje a palavra e o movimento assumiram caráter coletivo. Associado a palavras como empoderamento e sororidade, o feminismo trafega com desenvoltura nas mídias sociais com adesão de mulheres de diferentes idades e classes sociais e também conclamando a adesão dos homens, caso da campanha “HE FOR SHE”. Como feminista, que leitura você faz dessa recente retomada do movimento?

Quando aconteceu o encontro de Beijing, as lideranças mundiais decidiram acabar com o movimento do jeito que ele era, centrado só na mulher, e migrar para questões mais coletivas, mais amplas, que abrangessem os homens. As lideranças decidiram isso porque em certos países as questões principais estavam aparentemente ganhas, mas no Brasil não estavam, e o Brasil seguiu esse ensinamento, militantes migraram para a ecologia, educação e outros campos.

Outras demandas.

Outras demandas. E aconteceu como acontece tantas vezes nas novelas, o movimento embarrigou. Parecia que tinham esquecido tudo e agora, graças a Deus, a bela adormecida acordou e começou a chiar. Acho ótimo, só lamento que grande parte desse movimento não esteja estudando.

É preciso saber o contexto histórico para entender o que nos trouxe até aqui, do contrário o movimento tão necessário pode resultar num engajamento superficial?

Exatamente. É preciso estudar o passado. Você só pode fazer reivindicações se souber dentro de que contexto está falando, o que já aconteceu, como você chegou onde chegou. Você precisa saber a história daquilo que está reivindicando. Vejo que muitas moças estão falando sem ter se informado.

Marina, você trabalhou por mais de 15 anos na revista Nova, uma publicação que teve um papel importante na construção dessa emancipação feminina. Você assinava uma coluna de cartas, tinha um contato direto com essa nova mulher.

De fato a Nova trabalhou muito essas questões. Era uma revista mais pensada, voltada para a mulher independente, que quer trabalhar. Estamos falando da Nova daquele tempo, nos seus 10, 15 primeiros anos.

O que mudou de lá para cá?

As revistas são oportunistas, não são órgãos a serviço do social. Estão a serviço do faturamento, são empresas que fazem pesquisa para saberem qual a tendência, o que o público quer, e então oferecem exatamente isso, porque assim garantem o público e bom preço para os anúncios, que é o que sustenta uma revista, não a venda em banca.

Durante meu doutorado em Linguística, fiz uma curadoria das publicações de moda até 2015 e pude constatar a quase total ausência de representação da mulher negra nessas revistas. Um recorte cruel, principalmente no Brasil, um país mestiço. E agora essas mesmas publicações se autodenominam feministas. A serviço de que mulheres elas estiveram ao longo da história?

Vejo que as revistas de moda não têm nenhum compromisso com a verdade, nenhum compromisso com o social. Uma coisa é um veículo de comunicação e outra bem diferente são as revistas de moda. Você pega uma revista de moda e três quartos da revista são de anúncios, em geral de produtos que três quartos das mulheres brasileiras não podem consumir. É uma coisa quase enganosa, as mensagens sociais que elas trazem não estão corroboradas pelo conteúdo. E, por outro lado, muita gente que não pode comprar compra o símbolo através do olhar.

Como você vê a questão da exclusão no Brasil, do outro, principalmente o negro, que não se vê representado na mídia? De que modo a naturalização da exclusão mexe com você?

Isso são assuntos muito densos, ligados à tradição, à história brasileira. O Brasil aceita a exclusão com grande facilidade, porque está na sua raiz escravagista. O Brasil aceita como normais as favelas. Não posso aceitar a favela como uma normalidade. Moro ao lado de uma enorme, que é a Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, parte nobre do Rio de Janeiro. Passo em frente dessa favela todos os dias. Não vou me acostumar nunca, acho um insulto às pessoas que elas morem assim e que todo mundo considere isso normal. Por que eu moro assim e elas moram assado? Claro que todo mundo não mora igual, em lugar nenhum do mundo. Mas há uma diferença entre você ser o bicho e você ser o príncipe. Então vai tudo no mesmo bloco, o papel higiênico que se joga na cestinha porque não temos esgotos. Nos hotéis, é preciso escrever, porque gringo não joga papel na cestinha. Nós aceitamos o feminicídio. Agora estamos falando dos homens que ejaculam em cima das mulheres nos ônibus, mas isso começou agora? Não é à toa que se fez um vagão exclusivo para mulheres no metrô e que os homens invadem sistematicamente.

E que se encostam, se esfregam deliberadamente.

É um conjunto de elementos civilizatórios que nós não alcançamos plenamente.

A literatura, ao promover e provocar um diálogo interno, pode colaborar para uma humanização?

A literatura tem essa função de diálogo intenso e profundo com o leitor, mas não acho que ela salve o mundo. Porque se salvasse, Dante o teria feito na Idade Média, Ariosto na Renascença, Homero na Grécia e As mil e uma noites lá atrás. O mundo continua, temos o Trump e Kim Jong-un que não me deixam mentir, dois bárbaros. Claro que como toda manifestação de arte, a literatura é indispensável ao ser humano. Ela não é só benéfica, mas necessária.

Mas a sua literatura acorda no leitor aspectos importantes dele mesmo, cria uma empatia e uma cumplicidade enriquecedora.

Quando escrevi “E por falar em amor” vinham pessoas, sobretudo mulheres, e me diziam “você escreveu tudo aquilo que eu penso”. Eles estavam falando de um trabalho que eu pesquisei durante 20 anos sobre questões relacionadas ao amor. Sei que ela não podia ter pensado tudo aquilo, que não tinha os dados para pensar aquilo, mas que maravilha ela achar que pensou, que presente dos deuses para mim.

Tem uma frase de Emerson que adoro: “Os melhores livros levam-nos à convicção de que a natureza que escreveu é a mesma que lê”. A sua obra tem esse poder.

Eu sinto isso.

Marina obrigada por essa entrevista.

Tânia, querida, eu adorei, na verdade mais que uma entrevista, nós estávamos tricotando o feminino, que é um fio longo e inacabável, infindável, que vai de geração a geração.

Tânia Dourado é escritora e linguista

 

 

 

 

 

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