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Veja publicação original: Sobre discriminação de gênero em preços de bares e assemelhados
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Não há fundamento constitucional e tampouco legal para sustentar a ilegalidade da prática
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Por Amanda Flávio de Oliveira
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Milton Friedman advertia que o Estado não deveria se imiscuir em assuntos delicados, sobre os quais não poderia esperar que a sociedade tenha posição unânime ou minimamente majoritária. A ação estatal deve se limitar àquelas situações em que as pessoas, em geral, compartilham visões comuns.
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O risco de se violar essa regra geral, na opinião dele, é que “toda ampliação da gama de questões para as quais se busca acordo explícito distende ainda mais os fios delicados que mantêm junta a sociedade. Se chegar ao ponto de tocar questões que envolvam diferenças profundas entre as pessoas, é até possível que esgarce a sociedade.”1
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A reflexão faz pensar e pode se referir a muitas situações sobre as quais o Estado contemporâneo andou se infiltrando. Em especial, vale para situações relacionadas a costumes, que, por essência, deveriam ficar à margem da lei.
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Recentemente, gerou debate a revisão realizada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, em nota técnica que versava sobre a prática recorrente de bares e assemelhados de cobrar valor diferenciado (a menor) para ingresso de mulheres. Nota Técnica anterior, de 20172, considerava a prática ilegal, ao passo que a nova Nota, de 18.03.20193, julgou-a legal.
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Esclareça-se que, embora sem caráter vinculante, as notas técnicas da Senacon servem como norteadoras para o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, constituído por quase hum mil órgãos e entidades espalhados por todo o território nacional.
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A leitura das duas Notas evidencia uma circunstância corriqueira para os operadores do Direito, embora constitua motivo de muita estranheza para não-juristas: a possibilidade de se sustentar, legal e constitucionalmente, duas posições antagônicas. Em ambas as notas técnicas, vislumbra-se que o ordenamento jurídico foi perscrutado, e ofereceu bases para sustentar suas conclusões. Qual das posições está correta?
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A verdade é que as motivações extrajurídicas das notas permitem encontrar um espaço seguro para reflexão. A primeira nota, claramente, informa estar-se diante de uma motivação moral. Nela, infere-se que as mulheres são convidadas a pagar menos em bares e assemelhados por estarem sendo objetificadas, usadas como “iscas” para a atrair os homens. Essa situação seria imoral, e deveria ser coibida pelo Estado. Nos termos da Nota, “…a mulher não é vista como sujeito de direito na relação de consumo em questão e sim como um objeto de marketing para atrair o sexo oposto aos eventos, shows, casas de festas e outros”.
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Observa-se, na interpretação do fato (venda mais barato de ingresso às mulheres em bares e assemelhados), uma clara inferência ou elucubração sobre as motivações – subjetivas – do fornecedor. O exercício é, em si, difícil e juridicamente perigoso: corre-se o risco de se conduzir à interpretação de que seria ilegal a prática motivada pela vontade de subjugar a mulher e legal a mesma prática sem essa intenção. E restaria ao aplicador da lei a complicadíssima tarefa de responsabilizar conforme a intenção.
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A fundamentação constitucional então utilizada repousava no princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República tão relevante quanto vago, apto que é para ensejar sua utilização para a defesa de qualquer dos dois pontos de vista. Relembre-se que a liberdade econômica – de iniciativa, de empreender – também integra o capítulo dos direitos humanos e fundamenta o resguardo da pessoa humana. Ademais, o princípio da liberdade de iniciativa possui exatamente o mesmo status constitucional que o princípio da dignidade da pessoa humana.
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O outro fundamento constitucional então indicado referia-se ao princípio da isonomia entre homens e mulheres, o qual afirma a igualdade entre homens e mulheres perante a lei. Nota-se, entretanto, que, sobre o mesmo tema, o artigo desconsidera inúmeras outras situações de consumo em que a mulher é “discriminada” por preços inferiores. É o caso dos seguros de automóvel, por exemplo. Sabe-se que contratos firmados com mulheres apresentam preços mais atrativos. A razão para isso, é notório, consiste no fato de que estatisticamente elas fazem menos uso dos seguros, envolvendo-se menos em acidentes. Trata-se de um argumento econômico. A Nota Técnica de 2017 não o enfrenta. Na realidade, desconhece-se discussões sobre o possível caráter discriminatório dessa atitude, seja na Senacon ou em outras entidades de proteção do consumidor.
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A segunda Nota Técnica, de 2019, por sua vez, baseia-se em claras considerações de ordem econômica e o faz textualmente. 4 A Nota faz considerações sobre o modo com que, geralmente, ocorre o processo de precificação de produtos e serviços. Avalia as normas específicas do CDC e informa não ter localizado qualquer delas proibindo a diferenciação de preços realizada. Conclui indicando que, a se pretender sustentar a posição pela ilegalidade em ofensa aos princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana (em detrimento dos princípios da legalidade e da livre iniciativa), o debate precisaria ser deslocado para o Poder Legislativo ou, se for o caso, para o Judiciário, “preferencialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal”.
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Uma reflexão menos atenta do caso sugeriria estar-se diante de um conflito entre princípios constitucionais, especificamente entre os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana (Nota de 2017) e os princípios da legalidade e da livre iniciativa (Nota de 2019). Não há conflito, todavia.
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No que concerne ao princípio da isonomia, deve-se afastá-lo de plano da discussão, sob pena de se incorrer na contradição insustentável de se invoca-lo quando se quer (preço mais baixo para mulheres em bares) e ignorá-lo quando se quer (seguros de automóveis mais baratos para mulheres). Já em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, utilizá-lo no caso concreto para impedir a cobrança a menos para mulheres seria o mesmo que sacrificá-lo. Por que dignidade da mulher deve ser entendida, em casos assim, como a possibilidade de a ela atribuir a decisão livre de frequentar o lugar que quiser, quando quiser, como quiser. Ela pode simplesmente boicotar lugares que cobram a menos dela, ou, em última análise, até mesmo desejar sentir-se parte de uma estratégia de marketing. Está-se diante, no caso, claramente, de uma daquelas situações em que Friedman advertia que “o consumidor é protegido contra coerções dos vendedores pela existência de outros vendedores dos quais comprar.”5
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Bares e assemelhados não são serviços essenciais, são agentes econômicos facilmente substituíveis entre si e há inúmeras opções à escolha de todos os bolsos, em qualquer cidade do país.
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Sim, “liberdade é planta rara e delicada”6. O caso versa, em suma, sobre isso: a liberdade do dono do bar de precificar seus produtos e serviços e a liberdade da mulher de frequentá-lo ou não. Não há conflito constitucional algum. Não há fundamento constitucional e tampouco legal para sustentar a ilegalidade da prática.
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1 Friedman, Milton. Capitalismo e Liberdade . LTC Editora. Edição do Kindle.
2 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, SECRETARIA NACIONAL DO CONSUMIDOR. Nota Técnica 2/2017, de 03.07.2017.
3 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, SECRETARIA NACIONAL DO CONSUMIDOR. Nota Técnica 11/2019, de 18.03.2019.
4 “faz-se, então, (…) uma abordagem econômica dos fatos.” MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, SECRETARIA NACIONAL DO CONSUMIDOR. Nota Técnica 11/2019, de 18.03.2019.
5 Friedman, Milton. Capitalismo e Liberdade . LTC Editora. Edição do Kindle.
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6 Op. Cit.