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Stephanie Ribeiro: Por que Anitta incomodou os negros com o clipe de “Vai Malandra”?

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:

 

Veja publicação original:   Stephanie Ribeiro: Por que Anitta incomodou os negros com o clipe de “Vai Malandra”?

 

Na coluna #BlackGirlMagic desta semana, Stephanie Ribeiro reflete sobre as acusações de apropriação cultural feitas a Anitta por seu visual no videoclipe da música “Vai Malandra”

 

Em agosto deste ano, foi publicada uma foto da cantora Anittacom tranças, bronzeada, em cima de uma laje no Morro do Vidigal, usando um biquíni de fita adesiva preta. A foto, depois descobrimos, era uma prévia do clipe que foi lançado nesta semana. Anitta é sem dúvida um fenômeno. A mais importante cantora brasileira contemporânea no que diz respeito à visibilidade, ao alcance e à influência. Mas sua imagem no videoclipe de Vai Malandra foi apontada como prova de “apropriação cultural”.
Por mais que eu compreenda, sempre digo que quem coloca o uso de tranças, e até mesmo da estética que ela criou para o vídeo, como apropriação cultural, não se detém sobre o mais importante que é Anitta usar a negritude quando lhe convém. O debate, na verdade, deveria ser sobre identidade e conveniência racial.

No videoclipe, Anitta repete as tranças que usou durante uma viagem à Bahia neste ano. A pergunta que fica é: Por que no Vidigal e na Bahia, espaços de maioria negra, ela optou pela mesma estética? Tanto na foto de sua chegada à Bahia, quanto no clipe Vai Malandra, a cantora aparece com um tom de pele mais escuro, bronzeada. Por que? Por fim, por que em outras ocasiões ela assume uma estética que não remete a uma certa “negritude”?
Além disso, repararam que o visual de Anitta é bem parecido com o de Juliana Paes? Mas que ambas nunca foram chamadas de negras nem se posicionam como negras midiaticamente? Juliana Paes tem um irmão negro. Evidentemente negro e, mesmo assim, essa nunca foi uma questão levantada pela mídia.
Posso dizer com absoluta certeza que, tanto para Anitta, quanto para Juliana, ser mestiça, de família interracial, não levou-as serem consideradas negras _ pelo menos não no Brasil. Ambas ocupam um espaço de sucesso e visibilidade, então, provável que não queiram “regredir”, afinal, ao contrário do que alguns ativistas negros acreditam, não é desprivilégio sair de uma família miscigenada e não ser visto como negro. Desprivilégio estrutural é ser visto como negro, pois isso significa ser tratado como tal e carregar a MARCA.

Segundo questionamentos colocados pelo ativismo negro, essas duas mulheres poderiam, de alguma maneira, escolher qual identidade assumir _é evidente que já escolheram. Para mim, enquanto feminista negra, não faz sentido forçar negritude para quem escolheu que o melhor é não ser negro. Assumir-se negro significa ter responsabilidades, mesmo que alguns neguem o papel de ativista. O ser negro é uma consciência coletiva, não dá para estar. Somos ou não somos, e não é possível voltar atrás, pois é a conexão entre consciência e identidade. A MARCA que carregamos, a cor de nossa pele, é o fator que nos faz sermos vistos como negros. Mas é a nossa consciência que faz nos vermos como negros.

 
O mal uso do conceito de “tornar-se” negro é consequência de muitos desconectarem a materialidade de nossa consciência racial – e isso é impossível. A isso, somam-se outras confusões sobre as consequências da mestiçagem e da porcentagem da população que é fruto desse processo. Se você leu O Cortiço, vai lembrar da Rita Baiana. Ela foi a primeira personagem da literatura nacional com quem me identifiquei em meu histórico racial. Digo que, por mais que a gente entenda que a “mulata” carrega uma série de símbolos para ser designada como tal, para mim, o principal é o tom da pele, negro mais claro, que supostamente evidencia a mistura. A palavra mulata é racista porque, em sua etimologia, tem como um dos significados a derivação de mula, animal fruto da relação entre um cavalo e uma jumenta.

 

 

Podemos dizer que não existe diferença no tratamento entre negros estruturalmente, mas existe diferenças de tratamento. Negar isso seria tapar o sol com a peneira. Basta lembrar, por exemplo, que Nayara Justino foi desbancada do posto de “globeleza” e substituída por outra mulher, também negra, mas de pele mais clara. Isso é COLORISMO. Não estou afirmando que ser uma “globeleza” é um privilégio, mas que uma mulher negra foi considerada digna de ser exibida naquelas míseras chamadas na TV e a outra, não. Para mim, a existência tão forte do colorismo em nosso país só reafirma que o racismo no Brasil é de MARCA. Sendo assim, para nenhum dos negros ele é confortável _mas ele atua com nuances distintas quando não estamos tratando apenas do estrutural.

 
Por isso, se levantam alguns pontos sobre Anitta. Alguns ativistas negros dizem que ela é negra, e recorrem a fotos de infância e de sua família para defender essa tese. Outros, afirmam que Anitta não é negra. Ela seria apenas mestiça e, no Brasil, socialmente vista como branca. A própria Anitta diz que no Brasil ninguém é branco.

Juliana Paes muda o visual para Bibi  (Foto: Divulgação)

Invariavelmente, os discursos que afirmam sermos todos mestiços são usados sempre que o debate racial é proposto, mesmo que no fundo, em dados, o Brasil nem seja o país onde a mestiçagem se mantém tão forte como nosso imaginário acredita: a maioria dos casamentos ainda ocorre entre pessoas da mesma identidade racial, segundo pesquisa do IBGE. A raça é um fator determinante nas relações afetivas. Isso quebra totalmente a ideia de que não existem “brancos” no país. Eles não só existem como casam entre si, mantendo, assim, os poderes estruturais e bens adquiridos entre seus semelhantes, quebrando a lógica da suposta democracia racial. Há muito tempo, o casamento é um acordo de negócios, e a identidade racial no Brasil indica classe e lugar social.

 

 

Por isso, não gostei do clipe da Anitta _mesmo admirando muito seu trabalho. Achei bem triste que, em nenhum momento, ela use as tranças ou o aplique de cabelo. No vídeo gravado no Morro do Vidigal, de alguma forma, ela se “fantasia” de negra. Dava para fazer tudo aquilo sem precisar dessa fantasia, que vai desde a pele bronzeada aos cabelos escolhidos e até mesmo à celulite, que aparece apenas em Vai Malandra. Me sinto mal por ver como nossa estética negra ainda é uma “fantasia”. Acho que faz parte do trabalho dela como cantora e artista essa proposta, mas ela é uma mulher de origem periférica, não precisa emular algo.

 

 

Mas Anitta tem uma grande audiência, por isso, precisamos deixar claro que nem toda pessoa de pele bronzeada é negra. Nem toda pessoa de cabelo cacheado armado é negra. Nem toda pessoa que tem parentes negros é negra no Brasil. Claro que cabe a cada um de nós ter honestidade e ética com nossa identidade racial. Não posso e não vou fingir ter uma identidade que não tenho. Sou negra. Não há como hesitar sobre essa identidade: posso afinar o nariz e usar cabelos lisos mas, mesmo assim, não serei vista como branca. Ludmilla, outra cantora de funk, deixa isso evidente. Por isso, não tenho a resposta certa sobre identidade racial. Acredito ser mais fácil pensar nisso em outro contexto. Evidentemente, Anitta e Juliana Paes seriam latinas entre os norte-americanos, mas, eu, seria afro-latina. É sobre essas possibilidades do ser, e muitas vezes da negação da materialidade disso, que estamos tentando debater. Então, que continuem as problematizações, mesmo que alguns chamem de “mimimi”, afinal, Vai Malandra está aí e incomodou pessoas negras. Em especial nós, mulheres negras.

 

 

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