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Stephanie Ribeiro: Tirem as mãos da nossa macumba

Saiu no site MARIE CLAIRE:    

 

Veja publicação original:  Stephanie Ribeiro: Tirem as mãos da nossa macumba

 

Colunista Stephanie Ribeiro escreve sobre os recentes episódios de intolerância religiosa contra adeptos do candomblé e da umbanda: “Que Exu abra os caminhos e deixe o respeito e a tolerância entrarem”

 

Cuidado que sou macumbeira
Chuta que é macumba
Está tudo dando errado: devem ter feito uma macumba pra mim
Não tenho medo que você coloque meu nome na macumba

As sentenças acima estão no cotidiano do brasileiro. E quando você é negro e usa algum símbolo que remete às religiões de matrizes africanas, como guias ou turbantes, essas expressões se tornam mais recorrentes no seu cotidiano, vindas de estranhos ou pessoas próximas. O Brasil, mesmo sendo o país que mais tem negros fora do continente africano, é também um dos mais intolerantes no que diz respeito às religiões de matriz africana, condenando ou tentando impossibilitar suas práticas, e sujeitando a diversas violências seus praticantes. Essas expressões acima citadas fazem parte desse contexto violento, em que adeptos da Umbanda e do Candomblé correm o risco de ser agredidos nas ruas em pleno século XXI, como fruto do processo de demonização das religiões que têm sua raiz nas tradições da África, algo que fica nítido nessa associação do termo “macumba” a algo perverso e que devemos ter medo.

Para começar, macumba é o nome dado para um instrumento musical de percussão africano. Entretanto, aqui no Brasil, é usado como termo genérico para todas as manifestações religiosas, em especial os chamados despachos, ligadas à cultura africana e praticados há séculos no país, por africanos escravizados e seus descendentes. Candomblé e Umbanda, mesmo sendo semelhantes, se diferem. Ambas são fruto da herança cultural e da memória trazidas nos porões dos navios negreiros, pelos africanos sequestrados de seu continente. Atualmente, são praticados por mais de 600 mil pessoas – segundo o censo de 2010 -, demonstração de como ainda existe resistência e resiliência no povo negro, que conseguiu manter as bases de sua cultura mesmo diante das adversidades estruturais e institucionais de processos de apropriação cultural, embranquecimentos, perseguições e criminalizações.

 

 

Ações violentas que serviram, e ainda servem, como formas de controle social da população negra, que se intensificaram e se institucionalizam no pós-abolição, afinal, o código criminal de 1830 não incluía perseguição para o que era tido como “feitiçaria”. Se a abolição se deu de fato em 1888, dois anos depois, em 1890, o código penal já incriminava todos ligados ao que se entendia como “práticas ocultas”, e isso inclui, em especial, os cultos afro-brasileiros. É evidente que existe uma relação nos dois fatos. Negros livres, retomando sua cultura e suas relações pessoais a partir dela, assustavam um Estado que, por anos, usurpou sua mão de obra, mas que tinha como meta seu extermínio.

Durante cerimônia de candomblé na Bahia, celebração aos orixás Iemanjá e Oxum (Foto: Mario Tama/Getty Images)

Foi a partir do século XX que, no cenário nacional, foi se pintando uma situação de repressão e CENSURA aos cultos afro-brasileiros, que tinha apoio não só dos meios legais, mas também da mídia, que os condenava de forma racista e ampliava o discurso da demonização para a população. Se perpetuou e naturalizou a prática de uma espécie de pedágio aos policiais que terreiros tinham que pagar para exercer suas crenças em paz. Não existe outra palavra senão CENSURA, essa que a elite progressista teme tanto, para definir o que vem sendo ser negro e candomblecista ou umbandista neste país. Em 1988, a constituição vigente tornou crime imprescritível e inafiançável a perseguição religiosa e, em 2007, foi instituído para 21 de janeiro o Dia de Combate à Intolerância Religiosa, numa homenagem a Mãe Gilda – em 1999, o rosto da mãe de santo baiana estampou a capa do jornal Folha Universal sob a manchete: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”; como resultado, seu terreiro foi destruído, seu marido, agredido e ela, em 21 de janeiro de 2000, sucumbiu à morte por enfarte. A realidade, no entanto, ainda é de preconceito e discriminação. As perseguições do século passado ainda estão presentes em pleno século XXI, e, mesmo após a morte de Gilda e o ataque de evangélicos, em setembro passado, circulou nas redes sociais um vídeo em que uma mãe de santo é obrigada por traficantes a quebrar o próprio terreiro – em 2015, uma menina de 11 anos levou uma pedrada ao sair de um culto do candomblé.

 

 

O ódio parte então de quem? De quem bate tambor para os orixás ou de quem acha que é normal jogar pedras numa criança e obriga uma idosa a quebrar o próprio terreiro? Não é normal odiar o Candomblé e a Umbanda! Sua religião e seu Deus podem ser outros, mas isso não te faz superior e nem te dá o direito de propagar o ódio e a violência. Porém, esses três casos mencionados não são manifestações isoladas, eles se somam às estatísticas que apontam que, só no Rio de Janeiro, de 840 terreiros, 430 foram alvo de discriminação e agressões.  Esse processo em muitas cidades vem se intensificando no avanço da presença de evangélicos nos morros e entre os traficantes. Diante da marginalização da sociedade, foi nas periferias pobres e nas favelas que muitos umbandistas e candomblecistas encontraram uma certa paz, mas, atualmente, muitos deles estão sendo expulsos de seus territórios pois nem todos têm consciência de que religiões e práticas distintas podem, e devem, existir de maneira harmônica, numa sociedade que se diz laica. Esse novo processo de imposição de uma única religião nos remete a forma como a imposição da religião católica foi feita no país, sendo a base da colonização. Para os sujeitos ditos “degenerados”, o processo da adoção do sincretismo, em especial da umbanda, é fruto dessa imposição do catolicismo na colonização que não foi só territorial: foi um processo cultural, subjetivo e de impacto psicológico nos sujeitos socialmente marginalizados.

Do outro lado, por desinformação, inclusive desse processo, que distanciou muitos  brasileiros do candomblé e da umbanda, parte da população acredita realmente que, em especial o candomblé, tortura e sacrifica animais. Mesmo que seja recorrente a quantidade de pessoas ligadas às matrizes africanas que enfatizam que animais são criados e mortos para o consumo nas chamadas oferendas, muitos brasileiros condenam tais práticas e usam essa desculpa para pedir a criminalização das religiões afro-brasileiras. Veja bem, mesmo que grande parte dos brasileiros coma carne, quando se trata dos tais “sacrifícios religiosos”, eles pedem ações de repressão, pois dizem ser uma violência contra os animais – uma incoerência enorme, que só reforça como, no fundo, não se incomodam com os animais em si, mas com a existência das religiões afro-brasileiras.

Mulher durante uma cerimônia de candomblé em Itaborai, na Bahia  (Foto: Mario Tama/Getty Images)

Incômodo esse que não pode ser desassociado nem um pouco da palavra RACISMO, o RACISMO RELIGIOSO se manifesta muito fortemente no Brasil. Mesmo que no fim do ano todo mundo se vista de branco e faça oferenda para Iemanjá, a senhora das grandes águas, provavelmente a orixá mais conhecida do país, ou coma comida de santo com prazer e diga que ela é a cara do país. Continuamos odiando tudo que parte dos sujeitos negros e que tem suas raízes na África, e isso inclui pais e mães de santo, oferendas, terreiros, todos símbolos conectados às suas raízes. Não se trata das práticas em si, e sim do medo do empoderamento que se dá a partir do conhecimento de sua identidade. Então, tirem as mãos com ódio da nossa “macumba”. Mesmo aqueles que nunca pisaram num terreiro têm plena consciência de que suas práticas religiosas são superiores e que aquelas de origem africana representam retrocesso, selvageria e ódio. Nada mais do que puro preconceito, que ignora a riqueza na conexão por meio da cultura religiosa do Brasil com a África e a América – além do fato de não entender que o verdadeiro crime foi a COLONIZAÇÃO e não a resistência a essa. Colonização que precisamos deixar de reproduzir, mas que se mantém na tentativa de impedir que, em especial negros, possam vivenciar suas raízes. Que Exu abra nossos caminhos.

 

 

Sim, Exu, aquele que não é diabo nem santo, aquele que, como todos os orixás, tem comportamento humano, aquele que guarda as encruzilhadas, o mensageiro, aquele que foi o primeiro a ser demonizado pelo medo branco colonizador. Que Exu abra os caminhos e deixe o respeito e a tolerância entrarem.

Crianças durante ritual de candomblé em Cachoeira, na Bahia (Foto: Mario Tama/Getty Images)
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