Saiu no site FINANÇAS FEMININAS
Veja publicação original: Tereza: conheça a cooperativa que ressocializa detentas através do empreendedorismo e do consumo consciente
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Por Gabriella Bertoni
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A adolescência de Flávia Maria da Silva não dava sinais de que seria conturbada. Estudava, fazia curso de datilografia, não curtia baladas. Até que aos 15 anos um acontecimento mudou o rumo de seu destino e a estrada foi de muito sofrimento – até encontrar uma cooperativa de empreendedorismo e consumo consciente que a ajudaria a se reerguer.
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Hoje, Flávia Maria da Silva tem 39 anos e está presa há 6 anos na Penitenciária Feminina II de Tremembé, no interior de São Paulo. A acusação é de um dos crimes que mais encarcera pessoas no Brasil: tráfico de drogas. O que mudou os rumos da vida dela ainda na adolescência foi o relacionamento com um jovem que estava envolvido com o crime. Foi mãe aos 16, tornou-se viúva aos 17. Além de toda essa reviravolta, acabou se envolvendo também com a criminalidade e foi presa.
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A história de Flávia ganhou um novo contorno ao encontrar o projeto Tereza , criado pelo Instituto Humanitas360 (H360). O nome da marca vem de uma gíria utilizada nos presídios, onde Tereza é uma corda de lençóis e usada em tentativas de fuga. Agora, tornou-se uma forma de fugir de uma realidade sem perspectiva e alcançar um futuro promissor.
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Com a iniciativa, as detentas produzem almofadas, bolsas, carteiras, sacolas, colchas e echarpes de dentro do presídio, como forma de geração de renda e reinserção social. E por que não aproveitar a chegada das festas de fim de ano para conhecer o trabalho dessas mulheres, incentivá-las e garantir o presente de Natal da família e amigos?
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O nascimento de uma oportunidade dentro do empreendedorismo
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O projeto em Tremembé foi inspirado na primeira cooperativa de detentas do País, criada em Ananindeua, na região metropolitana de Belém do Pará. Depois de uma viagem ao estado, a equipe do Instituto Humanitas360, como uma incubadora de startups formadas dentro de prisões, decidiu replicar o modelo em outros pontos do País. Com a aprovação da a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, as detentas de um dos presídios mais conhecidos do País começaram a trabalhar no projeto.
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Hoje, a cooperativa é integrada por um grupo de 30 detentas, que participaram de uma série de oficinas com o designer e tecelão Renato Imbroisi, especializado em criar produtos de artesanato com comunidades no Brasil e na África. A intenção era ajudá-las a desenvolver suas habilidades e agregar valor aos produtos, todos confeccionados com matéria-prima e acabamento de alta qualidade.
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Para que tudo funcionasse, o Instituto investiu R$ 1 milhão na compra de equipamentos e capacitação, e teve como instituições parceiras a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Conselho da Comunidade da Vara da Execução Criminal de Taubaté e a Assessoria Especial para Assuntos Internacionais do Estado de São Paulo.
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Além disso, o H360 fornece às cooperativas um capital semente, capacitação técnica e apoio ao desenvolvimento do modelo de negócio, garantindo que 100% da renda gerada seja transferida para os detentos e ex-detentos cooperados.
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Entre as principais mudanças que o projeto trouxe às detentas, está o fato de que, a partir da criação da cooperativa, elas puderam se tornar empreendedoras. É o que acredita Patrícia Villela Marino, presidente do Instituto. “Agora, elas são sócias de uma empresa na qual vão continuar trabalhando após saírem da prisão, o que dá a esperança de um futuro promissor em liberdade.”
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Marino explica que, já no primeiro contato, as detentas demonstram uma melhora incrível na autoestima. “Uma questão que contribui para isso é que as famílias de muitas delas, vendo como estão envolvidas nesse projeto, começaram a procurá-las mais, dão retorno positivo, acreditaram mais nelas. Elas enxergam o projeto como uma possibilidade de dar a volta por cima e mostrar aos parentes, principalmente aos filhos, que realmente mudaram. Do ponto de vista da ressocialização, o projeto já é um sucesso”, complementa.
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Flávia Maria da Silva reforça como a iniciativa foi importante para que ela possa trilhar um novo caminho. “Confesso que amadureci muito aqui na cadeia e me transformei. Apareceu uma oportunidade quando eu estava esquecida por todos. Um projeto que chegou e mudou meus pensamentos. Hoje vejo que, com a cooperativa, posso me reintegrar à sociedade longe da criminalidade. Sou uma mulher guerreira que tirou o bom do ruim”, sintetiza.
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Ressocialização de detentos como mudança de vida
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Não é novidade que o sistema prisional brasileiro está lotado e é ineficaz na ressocialização dos detentos. Essa realidade está longe de mudar: de acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias reunidos até junho de 2016, cerca de 42 mil mulheres estão atrás das celas – 656% a mais do que o total registrado no início dos anos 2000, quando a população carcerária feminina era de 6 mil.
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Esses números, junto com os da população carcerária masculina, ajudam a deixar o Brasil na quarta colocação dos países que mais prendem no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Além disso, 45% da nossa população carcerária (ambos os sexos) sequer foi julgada.
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O mesmo levantamento revelou que, em relação à taxa de mulheres em cárcere por 100 mil habitantes, o País sai da quarta posição para o terceiro lugar e fica atrás dos EUA e da Tailândia.
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Segundo Marino, a ressocialização é o principal fator com o qual o Instituto trabalha, principalmente para evitar que essas mulheres reincidam na criminalidade. “Se tiverem um trabalho, uma renda que garanta a sobrevivência delas e de suas famílias, mais facilmente elas vão conseguir virar a página. A maioria delas é formada por mães. Então, trabalhar para que não haja reincidência também é trabalhar por menos lares desestruturados.”
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Um novo motivo para lutar
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A luta de Tânia Rodrigues Corrêa, 34 anos, começou cedo. Seu pai faleceu quando ela ainda era criança. As lembranças não são boas: o pai era alcoólatra e batia muito em sua mãe. Hoje, Corrêa é mãe de três filhos e está privada de liberdade há três anos e cinco meses.
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“Apesar do meu pai ser alcoólatra, eu o amava muito. Abandonei os estudos aos 15 anos e depois conheci o meu primeiro amor. Achava que ele era um playboy, mas meses depois descobri que ele era filho do maior traficante da cidade. Aí eu já estava grávida e completamente apaixonada”, conta.
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Aos 18, Tânia teve o primeiro filho e, com o desejo de dar a ele tudo o que não teve, caiu de vez no mundo do crime. “Esqueci que o mais importante para meu filho era ter uma mãe presente. Mais tarde, engravidei novamente e, com a ajuda da minha mãezinha, consegui me afastar das drogas. Mas um antigo processo me levou de volta à prisão, desta vez grávida do terceiro filho. Quando eu achava que estava tudo acabado, que nunca seria uma mãe digna, tive essa rica oportunidade de me tornar uma cooperada. Descobri um novo talento dentro de mim e que, nesse lixo que é a cadeia, pode nascer não só uma flor, mas um jardim inteiro”.
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Marino explica que uma característica que diferencia esse projeto das outras iniciativas de trabalho no cárcere, além do foco no empreendedorismo, é que ele continua apoiando as reeducandas quando elas saem da prisão. “Algumas cooperadas já progrediram para o semi-aberto, uma foi libertada, e nós continuamos trabalhando com todas. Cuidamos de toda a logística para que elas recebam material, computem o tempo trabalhado e a produtividade, e continuem integradas na mesma cooperativa. Essa é a prova de que nosso compromisso com elas é um passaporte para uma vida longe do crime, definitivamente”, conclui.
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Fotos: Luiza Matravolgyi – H360.
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