Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE :
Veja publicação original: Stephanie Ribeiro: Minha geração está lutando por sua liberdade sexual?
A colunista Stephanie Ribeiro reflete sobre consentimento e “pistas corporais” a partir de denúncias de assédio como a feita contra o diretor e ator norte-americano Aziz Ansari
Li muito sobre o caso do ator e diretor norte-americano Aziz Ansari e me peguei refletindo sobre algumas narrativas que encontrei a respeito da história de assédio que envolve o artista. Não estou aqui para falar de Aziz e do relato de “Grace” – codinome da garota com quem ele se encontrou e que descreveu uma noite repleta de tentativas dele de fazer sexo, todas recusadas por ela – , mas sobre como algumas mulheres jovens, como eu, estão cobrando que os homens leiam suas “pistas corporais” – e estou realmente tentando entender quais são as pistas corporais capazes de serem lidas e quais não são capazes.
Nossa, como assim? Você não é feminista? Sim, eu sou, mas realmente acho que há diferentes formas de expressar a mesma coisa corporalmente, algumas mais explícitas, outras mais sutis. A percepção sobre as mais sutis varia de acordo com cultura, gênero, raça e classe dos envolvidos. Estou dizendo isso pois acho que subjetividade e consentimento são coisas que não caminham juntas. Escrevo isso após ler um texto de Amanda Alcantara publicado no site The Lily, com mais de 8 mil visualizações, no qual ela dizia:
“Lembro de ir para casa com um cara que conheci numa festa. Nós tínhamos uma química tão boa na pista de dança, e eu estava animada. Já imaginava que fosse um encontro de uma noite apenas, e não estava buscando nada mais do que isso. Fomos para a casa dele, e, imediatamente, ficou evidente que ele não queria fazer sexo comigo, mas, sim, me usar para seu próprio prazer. Ele não se importava com o que eu sentia, se alguma coisa doía, se aquela posição era desconfortável. Ao final, me lembro de me separar completamente do meu corpo, pensando que seria melhor ficar ali parada para que ele pudesse terminar. Eu poderia me levantar e me afastar. Mas eu já tinha entrado em seu apartamento, deixado que ele iniciasse o sexo, deixei ele chegar no meio do caminho. Como eu me atreveria a pedir para parar agora? (…) Foi, afinal, um encontro de uma noite. Eu não o conhecia. Mas não é pedir muito querer que eles considerem que, se há alguém no quarto com você, é necessário estar atento às suas pistas corporais.”\
A análise completa está neste link
Ocupo socialmente um lugar parecido com o de Amanda, pois ambas somos negras. E sei muito bem que uma mulher negra dizer: “Não quero” tem um peso ainda maior, dado que corpos negros são hipersexualizados em diversas culturas. Eu realmente acredito que algumas mulheres empurram quem as está atacando, cruzam as pernas, esperneiam, ou, simplesmente, não se movimentam tamanho é o choque diante de um assédio sexual. Agora, quando a relação foi consentida e, em algum momento, uma das partes entendeu que não queria mais, como ler esses “sinais”. Eles de fatos são tão evidentes como os do relato acima?
Faço esse questionamento pois acho que, de alguma forma, nosso debate sobre ser sexualmente livre não conseguiu ainda deixar claro que não devemos sentir culpa por não querer transar. Concordo com Amanda que a sociedade ensina que mulheres não podem dizer “não”: se elas “provocaram”, devem continuar. Acho importante expor isso em textos como o dela, para que os homens passem a refletir sobre o tema. Mas me preocupa colocar que, se fossem interpretadas, as “pistas corporais” evitariam situações como as vividas por Grace ou Amanda. Pistas corporais como “se desassociar”, e não pistas corporais que me parecem mais claras como, por exemplo, empurrar o cara pra longe.
Isso é plausível? Minha dúvida é: A leitura sobre os corpos é a mesma? Os corpos femininos e masculinos não performam da mesma forma, sendo assim, se entende que nossa manifestação corporal é pautada por gênero. Então, como podemos ter certeza de que todos sabem ler algumas pistas corporais? Se desassociar é se “desligar”? Como se desliga durante o sexo? Imaginei que é tipo não se mover. Mas não se mover, ficar com o corpo mole, pode ser também uma resposta após um orgasmo? Homens estupradores dizem que a mulher não se mover significa, para eles, consentimento, mesmo que não seja. Então, colocar no campo da leitura do outro o próprio corpo não é perigoso?
Essas são dúvidas sinceras e reais. Estamos falando de sexo entre duas pessoas que estavam de total acordo e em, algum momento, coisas não ditas transformaram isso em algo traumático para a mulher. Afinal, ela não disse como se sentia, e ele não perguntou. O não dito transformou tudo numa história em que se joga a responsabilidade para as pistas corporais. O perigo das pistas corporais é que sexo é uma coisa muito pessoal no sentido de que cada corpo tem uma conduta sexual, cada pessoa no mundo transa de uma forma, cada um tem uma narrativa sexual totalmente diferente e, por isso, falar de consentimento claramente, antes, durante e até mesmo depois do sexo em si pode aparar arestas, principalmente quando é apenas o sexo de um único encontro com uma pessoa que você não tem intimidade.
O problema para mim é quando pessoas da minha idade dizem querer que suas manifestações corporais, tidas como sutis, sejam entendidas e respeitadas, e simetrizam isso com os relatos de abusos, como fez a própria Amanda, que se disse coagida ao longo do texto. Fico na dúvida: Ela foi coagida por ele ou pela construção social dos papeis que homens e mulheres devem ter em relação a sexo?
Para mim, muitas mulheres da minha geração querem ser sexualmente livres, sem ter que falar com seus parceiros abertamente sobre o significado disso. Concordo que dá medo dizer isso ao vivo, mesmo já o tendo feito e voltado para casa ao lado de um cara emburrado, mas me sentindo plena por saber que fui até onde estava a fim. A questão é que nem em mensagens a gente quer falar sobre. Esse moço estava transando comigo, e eu acabei dizendo que não queria mais. Primeiro, ele ficou com ódio. Depois, não quis mais trocar mensagens e, em seguida, evidentemente ficou com vergonha e frustrado.
Quando penso porque não quis mais, não era por eu não estar gostando, mas, sim, porque o ambiente não me agradava. Por outro lado, hoje vejo como minhas expectativas eram muito mais sobre me encaixar num modelo de situações colocadas em minha cabeça, do que o que eu, Stephanie, realmente queria ou não. Ao dizer não quero mais, e ser sincera comigo mesma naquele momento, me afastei de um homem que não era capaz de dialogar e que, portanto, não seria um bom parceiro. Como sempre: dizer não para alguém é, muitas vezes, dizer sim para você.
O problema é, numa sociedade machista, homens e mulheres são educados para ter expectativas diferentes sobre trocas afetivas e sexuais, o que transformou o debate feminista sobre a sexualidade livre numa pauta liberal. Nós, feministas, temos de retomar esse diálogo sob nossa perspectiva e falar sinceramente o que queremos e o que não queremos. A integridade física e mental de mulheres continua em jogo.
Concordo que dizer NÃO é muito difícil, pois temos medo da violência _e que mulheres não podem ser forçadas a nada. Mas me lembrei de uma amiga me contar sobre um cara que transava muito mal, mas, mesmo assim, ela namorou com ele um tempo. Fiquei pensando: Será que ele sabia que não atingia o que ela queria já que, segundo ela, ele era muito egoísta? Temos medo da violência após dizer o que sentimos? Sim, com certeza. Mas parece que nós, mulheres, ainda temos que fingir que não gostamos de sexo, e que isso não é importante quando não falamos sobre como nos sentimos, mesmo com quem fazemos sexo e namoramos. Numa outra situação, uma amiga contou que um cara gozava muito rápido: eu realmente acho que alguns caras fazem isso porque são egoístas, noutras vezes, penso que por sermos educados sexualmente a partir de filmes pornôs, em que as transas durammais de 40 minutos sem parar, acreditamos que é normal um homem demorar todo esse tempo para gozar.
A questão central é: Como falar sobre a forma que transamos, sem falar de como aprendemos a transar?
Muitas feministas liberais julgam que a pornografia pode ser feminista, quando a maioria dos filmes pornográficos mostra penetrações intermináveis, de pessoas desconhecidas e que no máximo a mulher fica parada gemendo, ou por cima gritando. Para mim, a pornografia tem um papel muito importante em como transamos e o que queremos com o sexo, mesmo numa sociedade em que mulheres falam do seu feminismo sem tabu publicamente. Na minha percepção, a conta nunca vai fechar de sexo pleno para nós, numa contexto que homens e mulheres aprendem a transar com porno. Afinal, quando você está transando com um cara que foi ensinado na cultura da pornografia, e fica imóvel embaixo dele, isso pode ser muitas coisas. Por isso, precisamos trazer novamente para nós o debate interseccional, ao perceber como a conduta sexual dos homens tende muitas vezes nem sequer ser satisfatória para eles, pois é performance teatral de etapas que devem ser compridas, e ficam tentando assim alcançar o modelo equivocado de masculinidade.
Ao meu ver parece que estamos acreditando na criação de relações sem diálogo e da mudança do mundo machista, a partir do “feeling” masculino de homens machistas. Quando deveríamos estar demarcando claramente que consenso não é subjetivo! Ao se pressupor subjetividade na narrativa de assédios a partir da própria narrativa feminina que se coloca como vítima, nós perdemos num mar de confusão que pode legitimar homens que dizem ter “entendido” pelo comportamento corporal de mulheres que elas queriam quando são acusados de estupros. Estamos perdendo uma fatia importante para o avanço do debate sobre liberdade sexual, ao não falar dos encontros sexuais e as coisas não satisfatórias.
Claro que é essencial discutir sexo publicamente, mas uma coisa que aprendi no debate sobre liberdade sexual, é como as pessoas performam até mesmo para falar de suas condutas sexuais. Conheci na minha vida real e acho triste, mulheres feministas que estavam evidentemente infelizes pelas relações sexuais que tinham, mas que nas redes sociais falavam de si mesmas como felinas selvagens gozantes que adoravam a forma como eram tratadas em suas trocas sexuais. Parece que dizer “foi um saco” não é tão legal quanto fingir que está tudo bem, quando não está. E isso não só para sua plateia virtual, mas até mesmo para a pessoa que você acabou de transar. Ainda mais em épocas que tudo é virtual, e que por trás de um computador é possível simular ser quem você quer ser. Surge a contradição: a infelicidade do não gozo, da frustração, das expectativas sexuais diferentes, numa era que se fala muito sobre isso. Mesmo em uma série de mulheres “sexualmente livres” como She’s Gotta Have It, você vê uma mulher que goza em todos os encontros com os seus três parceiros e que nem sequer tem debates mais profundos sobre consentimento com eles.
Parece que está sendo dito que sexo é uma coisa que todos nós já sabemos fazer. Inclusive que “saber” o que nos faz gozar é algo trivial quando se é mulher. Quando vivemos numa sociedade do abuso e do machismo, é preciso começar a jogar as cartas na mesa que tanto no campo público quanto no privado: não sabemos ter condutas sexuais satisfatórias nem com nós mesmos, nem com os outros. E tudo bem falar disso! O debate sobre consentimento, ele não pode existir só quando acontecer algo traumático, pois falar de sexualidade é falar de consentimento. Qualquer ato não consentido é estupro, é abuso.
Por isso para mim subjetividade e consentimento são muito distintos. Não quero culpar mulheres, quero só que a gente amadureça coletivamente sexualmente e afetivamente. Enquanto a gente negar aceitar que homens e mulheres são educados de forma diferente sexualmente ainda em 2018, nunca a conta vai fechar. Mulheres são educadas para buscar relacionamentos sérios e a nunca evidenciar seus desejos sexuais, ainda. Já homens são educados para serem sexualmente ativos, até mesmo quando não conseguem mais uma ereção. Construções sociais intrínsecas, que não acabam quando você é mulher e entra na universidade e diz: somos todas vadias. Ainda mais quando se é mulher e branca, pois essas são as mais educadas para verem seus corpos e sexualidades como símbolos da pureza e castidade.
E mesmo que sua família não diga isso diretamente para você, todo o imaginário é construído assim: novelas, publicidades e filmes. O que quero dizer, é que nós feministas falhamos muito achando que apenas dizer: sou sexualmente livre. Nos faz de fato livre da pressão dessas condutas, até mesmo de nos pôr num lugar de fragilidade com medo de desagradar o desejo de homem. Nossas expectativas, não condizem com o nosso discurso políticos. E isso se perdeu e precisa ser retomado, porque a mesma geração que fala: homens leiam meu corpo. É a que se força ver feminismo e até empoderamento, no sucesso de filmes como 50 Tons de Cinza (50 Shades Of Grey). Ou até mesmo, que compra a narrativa de filmes que a personagem feminina é “forte”, mas a sexualidade dela é sempre frágil, totalmente desconhecedora do prazer e que precisa ser iniciada por um homem: Mulher-Maravilha.
Não sei se minha geração está pronta para apostar apenas em sinais não verbais como fechar os olhos e pensar em outra coisa. Infelizmente a gente ainda precisa falar. Digo infelizmente, pois isso significa que ainda precisamos lutar por nossa sexualidade ser de fato livre. Nós somos vítimas, mas também somos capazes de mudar essa realidade ao perceber que a sexualidade livre só será uma realidade não quando a gente for capaz de fazer sexo no primeiro encontro, mas de perceber quais são nossas expectativas e limites, e por nossas escolhas em primeiro plano sem medo de falar sobre elas com quem nos relacionamos. Para isso não basta pedir que homens leiam nossos corpos, mas que a cultura toda mude, até para que enquanto mulher a gente nao tenha medo de dizer o que pensa, para quem de alguma forma nos fez ter expectativas sexual. Nós mulheres precisamos nos apropriar de fato da nossa sexualidade. Nós mulheres precisamos entender que numa cultura machista, nossa liberdade é uma luta diária.
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