Saiu no site MULHERES TRANSFORMADORAS:
Veja publicação original: Sambista e compositora, Dona Ivone Lara transformou o cenário musical
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“Uma mulher que foi sambista numa época em que os terreiros de samba eram domínio dos homens, compositora das melhores, enfermeira, mulher forte e maternal. Chora o Império, chora a música e chora o Brasil que ainda consegue sonhar”. Foi assim que a também compositora e ex-ministra Ana de Hollanda destacou a importância de Dona Ivone Lara para a força da mulher do samba. A sambista, de 97 anos, que foi uma verdadeira Mulher Transformadora, faleceu dia 16 de abril, no Rio de Janeiro.
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Nascida em 13 de abril de 1921, no Rio de Janeiro, filha de mãe cantora, pai violonista e com um tio cavaquinhista, compôs seu primeiro samba aos 12 anos, “Tiê, tiê”, depois de ganhar de seus primos e futuros parceiros, Hélio e Fuleiro, um pássaro “Tiê-sangue”. Aprendeu a tocar cavaquinho com o tio Dionísio Bento da Silva, que tocava violão de sete cordas e integrava o grupo de chorões que reunia Pixinguinha e Donga. Durante a adolescência, teve como professores de música erudita Zaíra de Oliveira, esposa de Donga, e Lucília Villa-Lobos, casada com o maestro Heitor Villa-Lobos.
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Aos 17, Ivone começou a estudar na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto e passou a trabalhar como plantonista de emergência. Embora tenha dedicado sua vida adulta à área da saúde, reservava as horas vagas para participar das típicas rodas de choro organizadas na casa do tio. Aos 25, foi contratada pelo Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde permaneceu por 37 anos até se aposentar. Especializada em terapia ocupacional, Ivone trabalhou no Serviço Nacional de Doenças Mentais com a doutora Nise da Silveira, médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil.
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Ainda aos 25, casou-se com Oscar Costa, filho do fundador da escola de samba Prazer da Serrinha, a primeira agremiação de Ivone, para a qual compunha sambas que eram assinados pelo seu primo Fuleiro, devido ao preconceito contra as mulheres que existia nas agremiações naquela época. Sempre priorizando o trabalho de enfermeira, mas com um pé na música, programava suas férias em fevereiro para participar dos desfiles de Carnaval.
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Com o fim da escola Prazer da Serrinha, começa a frequentar a escola de samba Império Serrano. Compôs alguns sambas e partidos-altos para a agremiação — que eram mostrados aos outros sambistas pelo primo Fuleiro, como se fossem dele — já que o preconceito não abria espaço para mulheres compositoras. Transformadora, Dona Ivone foi a primeira mulher a integrar a ala dos compositores de uma escola de samba. Em 1965, a mais nova integrante da Ala dos Compositores do Império Serrano compôs, com Silas de Oliveira e Bacalhau, o clássico samba-enredo “Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio”.
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Para a nora Eliana Lara Martins da Costa, de 67 anos, o legado da “Dama do Samba” para as mulheres é gigantesco.
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“Ela deixou muita coisa boa para empurrar as mulheres. Ela era aquela mulher à frente das coisas, que não deixava nada a desejar. É uma das melhores compositoras do nosso país. Vai fazer muita falta o seu carinho e o amor com o que ela escrevia as letras. Ela ensinou muito a todos nós, principalmente às crianças, que hoje já estão crescidas”, explicou.
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Compositora de sucesso
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O envolvimento cada vez maior com a agremiação rendeu-lhe, entre outras alegrias, a convivência com Mestre Aniceto do Império, Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira, que mais tarde também seriam seus parceiros em algumas canções. Somente aos 56 anos de idade passou a dedicar-se exclusivamente à música, lançando em 1978 seu primeiro disco, “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”, produzido por Sargenteli e Adelson Alves.
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Mesmo tendo assumido a carreira musical tardiamente, nas décadas seguintes consagrou-se como grande compositora com músicas gravadas por Clara Nunes, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Beth Carvalho e Marisa Monte. Entre seus maiores sucessos estão “Sonho meu”, “Acreditar” e “Alguém me avisou”.
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História no teatro
Em 2002, Dona Ivone Lara foi a grande homenageada do prêmio Shell e, em 2012, escolhida como tema do enredo do Império Serrano. A Portela, outra escola tradicional de Madureira, divulgou nota chamando dona Ivone Lara de “patrimônio do Império, da Portela e da cultura brasileira”. Considerada um dos maiores nomes da música popular brasileira em todos os tempos, a cantora sempre foi muito ligada também aos compositores da Portela. Era grande amiga de Candeia, Monarco e Paulinho da Viola, por exemplo. Em setembro, estreia um musical sobre Dona Ivone. Parentes contaram que a artista estava animada com o fato de sua história ser contada no teatro.
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Tentando listar suas músicas favoritas do repertório da mãe, o filho da sambista, Alfredo Lara da Costa, de 67 anos, afirmou que a obra dela é eterna.
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“Ela tinha muita coisa (inédita). Dos 93 anos dela para cá, ela fez umas 40 músicas. Estão novinhas. Fez com meu filho, André Lara, e com outros compositores, como o Delson Carvalho (na arte, parceiro de longa data de Dona Ivone Lara). A última (música) ela fez não tem nem oito meses. Canções que fazem jus a sucessos como “Sonho Meu”, “Acreditar”, “Liberdade””, revelou.
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Abalado com a partida da mãe, ele fez questão de ressaltar o legado deixado por ela.
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“Minha mãe foi uma mulher valente e corajosa. Nos passou muita coisa boa e, graças a Deus, deixou uma obra maravilhosa. No princípio, a vida da minha mãe foi sacrifício. Mas tinha a música, era o que mais gostava. Ela foi muito feliz. Eu tenho muito orgulho. O legado dela fica para sempre”, afirmou.
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Segundo parentes, as músicas são composições que Dona Ivone Lara acumula desde os 93 anos, numa média de dez novas canções por ano. Sempre que a inspiração batia à porta, pedia o seu caderninho para registras as palavras no papel. Em sua maioria, as novas composições falam de amor, mas também há espaço para temas mais melancólicos, como traição.
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Como disse Marcelo Moutinho, em um artigo póstumo publicado no O Globo, “Sem se encaixar em nenhum dos tipos que o mundo do samba ainda hoje costuma reservar ao gênero feminino – não era ‘tia’, nem passista, nem musa -, Dona Ivone entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de sua época”.
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Em 97 anos de vida, Dona Ivone construiu um enredo improvável. Saindo de uma infância pobre e de uma família em que a perspectiva de chegar à universidade não passava de sonho distante, formou-se assistente social e enfermeira. Trabalhou com a médica Nise da Silveira na aplicação das terapias que revolucionaram, na década 1970, o tratamento psiquiátrico. Como artista, experimentou de forma radicalmente íntima o encontro entre popular e erudito que daria contornos singulares à música brasileira.
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“Fui pro colégio interno, vi um mundo diferente. Voltava pra casa, via outra coisa. Saía de novo, e mais uma coisa”, disse ela em entrevista à biógrafa Mila Burns, quando indagada sobre o contraste entre o cotidiano familiar e o dia a dia na escola.
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Ao longo da carreira, compôs mais de 300 canções e gravou cerca de 20 discos. Dona Ivone Lara deixa três netos, nora e o filho caçula. Seu primogênito, Odir, morreu na década de 70. Em 1975, o marido da sambista não resistiu após um acidente de carro.
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Com informações do O Globo