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Relações abusivas têm fim – Por Vanessa Costa

Essa dinâmica se vale da insegurança, de um lado, e da necessidade de poder,
do outro. Fortalecer nosso senso de valor é a chave que destranca essa prisão

 

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A história costuma começar com elogios,
presentes e juras de amor. Quando nos damos
conta, estamos imersas num compromisso
sério.

Nos sentimos apreciadas e amadas.
Mas, num dia, vem um comentário em tom de
deboche, no outro, uma reclamação sobre algum

comportamento ou jeito de se portar em
público, até a coisa descambar para ofensas
e ameaças que, com o passar do tempo, vão
minando a autoestima e a autoconfiança – e,
não raro, colocando a mulher em risco.

Eis o roteiro dos relacionamentos abusivos.
Luanna Debs foi vítima desse modelo ao
longo de 10 anos, com direito a noivado.

se deu conta disso depois que conseguiu se
desvencilhar da situação e ir em busca de conhecimento.

“Estudos demonstram que apenas 2% da população

mundial possui Transtorno de Personalidade Narcisista, enquanto
que, no Brasil, três a cada cinco mulheres
vivem ou já viveram violência doméstica.

A conta não fecha”, ela reflete.
Hoje, Luanna é psicóloga pela PUC Goiás,
especialista em relacionamentos abusivos e
trauma, e coordenadora de grupos terapêuticos para mulheres

no ciclo da violência de
gênero, assim como ela já esteve um dia.

“É
muito importante dizer que o abusador quase sempre é

um homem medíocre, comum,
vivendo sua vidinha comum, cheio de crenças
e valores machistas que nossa sociedade autoriza.

É preciso ter cuidado com o rótulo do
narcisismo. Ele está banalizado e acaba por
desresponsabilizar o abusador ao travestir de
patologia um comportamento que, na verdade, está enraizado na

cultura patriarcal, queobjetifica as mulheres há muito tempo”, alerta.
Em outras palavras, todo narcisista em
maior grau, homem ou mulher, é um abusador, mas,

na maior parte das vezes, a pessoa
tóxica é mediana, funcional e tem consciência
do que faz. “A relação abusiva tem mais a ver
com jogo de poder do que com um perfil patológico.

Para a psicanálise, todos temos algum
traço narcisista”, lembra Carol Tilkian, psicanalista, pesquisadora

e fundadora do podcast Amores Possíveis. “O abusador é aquele que
não consegue compartilhar o potencial de
ação, um potencial que pode estar no dinheiro, no trabalho, em conquistas pessoais ou
em afetos sociais. Sabe aquela pessoa que não
suporta quando o parceiro ou parceira se sobressai na roda de amigos, e sempre dá
um jeito de diminuir ou ofuscar?”. Pois é,
e pensar que essa cena é tão corriqueira…
CICLOS QUE SE REPETEM
Aliás, a alternância ou não desse potencial, ou poder de influência, é um dos fatores que, para Luanna, diferencia os relacionamentos tóxicos dos abusivos. Na
opinião dela há uma distinção importante,
embora pouco comentada. Segundo Luanna, a dinâmica do relacionamento abusivo
acontece dentro de um ciclo de violência
organizado e sequencial, em etapas que
ela chama de “tensão, explosão e lua demel”. “Nesta dinâmica, o abusador está
constantemente no poder e a vítima, em
submissão, sem alternância das posições.
Há a intenção direta em exercer controle
para oprimir a vítima fisicamente, socialmente, intelectualmente, emocionalmente, sexualmente ou financeiramente”, diz.
Na relação tóxica essa intenção não estaria tão deliberada. “O que acontece em um
relacionamento tóxico é que a pessoa, ou
as pessoas, estão adoecidas. Um parceiro
(ou parceira) deprimido e inseguro, por
exemplo, pode imputar à outra parte toda
responsabilidade pela manutenção do vínculo, o que, por sua vez, sobrecarrega e
enche de culpa o outro lado. Mas o movimento não é intencional e dança, ou seja,
ocorre a alternância de influência. Nesse
tipo de situação, cabe a cada um tomar
para si a responsabilidade em desenvolver
autonomia, para deixar de demandar ou
acolher o companheiro ou companheira de
forma exaustiva e irreal”, diz Luanna.
A psicóloga norte-americana Lenore
Walker desenvolveu a teoria do ciclo da
violência de gênero, em relações abusivas,
que explica e dialoga com as etapas descritas por Luanna. Na teoria de Lenore, a
primeira das três fases, a de acúmulo de
tensão, apresenta uma escalada gradual
de atritos, caracterizada pela frequência
de pequenas brigas, atos sutis de violência, gritos ou incidentes de ciúme. É uma
etapa que pode durar meses ou anos. Os
insultos tendem a ser interpretados como
casos pontuais, e a vítima se culpa, justificando o comportamento do abusador.
A segunda fase é a da agressão, quando a
violência irrompe, sem controle, e a vítima
experimenta ansiedade, se isola, se sente
impotente. A última é a da reconciliação,
na qual o agressor pede perdão e usa de
estratégias de manipulação afetiva, como a
oferta de presentes, promessas e convites,
para sustentar o relacionamento. A tensão
afrouxa e a vítima acredita que tudo não
passou de um mau momento. Infelizmente,
não é o que acontece e a roda de humilhação cedo ou tarde volta a girar.
DUVIDAR DE SI MESMA
A engrenagem é cruel e pegajosa, e faz entender por que é difícil se libertar dela sozinha. Estatísticas norte-americanas mostram
que mulheres vítimas de relacionamentos
abusivos tendem a retornar ao vínculo tóxico em média seis, sete vezes, num vai e volta
angustiante. Sob essa perspectiva, talvez o
aumento de registros de violência contra a
mulher, embora alarmante, seja um indício
do empoderamento feminino e de uma estrutura assistencial mais preparada.

Lembrando que essa violência também pode ser
mais sutil e difícil de relatar.


“Eu vivi muito abuso sutil. Comportamentos emocionais tóxicos

que a nossa sociedade normaliza, como gritos e mentiras, e abusos romantizados. No discurso havia sempreo argumento de que ninguém me amaria e
me aceitaria como ele. Eu era sempre a ansiosa e ciumenta, a louca”, lembra Luanna. Em teoria o relacionamento abusivo, 


“O abusador é aquela pessoa que não consegue
compartilhar o potencial de ação, que pode estar
no dinheiro, no trabalho, em conquistas pessoais
ou em afetos sociais. Por isso, diminui o outro” 

geralmente tem seus rastros iniciais no campo
emocional. Mas, na prática, isso é difícil de
reconhecer. “Porque o abusador é alguém
que te conhece, sabe das suas fragilidades
e as amplifica e manipula de uma maneira
que, inicialmente, não será de todo estranho
ao seu juízo. Isso faz com que você questione sua percepção,

suas emoções, julgamentos sobre si, e limites que coloca. Aí você se
pega perguntando: será que ele ou ela não
tem mesmo razão?”, diz Carol Tilkian.


Questionar a própria realidade é o impacto do gaslighting,

um tipo de manipulação altamente perigosa do ponto
de vista psicológico. “Quando enfrenta o
gaslighting, você começa a duvidar de si
mesmo, perde a autoconfiança e, como
resultado, às vezes sente que está enlouquecendo. Em casos extremos, pode levar
a um colapso nervoso completo”, escreve
Sarah Davies, psicóloga especialista em
trauma, no livro Como se libertar de um
narcisista (Sextante). “Dobre a atenção
com frases do tipo ‘isso é coisa da sua cabeça. Você está louca’”, aconselha Carol.

MUITAS FRENTES DE AJUDA
Libertar-se da teia é um processo e requer
apoio multidisciplinar. “É preciso haver
suporte emocional, jurídico, socioassistencial, médico e psicológico às mulheres
vítimas de relacionamentos abusivos”, diz
Clicie Carvalho, advogada, gestora e coordenadora de projetos no Instituto Justiça
de Saia, dentre eles o Justiceiras. O Justiça
de Saia, idealizado pela advogada Gabriela Manssur, implementa projetos sociais e
políticas públicas sobre o direito das mulheres desde 2011; e o Justiceiras trabalha
há cinco anos, completos agora em março,
para combater e prevenir a violência de
gênero, com mais de 17 mil mulheres assistidas em todo o país.
Clicie conta que três em cada dez mulheres acolhidas pelo Justiceiras nunca haviam
pedido ajuda antes. O que sugere anos de
aprisionamento num ciclo tóxico, por fatores como medo, vergonha, dependência financeira ou emocional. “Muitas têm vergonha, principalmente as mais escolarizadas
e com poder aquisitivo para romper a relação. Mas é preciso que a mulher trate isso
como qualquer outra questão, para a qual
ela precise de ajuda. A violência não define
a mulher”, diz Clicie. É importante destacar
que o Justiceiras assiste a vítima sem fazer
juízo de valor, seja ela quem for, independentemente da condição que vivencia. Não
há brecha para julgamento.


Também é fundamental ampliar o olhar
para enxergar a perspectiva completa, não
só o sofrimento individual. “A violência de
gênero não é uma narrativa da mulher. É
reflexo de uma construção social, machista
e misógina. Por isso, para reduzir os número a gente precisa de uma mudança na 

mentalidade social, o que passa pela educação dos jovens, homens e mulheres. Vivemos muitas conquistas femininas, mas a
objetificação da mulher, como propriedade
do homem, perdura, basta olhar os índices de feminicídio. Muitas ainda se sentem
presas à submissão, à ditadura do cuidado exclusivo, ao medo de estar só, mesmo
quando financeiramente independentes. É
preciso trabalhar para uma verdadeira reconstrução cultural”, conclui Clicie.
Se relações abusivas são um sintoma de
sociedades doentes e desiguais, precisamos estar atentas às armadilhas e fortalecida no amor por nós mesmas. 

É preciso haver suporte emocional, jurídico,
socioassistencial, médico e psicológico às mulheres
vítimas de relacionamentos abusivos. É um
processo que requer apoio multidisciplinar”

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