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‘Tem música que não canto mais’, diz Mano Brown sobre letras machistas

Saiu no site FOLHA DE SP:

 

Veja publicação original:   ‘Tem música que não canto mais’, diz Mano Brown sobre letras machistas

 

Mano Brown e Francisco Bosco participam de debate no Espaço Cult

Por ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER

 

 

“Tem música que eu não canto mais. Outro dia tocou uma, e eu: ‘paaaaara, vamos ser linchados, se liga no momento do Brasil! As negona vão me matar amanhã, a gente não pode nunca mais falar essas coisas’.”

Com a palavra, Mano Brown, líder dos Racionais MC’s, reconhecendo que ficaram no passado os tempos em que cantava raps machistas como “Mulheres Vulgares”, de 1993, de versos como:

“Derivada de uma sociedade feminista

Que considera e dizem que somos todos machistas

Não quer ser considerada símbolo sexual […]

E o outro lado da moeda, como é que é? Pode crê!

Pra ela, dinheiro é o mais importante

Seu jeito vulgar, suas ideias são repugnantes

É uma cretina que se mostra nua como objeto.”

“Veja bem, passaram 25 anos, me perdoe, eu era apenas um garoto, era um outro Brasil, eu não tinha uma filha [Domenica, 18]. A gente tinha uma visão realmente machista”, afirma.

Este momento do Brasil no qual Brown se ligou é escrutinado pelo ensaísta Francisco Bosco em “A Vítima Tem Sempre Razão?” (Todavia). Debatido pelos dois nesta terça-feira (12), no Espaço Cult, o livro analisa como as redes sociais alicerçaram um “novo espaço público brasileiro”, do qual emergem palavras como “lacração”, “sororidade”, “assédio”, “feminismo”, “racismo” e “lugar de fala”.

E quem é Bosco para se meter a falar de minorias as quais nunca pertenceu? Terreno perigoso, ele reconhece na introdução da obra. “Já posso vislumbrar se formarem no horizonte as nuvens pesadas das desqualificações e ataques a priori pela minha mera condição de ‘sujeito de fora’ (no caso, totalmente de fora: homem, branco, heterossexual, cisgênero, de classe alta).”

Ele volta ao assunto no debate, quando trata o conceito de lugar de fala como uma “moeda de duas faces”.

“A primeira delas vai dizer, e de maneira correta e urgente, que a vivência concreta de indivíduos e grupos subalternizados dá acesso a uma dimensão dos conflitos que a abordagem teórica não é capaz de alcançar.” Em suma: “Como homem branco jamais vou ser capaz de encarnar a dor de uma pessoa negra, há um limite, um certo lugar que eu não alcanço”.

Mas há o outro lado da moeda que autoriza, sim, um “forasteiro” a participar de uma discussão que a princípio não lhe concerne (homens que empunham bandeiras do feminismo, por exemplo).

E seria estrategicamente burro, para minorias interessadas em avançar suas agendas políticas, “desqualificar previamente qualquer intervenção no debate público por pessoas que não pertencem a esses grupos, com a premissa de que elas necessariamente reproduziriam os interesses de sua estrutura se origem”.

Para Bosco, esse veto “vai contra o princípio da vida moral do sujeito”, que pode ser capaz de “transcender seu interesse particular” e apoiar lutas de outros nichos. Ou isso ou que se mande Karl Marx para o beleléu, sugere. Afinal, o que um burguês como o filósofo alemão teria a dizer sobre a experiência proletária?

TÁ RUIM, TÁ ÓTIMO

Por um lado, ponto para a internet, que deu sustância a vozes marginalizadas, como a dos movimentos negro, feminista e LGBTQ. “Vejo fundamentalmente com bons olhos o que está acontecendo no Brasil agora, tentando equacionar cinco séculos de perversidade social”, diz Bosco.

Por outro lado, a ascensão das políticas identitárias levou à falência o mito do brasileiro cordial, propulsionado pelos escritos de Sérgio Buarque de Holanda. Uma mudança bem-vinda, mas que pode descambar em excessos cometidos em nome de uma causa, afirma o autor.

Ele detecta perigosos efeitos colaterais, como linchamentos digitais que pouco colaboram para mudanças estruturais. “A estratégia opta pelo caminho imediato de encontrar um bode expiatório em indivíduos”, segundo Bosco.

Exemplo evocado é o da executiva americana que postou o “evidentemente irônico comentário”, antes de embarcar para a Cidade do Cabo: “Indo para a África. Espero que não pegue Aids. Brincadeirinha! Sou branca”.

Justine Sacco só tinha 170 seguidores no Twitter, mas sua mensagem viralizou e gerou reações como “seu nível de ignorância racista é tipo Fox News”. Quando aterrissou, após 11 horas de voo, já era: “trending topic” número um no Twitter. Foi demitida por sua empresa e teve sua vida devassada por “haters”.

No Brasil, a emergência dessa nova arena de discussão é consequência de três fatores, de acordo com o ensaísta carioca:

1) As revoltas de junho de 2013, que desnudaram as tensões sociais latentes no país;

2) O colapso do lulismo, “espécie de correlato político-institucional da cultura social da cordialidade”;

3) A popularização de Facebook, Twitter e outras redes sociais, megafones para toda a sorte de conflitos recalcados no passado.

Bosco parte de polêmicas recentes para montar seu esqueleto argumentativo –como as marchinhas “politicamente incorretas” banidas por blocos de Carnaval em 2017 (“Cabeleira do Zezé”, “Mulata Bossa Nova”) e a garota branca com câncer que usou um turbante para esconder a calvície e foi acusada por duas meninas negras de apropriação cultural.

Mano Brown é citado no livro como exemplo de um dos conceitos mais trabalhados no livro: o “bonding”, do inglês “to bond” (criar vínculos).

Os Racionais “adotaram enfaticamente” essa estratégia ao encharcarem seu cancioneiro com a máxima “mano é mano, playboy é playboy”, quase três décadas atrás. Naquele momento, avalia Bosco, “era imperiosa a necessidade de se criar uma tradição negra (e não mestiça, miscigenada, brasileira)”, dando cabo no mito da cordialidade brasileira.

Mas a tática pode servir de ratoeira, já que incentiva um grupo a se fechar em si mesmo. Citando Maria Rita Kehl, o autor diz que a emancipação que os Racionais propõem aos manos corre o sério risco de esbarrar na segregação que eles próprios produzem, ao se fecharem para tudo e todos que diferem deles.

Pois as redes sociais viraram solo fértil para atitudes isolacionistas. Daí a necessidade do “bridging” (de “bridge”, ponte), que é a capacidade de se conectar com outros grupos e tirar sua pauta do gueto, defende Bosco.

Parte das feministas caíram em cima quando a revista “TPM” fez uma grande reportagem sobre aborto, em 2014, e pôs o colunista da Folha Gregorio Duvivier, simpático à descriminalização da prática, como uma das três opções de capa que o leitor poderia comprar (as outras eram Alessandra Negrini e Leandra Leal). Não seria esperto usar um homem para sensibilizar outros homens que poderiam ver o assunto como “mimimi” feminista, mas podem dar ouvidos a um igual?

A lógica é a mesma. Bosco advoga que grupos identitários sejam mais abertos e não transformem “aliados fundamentais em adversários”. No debate no Espaço Cult, defende “maior equilíbrio entre essas duas dinâmicas sociais, o ‘bonding’ e o ‘bridging'”.

Ele se diz surpreso com o burburinho que o título do livro causou, sobretudo por alas do feminismo. Na crítica “O Crepúsculo do Esquerdomacho”, publicada na revista literária “Quatro Cinco Um”, a ativista Manoela Miklos, coautora do blog #AgoraÉQueSãoElas, da Folha, acusou Bosco de “reproduzir clichês de classe” e “tentar traçar limites para a atuação de minorias”.

“Talvez esteja na introdução o momento mais flagrante do subtexto que permeia o livro, certa dificuldade em lidar com o feminismo travestida de ‘preocupação’ com possíveis exageros.”

Quando a reportagem pergunta se, diante da polêmica toda, não faltaria uma convidada mulher para debater com ele e Mano Brown, Bosco diz discordar.

Para ele, a discussão sobre o feminismo ganhou proporções enormes e “está largamente em vantagem na discussão sobre esse livro”. Acabou sombreando, pois, outras igualmente importantes, como a do racismo.

TROCA INJUSTA

Cabe a Mano Brown dar voltagem a essa parte do debate. Contra o senso comum do ativismo que prega a retomada das raízes africanas, o rapper afirma que é no futuro “que a raça negra tá mais ligada”.

O que não pode, diz, é ter “uma troca injusta”. “Se ao menos fosse trocar o turbante por um carro 0 km… Pode levar o turbante.”

Os brancos querem se apropriar do candomblé? Bom pra eles. Os negros aprenderam “a ter ambição”, a saber apreciar “as marcas, o perfume”, e não querem ser tutelados sobre o que deveriam gostar. “Tirou a ambição do preto, você mata o preto.”

E a apropriação, segundo Brown, pode ser uma via de mão dupla. “Na medida do possível, a gente se apodera das coisas deles [brancos] também. Colocamos piano no samba. Ray Charles é pianista.”

Sem deixar de frisar que o Brasil “é uma máquina de matar pretos”, o autor de “Diário de um Detento” resgata a controvérsia do turbante —que para muitos do movimento negro deveria ser respeitado como símbolo cultural e de resistência, sem ser banalizado e monetizado como acessório de moda por brancos. No livro, Bosco lembra do desfile com o adereço no qual só desfilaram modelos de pele clara.

Brown ainda faz chacota de algumas apropriações, como o branquelo “que vai de camisa do Racionais para uma rave”.

 

 

 

 

 

 

 

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