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Tornozeleira eletrônica para agressores de mulheres: avanço ou promessa simbólica?

Siu no site CONJUR

 

 

 

 

Na última semana, o Senado aprovou, em votação simbólica, um projeto de lei que visa impor o uso obrigatório de tornozeleira eletrônica aos autores de violência doméstica contra a mulher. O texto altera a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), estabelecendo que o uso do equipamento não dependerá mais da anuência do agressor, mas sim de decisão judicial fundamentada, como forma de garantir maior efetividade às medidas protetivas de urgência.

 

Reprodução

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A proposta surge em um cenário preocupante: segundo dados da ONU, uma mulher é morta vítima de violência doméstica a cada seis horas no Brasil. A medida, nesse contexto, é recebida com entusiasmo por parte da opinião pública e também por setores do sistema de Justiça, ao representar uma tentativa concreta de ampliar os instrumentos de contenção da escalada da violência de gênero. No entanto, a aprovação legislativa, ainda pendente de sanção presidencial, suscita importantes reflexões jurídicas e sociais.

A primeira delas diz respeito ao próprio alcance da medida. O uso da tornozeleira eletrônica, embora visto como um avanço, não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei Maria da Penha já previa, de maneira implícita, a possibilidade de o juiz impor restrições à liberdade de locomoção do agressor, inclusive com monitoramento eletrônico. A inovação, portanto, reside na sua expressa previsão legal e na retirada da exigência de concordância do agressor para o uso do dispositivo. Essa mudança busca contornar entraves práticos e resistências encontradas na execução das medidas protetivas, mas não resolve, por si só, os gargalos estruturais do sistema.

É necessário lembrar que o sucesso de qualquer medida protetiva depende, antes de tudo, de sua efetiva implementação. O monitoramento eletrônico requer logística, pessoal treinado, infraestrutura tecnológica e, sobretudo, capacidade de resposta rápida diante do descumprimento. Muitos estados ainda enfrentam dificuldades para operar sistemas de tornozeleira de forma ampla, inclusive para monitorar apenados em regime aberto ou em medidas cautelares diversas da prisão. A expansão para os casos de violência doméstica, sem o correspondente investimento público, pode resultar em uma norma de baixa densidade prática, transformando o que deveria ser proteção em mera formalidade.

Simbolismo da medida e a criminalização simbólica

Além disso, é preciso problematizar o aspecto simbólico da medida. O monitoramento eletrônico, quando aplicado de forma isolada, pode gerar uma falsa sensação de segurança, tanto para a mulher quanto para o próprio sistema de justiça. A tornozeleira não impede, de forma automática, a consumação da violência — sobretudo em casos em que o agressor está determinado a descumprir ordens judiciais. Mais do que instrumentos tecnológicos, o enfrentamento à violência de gênero demanda atuação articulada entre políticas públicas, delegacias especializadas, acolhimento psicológico e campanhas educativas que desconstituam a lógica patriarcal que sustenta essas agressões.

Outro ponto de atenção é o risco de supervalorização do Direito Penal e da vigilância como solução para problemas complexos de fundo social. A criminalização simbólica — como lembra Eugenio Zaffaroni — muitas vezes atua como cortina de fumaça para encobrir a ineficiência do Estado em garantir políticas públicas estruturantes. A ampliação do uso da tornozeleira eletrônica, embora juridicamente justificável e socialmente desejável, precisa ser acompanhada de um olhar crítico: ela reforça a crença no controle penal como caminho único para enfrentar a violência contra a mulher, deslocando a atenção de outras frentes igualmente indispensáveis.

 

Spacca

Sob o ponto de vista processual, o novo texto também impõe desafios. A decisão judicial que determinar o uso da tornozeleira precisará estar fundamentada nos termos do artigo 93, inciso IX, da Constituição, exigindo do magistrado a demonstração da proporcionalidade, da adequação e da necessidade da medida. Isso se mostra relevante para evitar automatismos que transformem a imposição da medida em prática rotineira, sem análise individualizada dos casos. Afinal, a proteção à mulher não pode ser alcançada às custas do esvaziamento de garantias processuais.

Por fim, é importante ressaltar que a medida pode contribuir para salvar vidas — desde que inserida em um contexto de responsabilização efetiva, fiscalização rigorosa e atuação integrada entre os órgãos públicos. A aprovação do projeto, nesse sentido, é mais um passo na longa caminhada de enfrentamento à violência de gênero. Mas é preciso que seja acompanhada de ações concretas, recursos financeiros e compromissos políticos que sustentem sua aplicação no cotidiano das mulheres brasileiras.

Sem isso, a tornozeleira eletrônica pode acabar sendo mais um símbolo de proteção do que um instrumento real de transformação.

 


Referências

ALMG – Assembleia Legislativa de Minas GeraisA cada 6 horas, uma mulher morre vítima de feminicídio no Brasil. 2024. Disponível em: https://www.almg.gov.br/comunicacao/noticias/arquivos/A-cada-6-horas-uma-mulher-morre-vitima-de-feminicidio-no-Brasil/. Acesso em: 31 mar. 2025.

BRITO, Daniel. Direito penal simbólico e a nova qualificadora do crime de estelionatoMigalhas, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/348975/direito-penal-simbolico-e-a-nova-qualificadora-do-crime-de-estelionato. Acesso em: 31 mar. 2025.

CAMPOS, Mariana Lucena. Tornozeleira eletrônica no combate à violência contra mulheres: entre promessas e desafiosMigalhas, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/344586/tornozeleira-eletronica-no-combate-a-violencia-contra-mulheres. Acesso em: 31 mar. 2025.

MIRANDA, Daniel Calvet. O Direito Penal do Inimigo como sintoma do Direito Penal simbólicoJusBrasil, 2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-direito-penal-do-inimigo-como-sintoma-do-direito-penal-simbolico/1203001787. Acesso em: 31 mar. 2025.

  • é bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá, pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e advogada criminalista em Porto Alegre (RS).

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