Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Stem: a nova equação do feminismo
.
Por Luiza Karam
.
Quantas cientistas, matemáticas e engenheiras você conhece? Provavelmente, poucas. Enquanto o mercado de trabalho migra para a tecnologia, ainda somos menos de 30% dessa mão de obra no mundo. Tábita, Paula, Stella e Renata, exceções a essa regra, contam à Marie Claire como brigam por respeito, salários maiores e pelo fim do assédio moral e sexual em laboratórios, escritórios e universidades
.
Aos 12 anos, a paulistana Renata Wassermann, 47, programou seu primeiro computador. Ela e os irmãos, dois meninos, revezavam um TK82C, um dos primeiros modelos pequenos e acessíveis, presente do pai engenheiro. Boa aluna de matemática, Renata vibrava com as possibilidades da máquina. Toda semana, ia à banca de jornal comprar um novo fascículo do manual de computação, para criar joguinhos e experimentos: os programas vinham descritos na revista, e a adolescente digitava cada número com a minúcia que lhe é peculiar. Renata tem a fala pausada, baixa, e sorri enquanto conversa. “Morava numa casa bem masculina. Tive sorte por já carregar comigo a cultura do videogame.” Hoje, vive de passar adiante a chance que teve, seja como professora do IME, o Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, seja à frente de um projeto para ensinar programação a alunas do ensino médio da rede pública. “É importante mostrar às meninas que elas têm essa possibilidade. Não só porque uma sala de aula equilibrada em gênero rende muito mais, mas também porque essa postura ajuda a derrubar estereótipos que lamentavelmente acompanham as mulheres da área ao longo da carreira.” (Ela afirma com propriedade, já que, volta e meia, recebe e-mails de colegas que a incumbem junto das outras – poucas – professoras do departamento de encargos como comprar o presente das secretárias em datas festivas ou agendar a pintura das paredes das salas da coordenação.)
.
De berço
.
Renata também foi aluna da USP. Naquele tempo, idos dos anos 90, já achava que havia muito poucas mulheres ao redor (as alunas eram 20% da classe). “Outro dia, dei uma prova numa sala com 43 alunos. Desses, só duas eram meninas. Ou seja, um percentual de 5%”, conta. Mas nem sempre foi assim. No princípio, computador era coisa de mulher. A primeira turma de formandos do IME, de 1974, era composta essencialmente delas – 14 numa sala de 20. Quem desenvolveu o primeiro algoritmo para ser usado por uma máquina foi a inglesa Ada Lovelace (1815-1852).
.
Só nos anos 70 ganhou vez uma nova realidade. O computador pessoal popularizou-se, a tecnologia virou negócio e tornou-se sinônimo de riqueza, inteligência e de um mercado com expansão recorde – e predominantemente masculino. Com o poder econômico, a sigla usada para nomear os campos de conhecimento que alimentam a nova revolução industrial, STEM (em inglês, ciência, tecnologia, engenharia e matemática), ficou praticamente restrita aos homens. As mulheres somam menos de 30% do todo. E representam só um quarto dos pesquisadores do mundo. No Brasil, menos de 20% dos programadores são do sexo feminino, e apenas três a cada 20 matrículas nos cursos de tecnologia são feitas por elas.
.
No mês passado, a Disney divulgou uma pesquisa feita em São Paulo, Buenos Aires e Cidade do México em parceria com a Unesco que chamou atenção para o fato de nove em dez meninas entre 6 e 8 anos associarem saberes do STEM a capacidades masculinas. Outras pesquisas também apontam que elas são menos estimuladas em tecnologia, pela mídia, na escola ou em família. Um estudo de 2017 da Microsoft mostra que as mulheres tendem a se considerar menos aptas às carreiras de exatas com o passar do tempo. Aos 11, as meninas se interessam por tecnologia, mas, aos 15, desistem. Entre as razões, falta de confiança. Por essa disparidade, a projeção de equidade salarial tornou-se ainda mais cruel. O último levantamento do Fórum Econômico Mundial prevê que levaremos 217 anos para ganhar o mesmo que os homens.
.
Machismo velado
.
A bióloga gaúcha Tábita Hünemeier, 39, especializou-se numa área dominada por homens, a genética de populações humanas. Cresceu na carreira desviando de decisões pessoais que prejudicavam a profissão – isto é, das profissionais mulheres: adiou casamento e filhos e desenvolveu um trato discreto e a fala firme e objetiva. Na faculdade, acompanhou algumas colegas pendurarem o jaleco depois de casar ou engravidar, já que se viam incapazes de manter o ritmo de pesquisa. Também por ouvir tantas histórias de desrespeito no convívio entre veteranos e jovens pesquisadoras, acostumou-se à fama de durona. Mas nem isso a poupou. “Já ouvi críticas ao meu jeito junto à justificativa: ‘Ah, isso é porque ela não tem filhos ainda’. O assédio é estrutural. Tenho de peitar desconfianças em relação às minhas capacidades desde o início”, diz ela, que já ganhou prêmios por seu projeto pioneiro, que busca identificar as bases genéticas que diferenciam os nativos americanos das outras populações do planeta. “Não sou competitiva. O que me motiva é fazer o que amo e talvez inspirar outras mulheres que sonham entrar na área – e se manter nela.”
.
“Mulheres na ciência: por que tão poucas?”, questionava um artigo pioneiro da revista Science, em 1965. Já àquela altura, os argumentos eram claros: incompatibilidade da carreira com maternidade e casamento, falta de independência da mulher, influências familiares. Até hoje, 97% dos prêmios Nobel de ciência foram entregues a homens. Em 2012, um estudo da Universidade Yale sobre a disparidade de gênero na ciência enviou a 127 professores de STEM dos Estados Unidos currículos idênticos de dois personagens fictícios, John e Jennifer. Estavam lá os mesmos trabalhos publicados, projetos iguais, a mesma experiência e formação. E só uma diferença: o gênero. Resultado? Para os avaliadores, Jennifer tinha menos competências que John e deveria ganhar 12% menos.
.
.
A realidade no Brasil segue essa toada. Uma análise realizada com mais de 100 mil pessoas e divulgada este ano pela startup brasileira de recrutamento Revelo mostra que candidatas da área de tecnologia recebem, em média, 18% a menos que os homens. E não por serem menos experientes; segundo a pesquisa, a escolha é enviesada: recrutadores abordam mais homens. E, a elas, oferecem menos.
.
.
Donas da banca
.
Diretora-geral do PayPal no Brasil, Paula Paschoal, 36, é uma porta-voz em combate a esse gap nos negócios. “O sucesso da companhia resulta da diversidade”, afirma. Há sete anos na multinacional, credita à igualdade salarial e à equipe mista, pilotada na maioria por mulheres, os avanços e políticas tão inovadoras da empresa de tecnologia. E ela nem sequer vem do STEM. Formada em administração de empresas, Paula começou na área comercial e aprendeu na marra os traquejos da tecnologia. Também na prática criou jogo de cintura para lidar com o mundo corporativo: “Nunca me abalei pelo machismo”, diz ela, mãe de Maria, 3, e Ana, 1. “Mas é necessário um esforço contínuo não só das corporações, mas também de entidades governamentais, não governamentais e educacionais, para que mulheres e homens tenham as mesmas chances.”
.
Privilégios
.
Não à toa, as mulheres que você vê nesta reportagem são brancas, cis, loiras. Tiveram instrução e recursos para escolher áreas complexas, lapidar seus talentos e lidar com os desafios do STEM. “O campo é elitizado”, diz a engenheira civil Stella Colussi, 30. Filha única e ex-aluna de um colégio tradicional da elite paulistana, assim como da concorrida Escola Politécnica da USP, ela era uma entre seis garotas – nenhuma negra – quando ingressou na faculdade, numa sala de 60. Trabalhando em canteiros de obras, surpreendeu-se: as piadinhas e investidas vinham dos colegas de profissão. “Duvidavam da minha capacidade; se demorasse numa conta ou para dar ordens, diziam: ‘Você tem pulso suficiente?’. Fora os olhares e risadinhas nas reuniões, como se dissessem: ‘Lá vem o rostinho bonito’. Eu sentia necessidade de me provar. Além da frustração, porque conheci muitas mulheres talentosas na área, mas a impressão era de que, de repente, elas sumiam. Me perguntava: ‘Por que não viram líderes?’.”
.
.
Hoje, ela quer usar dessa consciência para tentar fazer a diferença. A ideia é cursar um mestrado em impacto social. Por enquanto, é voluntária do fundo patrimonial da Poli, que capta doações e aplica os recursos em projetos da faculdade, para pluralizar as oportunidades no câmpus. No mês passado, a Poli elegeu uma diretora mulher pela primeira vez em 124 anos. “Ainda somos só mais uma das muitas minorias do STEM. O importante é se fazer ver. Uma luta de cada vez”, diz Stella.
.
Styling: André Puertas / Produção-executiva: Vandeca Zimmermann / Beleza Maquiagem Carlos Rosa (Capa MGT) e Anderson Ayres (Capa MGT) com produtos NARS e Lowell
.
.
.
.