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Racismo, machismo e violência doméstica: três mulheres negras contam suas histórias

Saiu no site R7: 

 

Veja publicação original:  Racismo, machismo e violência doméstica: três mulheres negras contam suas histórias

 

 

Elas narram como sofreram agressões da mãe, do marido, do padrasto e superaram a situação

 

Mulheres negras são as maiores vítimas de violência doméstica: 1,5 milhão delas sofrem agressões de conhecidos

 

 

Eduardo EnomotoR7

Racismo e machismo, juntos, fazem das mulheres negras as maiores vítimas de violência doméstica no Brasil: 1,5 milhão delas são agredidas anualmente por pessoas conhecidas (veja quadro abaixo). Nesta reportagem, o R7 traz três depoimentos de três vítimas que superaram a situação. São casos de agressão praticadas pela mãe, pelo marido, pelo padrasto. Em alguns casos, o racismo aparece com mais intensidade que o machismo. E outros, é o machismo que emerge mais claramente. Em todos, a superação aparece como um caminho longo, mas possível de ser trilhado.

 

 

Trata-se de uma mensagem de esperança transmitida por quem já viveu situações terríveis.

 

 

Apesar de esta reportagem focar-se nos relatos de casos mais antigos, o R7 também conversou com mulheres que ainda vivem em situação de violência doméstica. Uma delas só descobriu que o marido era alcóolatra depois do casamento. “Um dia, a gente estava discutindo e eu chamei ele de filho da p*. Ele estava bêbado. Foi o primeiro tapa que ele me deu”, disse. “Depois, eu conheci o que era soco.” Uma semana antes da entrevista, ela havia levado uma cabeçada. As agressões, na frente dos filhos, viraram rotina. “Eu não tenho coragem de denunciar o meu marido e não sei o porquê”, disse. “Tenho raiva de mim por causa disso.” Hoje, ela sonha juntar dinheiro para sair de casa.

Confira abaixo os relatos:

Maria Darlene Bispo: o preconceito veio da mãe

Maria Darlene Bispo: o preconceito veio da mãe

Eduardo Enomoto/16.11.2015/R7

Maria Darlene Bispo, 50 anos

“Quando acontece uma coisa como essa, a gente não esquece. Mesmo que tenha acontecido quando a gente é criança. Quando é uma pessoa de fora, a gente ainda perdoa. A gente consegue esquecer um pouco. Mas, quando é com a família da gente, é bem difícil. E quem fez isso comigo foi minha mãe. Ela não gostava de mim porque a minha irmã era branca e eu era preta. Eu tinha seis anos de idade, hoje tenho 50. Esse racismo começou porque ela não acreditou em mim. Uma pessoa me estuprou e eu fui falar para ela. Quando ainda não havia acontecido nada comigo, ela era uma pessoa. Depois que aconteceu isso, ela começou a dizer que eu não era filha dela. Dizia que não tinha filha preta, nem filha prostituta. Minha mãe era negra, mas tinha o cabelo liso. Era tipo índia. O meu pai que era bem pretão mesmo. O meu sofrimento, então, começo a partir disso. Ela me dava banho de escova. Ela dizia que passando a escova em mim no banho talvez minha pele ficasse mais clara. E era uma coisa que eu achava que era verdade. Eu era pequena e pensava: ‘Eu vou tirar essa coisa preta de mim’. E era minha pele. Cheguei a me pintar de tinta, dessas tintas de pintar casa, para ver se eu ficava branca. Fui parar no hospital. Meu sofrimento só terminou quando eu tinha 11 anos. Foi quando minha mãe morreu. Para você ter uma ideia: meu nome não era Darlene. Meu nome era Marta. Eu mudei até meu nome depois que ela morreu, quando eu tinha 15 anos, achando que eu ia mudar, que eu ia ser uma pessoa feliz. Eu ainda não tinha sido registrada e, quando meu padrinho me levou para ser registrada, escolhi o nome de uma atriz: Darlene Glória. Eu achei que mudando meu nome eu ia apagar o meu passado. Coisa que não aconteceu. Eu só fui viver um pouco em paz depois que eu conheci a casa de apoio [a mulheres vítimas de violência]. Até então eu tinha ficado de um jeito que eu não gostava de pessoas pretas. Eu achava que todas as pessoas pretas eram ruins. Eu não me aproximava. Eu só queria ser amiga de pessoas brancas e loiras. Mas então me deparei com as meninas [funcionárias da casa], que não são nada brancas também. E aprendi que as pessoas pretas também têm amor no coração. Agora eu faço rap, eu canto. Descobri que a gente pode ser o que a gente quer. Eu sempre gostei de cantar e resolvi que vou ser cantora. Eu pego a minha vida e transformo em música. Quando não consigo transformar em música, eu faço poesia. Ajuda a aliviar a dor, aliviar o sofrimento. Se eu fosse uma pessoa estudada e pudesse pegar um microfone, falaria para todo mundo que sempre existe uma saída. Hoje eu digo: apesar de todo o sofrimento, eu sou feliz.”

Maria Aparecida da Silva Souto: marido violento

Maria Aparecida da Silva Souto: marido violento

Eduardo Enomoto/16.11.2015/R7

Maria Aparecida da Silva Souto, 48 anos

“No meu primeiro casamento, eu sofri muita violência doméstica. Muita. No começo, ele era aquele homem maravilhoso, carinhoso. Mas depois mostrou as garras. Eram agressões físicas, psicológicas… Ele me batia com ferro. Punha revólver na minha cabeça, com uma bala, e fazia roleta russa. Trazia mulheres para dentro da minha casa. Transava com essas mulheres na minha frente. Dizia que eu era magra e que… Eu sou negra, né? Então ele cortava o meu cabelo. Queria meu cabelo liso. Eu trabalhava fazendo comida para fora e ele pegava a comida e jogava no chão. Fazia eu comer, esfregava a minha cara. Um dia ele me pegou forçado, me machucou, me estuprou, né? Só depois é que eu vim a saber que aquilo era estupro, mesmo ele sendo meu marido. Eu fui várias vezes na delegacia. Mas infelizmente naquela época não tinha Maria da Penha. Isso foi 1988, 1989. A Maria da Penha ainda não tinha sofrido tudo o que ela sofreu. Então os delegados, os policiais perguntavam: ‘O que a senhora fez para ele fazer isso?’ E me mandavam de volta para casa. A forma que ele usava para me prender perto dele é que ele matou uma pessoa perto de mim. Ele dizia que, se eu largasse dele ou se eu contasse para alguém, ele faria as mesmas coisas com as minhas vizinhas, as minhas melhores amigas. Eu tinha pavor dele. Eu vivia 24 horas em terror. Eu vivi seis anos com ele. Tive uma gravidez atrás da outra porque ele não me deixava ir ao médico, tomar remédio. Com ele, eu tive sete filhos. Entre eles, três gêmeos, que morreram.  Se ele me visse tomando remédio, perguntava: ‘Que é? Está saindo com outro?’ Aí inventava amantes para mim. Ninguém podia olhar para mim, dar bom dia, boa tarde, boa noite, mesmo eu sendo conhecida no bairro, pois moro até hoje na região onde eu nasci. A agressão era muita. Mas um dia ele agrediu o meu filho e acho que foi a gota d’água. Minha mãe já tinha falecido. Para mamãe, era assim: casou uma vez só, ruim com ele, ruim sem ele. Aquela coisa de antigamente. Mas aí ela já tinha falecido e eu estourei. Peguei o revólver e dei um tiro nele, na perna dele. Ele disse para os amigos que tinha se ferido num assalto. Ele manca até hoje e tem medo de mim. Depois disso, eu casei de novo. Meu segundo marido tentou vir com violência para cima de mim. Mas aí já não conseguiu. Meus filhos ficaram do meu lado. Em 2010, me formei em pedagogia. Minha história é muito sofrida, mas eu sempre conto isso tudo [em grupos de proteção à mulher]. Mostro que estou aqui viva e tento ajudar as pessoas. É importante falar para as mulheres não abaixarem a cabeça. Tudo é possível.”

Cláudia Nunes de Camargo: padrasto matou a mãe

Cláudia Nunes de Camargo: padrasto matou a mãe

Arquivo pessoal

Cláudia Nunes de Camargo, 48 anos

“O meu caso ocorreu em 1987, quando eu tinha 19 anos. Uma noite, eu acordei com o meu padrasto atirando, disparando contra a minha mãe. Ele morava com a gente já fazia uns 13 anos. E matou a minha mãe com um tiro na nuca. Depois, atirou na minha irmãzinha, que tinha 15 anos. Ela morreu segurando na minha mão. Éramos quatro irmãos: eu; meu irmãozinho, de 11 anos; a minha irmãzinha, de 15 anos; e meu irmão, de 16. Depois de matar minha mãe e minha irmã, ele atirou no meu irmão. Nós morávamos num sobrado. A minha reação foi abrir a janela e gritar por socorro. Mas como não aparecia ninguém, eu pensei em pular a janela. Foi quando o meu irmão falou: ‘Tata, eu não estou conseguindo mexer as pernas’. Então, eu voltei, não pulei. E perguntava para ele [o padrasto] por que ele estava fazendo aquilo. Naquela noite, não havia tido uma briga, não havia tido nada. Mas ele continuou atirando. Então, para que ele não atirasse mais no meu irmão, eu tentei fechar a porta do quarto. Ele estava no corredor. Meu irmãozinho menor estava também fora do quarto e eu gritei para ele correr. Ainda sobrou uma fresta na porta. Ele [o padrasto], então, recarregou a arma e descarregou em mim. Eu tenho um tiro na mão, porque eu segurei a arma. E último tiro que eu lembro de ter levado foi na perna, porque eu gritei e caí. Meu irmão ainda falou: ‘Tata, finge que está morta porque ele ainda pode atirar na nossa cabeça’. Eu deitei com a cabeça perto do meu irmão. E ele [o padrasto] foi tomar banho. Meu irmãozinho, o mais novo, já tinha fugido. E ele [o padrasto] foi atrás dele, mas uma vizinha o escondeu. Hoje, a gente não tem mais notícia dele [do padrasto]. Meu irmão ficou paraplégico e morreu dois meses depois. Meu pai biológico também entrou numa depressão muito grande e morreu um mês depois de meu irmão. Ficamos eu e meu irmãozinho na luta. Eu fiquei sem andar quase dois anos. Fiquei com sequelas graves. Quase não tenho sensibilidade na minha perna esquerda do joelho para baixo, eu sinto muitas dores desde então, eu desenvolvi um quadro de depressão muito forte e, agora em 2008, eu fui diagnosticada de sarcoidose, uma doença autoimune rara. Alguns médicos dizem que é de fundo emocional, outros dizem que é genética. Isso fez com que meu corpo ficasse muito pior. Engordei quase 40 quilos, hoje eu uso órtese, uso bengala… Acho, inclusive, que é importante falar sobre esses desdobramentos da violência doméstica. O momento é horrível, mas o desdobramento desse momento é muito pior. A dor é muito pior, a percepção de mundo fica muito diferente. E precisa ter muito cuidado com isso para que a gente consiga aprender a lidar com a situação.”

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