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Veja publicação original: Seu tempo acabou: assédio é sim violência
Cem mulheres francesas, entre artistas, intelectuais e acadêmicas, lançaram um manifesto pelo direito dos homens de assediar as mulheres. Não, você não leu errado. Depois que uma série de acusações contra o produtor de cinema Harvey Weinstein, no ano passado, encorajou outras vítimas de abusos e estupros em Hollywood a denunciarem os seus poderosos agressores, atrizes e intelectuais, como Catherine Millet, Ingrid Caven e Catherine Deneuve, se aproveitaram do interesse da imprensa pelo tema para publicar uma carta aberta, na terça-feira (9) pelo jornal Le Monde, pró-assédio e que deslegitima todo um movimento que, finalmente, tem dado às mulheres força e coragem suficientes para falar e conduzir suas histórias com as próprias mãos. São cem mulheres brancas, ricas, famosas e privilegiadas que, na contramão do feminismo, desprezam as vítimas de violências sofridas diariamente e defendem, pelos pobres e oprimidos homens, um espaço que, efetivamente, nunca deixou de pertencer a eles: o do poder. Inclusive sobre o corpo da mulher.
A declaração que abre o manifesto não poderia ser mais equivocada:
“Estupro é crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é – tampouco o cavalheirismo é uma agressão machista.”
Opa! Como assim sedução insistente é algo aceitável? Se é algo insistente, não existe o consentimento, certo? Logo, se não há consentimento torna-se grosseiro, ofensivo, inadequado e humilhante, então não é algo aceitável. Conclusão óbvia: é assédio sim! E não é uma prática que apenas importuna as mulheres, mas também causa, comprovadamente, danos psicológicos, emocionais e de ordem prática em suas vidas, limitando seu direito de ir e vir como, onde e a hora que desejam. É triste e revoltante, em pleno 2018, ainda termos que explicar que assédio sexual é diferente de paquera. Em uma paquera, não é não. Viu como nem é difícil de entender?
“Os homens foram punidos sumariamente, forçados a sair dos seus empregos quando tudo o que fizeram foi tocar no joelho de alguém, tentado roubar um beijo, falado de coisas íntimas em um jantar profissional.”
A declaração grave e irresponsável ainda foi endossada pela jornalista Danuza Leão em sua coluna no jornal O Globo: “Toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana, pra ser feliz”. Talvez ela não saiba, mas se o homem usa do poder que possui para fazer com que a mulher ceda ao ato para uma realização pessoal, pode ser enquadrado como assédio sexual ou mesmo estupro. É crime. É caso de polícia. Está no Código Penal. São casos como os que levaram produtores, diretores e atores de Holywood a perderem seus empregos: há ameaça de demitir a funcionária que se nega a fazer sexo, há o oferecimento de um papel (ou um aumento) em troca de uma transa, há a tentativa de roubar um beijo ou de tocar no corpo da mulher. Não existe o querer da vítima no ato, ela apenas cede para não perder a oportunidade de trabalho ou sofrer maiores retaliações.
A nossa campanha Chega de Fiu Fiu divulgou um estudo online com 7.762 participantes, na qual 99,6% afirmou já terem sido assediadas. E esse número é muito próximo do contado por pesquisas como da organização internacional de combate à pobreza ActionAid, de 2016, que mostrou que 86% das mulheres brasileiras ouvidas já sofreram assédio sexual. Cinquenta e cinco por cento das entrevistadas relataram ter sido assediadas na rua e 23%, no ambiente de trabalho.
O que elas chamam de flerte é ilegal em vários países. De 173 países analisados pelo Banco Mundial na pesquisa “Mulheres, empresas e o direito 2016”, pelo menos 95 abordam a violência física e sexual e 122, a violência psicológica, em suas leis.
“Mas é a característica do puritanismo pedir emprestado, em nome de um suposto bem geral, os argumentos da proteção das mulheres e sua emancipação para melhor vinculá-los ao status de vítimas eternas.”
Vejamos o que o Dicionário Michaelis Online diz o que é puritano:
pu·ri·ta·no
adj sm
1 Diz-se de ou partidário de uma doutrina presbiteriana, muito rigorosa, cujo objetivo era a interpretação literal da Sagrada Escritura.
2 Diz-se de ou indivíduo que adota qualquer seita de rigor excessivo.
3 Diz-se de ou pessoa que age de forma austera, que demonstra respeito rigoroso pelos costumes; moralista.
4 Que ou quem não admite qualquer atitude liberal com relação a comportamento sexual.
É compreensível que a liberdade sexual seja uma bandeira tão defendida por essas mulheres. Foram elas que estiveram na linha de frente da revolução sexual, pela liberdade de dizer sim a quem desejassem. Hoje, uma de nossas bandeiras continua sendo a liberdade sexual. Mas a de ter o poder de dizer não e não sermos agredidas. Isso não é puritanismo. Ainda é sobre liberdade.
“O movimento #metoo resultou na imprensa e nas redes sociais em uma campanha de denúncias públicas e impeachment de indivíduos que, sem terem a oportunidade de responder ou se defenderem, foram colocados exatamente no mesmo nível que infratores sexuais”.
A campanha #MeToo é muito mais que um hashtag. Embora tenha viralizado após a atriz Alyssa Milano convidar as mulheres a usarem as duas palavras nas redes sociais para compartilhar casos de assédio e estupro, a campanha começou há dez anos, com a ativista negra Tanara Burke. Sua organização sem fins lucrativos ajuda as vítimas de assédio e assédio sexual, especialmente meninas negras e pobres. De que forma as mulheres que assinam esse manifesto acreditam ser a melhor forma dessas pessoas denunciarem? Melhor que isso. O que faz elas, mulheres brancas, ricas e bem sucedidas, acreditarem que tem o poder de dizer qual a forma correta dessas vítimas procurarem ajuda? Campanhas como #MeToo são uma das poucas oportunidades dessas mulheres romperem anos de silêncio e dor. Os homens, ao contrário, ainda que denunciados (e muitas vezes comprovadamente culpados) tem a imprensa ao seu lado. E pelo menos cem mulheres francesas.
“Uma mulher pode, no mesmo dia, liderar uma equipe profissional e apreciar ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma ‘vagabunda’ ou cúmplice do patriarcado. Ela pode garantir que seu salário seja igual ao de um homem, mas não se sente traumatizada por uma apalpada no metrô, mesmo que seja considerado um crime.”
Se é crime não tem a ver com liberdade. Ser apalpada no metrô, ter o corpo violado quando só se quer ir e vir, ser objetificada – em sua maioria, corpos de mulheres negras e pobres – não pode ser visto como elogio quando isso causa medo, angústia, dor e traumas. E, obviamente, quando isso está tipificado no código penal. Crime é crime e deve ser passível de punição. Isso é banalizar a violência sexual contra mulheres.
“Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além da denúncia de abusos de poder, prega o ódio aos homens e à sexualidade. Acreditamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de importunar”.
Como feministas, não nos reconhecemos em um movimento que acredita que denunciar abusos sexuais e estupros seja um erro, que acredita que criminalizamos o flerte, que legitima o status quo vigente do homem ter domínio sobre o corpo da mulher. Essa “liberação sexual” masculina que força a mulher a entrar nesse mundo sexual ainda criança nunca será nossa bandeira.
Imprensa não é só o mensageiro, é a mensagem
E nesse processo a imprensa tem papel fundamental! Se você é jornalista, é seu dever, diante de tantos casos de violência contra as mulheres, sair da sua zona de conforto da neutralidade e se aprofundar nas coberturas. Dentre as centenas de matérias sobre o manifesto, nenhuma teve o trabalho de contextualizar a notícia, sem levantar casos de estupro, de assédio. Por que não atrelar essa notícia com o número de violência contra mulher? O Minimanual de Jornalismo Humanizado da Think Olga é uma ferramenta que pretende ajudar de forma prática os profissionais dos meios de comunicação. Lembre-se: quando a imprensa se cala, se torna cúmplice.
E para você que acha que manifestos como esses enfraquecem o feminismo, fica o nosso recado: nós só ficamos mais fortes. Não tem mais volta.
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