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Quem cuida dos filhos das enfermeiras durante a pandemia?

 

Saiu no site AZ MINA

 

Veja a publicação original:  Quem cuida dos filhos das enfermeiras durante a pandemia?

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Crianças filhas de profissionais da saúde são mais intensamente atingidas pela pandemia, com mães afastadas e ameaça constante da infecção

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Por Camila da Silva e Rayane Moura

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“Contei para o Henrique* que a mamãe pegou o ‘coroninha’, como ele chama o coronavírus, que ele não podia mais ficar perto da mamãe, que a mamãe não podia mais contar historinha pra dormir, não podia mais ajudar na lição de casa”. Foi assim que a auxiliar de enfermagem Renata (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada), 34 anos, contou para o filho de cinco anos que estava com covid-19. Ela passou 29 dias isolada dentro de um dos cômodos da casa, separada do filho e do companheiro.

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Maioria entre as profissionais de saúde e em geral responsáveis pelo cuidado dos filhos, as mulheres na linha de frente da pandemia passam mais tempo longe de seus filhos – enfrentando desafios e preocupações muito diferentes das mães que estão trabalhando em casa. Filhos de profissionais da saúde que estão afastadas e vivem com a ameaça constante da infecção são crianças mais intensamente atingidas pela pandemia, observa Guilherme Polanczyk, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

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Os transtornos que surgem na infância e adolescência têm prejuízos cumulativos até a idade adulta, explica o professor da USP, que está estudando o custo da pandemia sobre a saúde mental de crianças e adolescentes. “O surgimento de transtornos mentais, que ocorre mais frequentemente naquelas crianças mais vulneráveis, propaga e perpetua as desigualdades sociais já existentes”, observa em artigo.

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Assim como Renata, 17.098 profissionais da área de enfermagem foram diagnosticados com o vírus, sendo 14.560 mulheres, segundo os últimos dados do Comitê Gestor de Crise do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Destes, 156 vieram a óbito, sendo 99 mulheres. Os números refletem o perfil feminino e negro da profissão de enfermagem: 86% dos profissionais são mulheres e a maioria (53%) são negras.

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A psicóloga e educadora Elânia Francisca explica que contar a verdade para a criança, assim como Renata fez, é o melhor caminho. “É importante que a criança saiba tudo que está acontecendo, usando uma linguagem adequada à sua idade”, diz. Ela explica que a imaginação da criança é grande e que omitir a verdade dela, tentando protegê-la, pode gerar um sofrimento ainda maior. “Ela pode pensar: ‘minha mãe me abandonou, minha mãe sumiu, minha mãe foi embora, ela nunca mais vai voltar’. Por isso é importante explicar sempre para a criança o que está acontecendo”, afirma – confira dicas de materiais para fazer isso ao fim da reportagem.

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Tão perto e tão longe

Essa foi a primeira vez que Renata ficou doente por conta da sua profissão. Ela é auxiliar de enfermagem há seis anos e trabalha em um hospital particular em São Paulo. Assim que começou a apresentar os primeiros sintomas (falta de paladar e olfato e diarreia), começou o isolamento, antes mesmo do resultado positivo do teste.

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A casa de quatro cômodos no Campo Limpo, bairro da Zona Sul de São Paulo, foi dividida: Renata ficou isolada dentro de um dos quartos, com acesso à garagem, enquanto o filho e o marido ficaram no outro quarto, com trânsito na sala e cozinha. Tudo foi dividido (copos, talheres, objetos pessoais) para evitar a contaminação da família. O marido de Renata, que continuou trabalhando como professor de inglês em casa durante a quarentena, ficou responsável sozinho pelos cuidados do filho do casal.

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“É assustador. Você tem medo de dormir e não acordar, com falta de ar”, conta. Mas mesmo nessa situação, ela não escapou da culpa materna. “O Henrique pedia uma história todo dia e cinco abraços. Às vezes, eu não dava muita importância, eu tava cansada, não queria fazer, isso doeu muito nesse tempo em que ficamos separados”, conta. Mesmo na mesma casa, o contato nesse período foi restrito às conversas pela internet.

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Tempo longe dos filhos

O esquema de trabalho, com plantões extensos, somadas ao tempo de viagem entre a casa e o trabalho limitam o tempo das enfermeiras com seus filhos. A enfermeira Katia de Souza Santos, 42 anos, mãe de cinco filhos, gasta cerca de quatro horas de deslocamento por dia entre sua casa e o Hospital Ermelino Matarazzo. Moradora da Vila Industrial, Zona Leste de São Paulo, ela leva duas horas para ir e duas horas para voltar do trabalho.

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Adiciona-se a isso o plantão de 12 horas, Kátia passa apenas um terço do dia em casa, ou seja, 8 horas. Com essa rotina, é o companheiro quem assume o cuidado diário com os filhos (ela mora com três dos cinco filhos, que têm idade entre 8 e 15 anos). “Eu sinto falta do tempo em que passávamos juntos, em que deitávamos todos na cama e  ficávamos conversando, vendo vídeos”, conta.

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Katia e os filhos: plantões de 12h mais distância do trabalho limitam tempo com as crianças (Foto: Arquivo pessoal)

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Para as mães solo a situação ainda é mais difícil, tendo que contar com uma rede de apoio – quando ela existe. A enfermeira Cristiana de Farias, 34 anos, trabalha na área de treinamento do corpo de enfermagem em um hospital particular de São Paulo. Ainda que não atue diretamente no tratamento de pacientes, decidiu se afastar fisicamente dos filhos (de 11 e 17 anos) para evitar a possível transmissão do vírus, já que ela está mais exposta.

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Mãe solo, ela segue na casa da família e os filhos estão na casa de familiares: a menina mais nova com o pai e o menino na casa do avô. “Eu nunca abri mão dos meus filhos, mas com essa pandemia eu tive que me afastar, para o bem estar deles. Há dois meses separados, a gente procura se falar todos os dias por chamada de vídeo para matar as saudades”, conta.

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Cristiana enfrenta também a queda da renda – o seu salário foi reduzido junto com a jornada de trabalho, o que foi permitido pelo governo dentro das medidas econômicas anunciadas para combater a pandemia. “Houve uma redução do nosso salário em 25%. Para mim, como chefe de família, a questão financeira pesou, porque sou só eu para pagar tudo”, diz Cristiana.

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As profissionais também destacam o quanto a área não é reconhecida e valorizada. “A gente trabalha muito e tem gente que precisa ter dois empregos para poder pagar as contas. Aplausos na janela são ok, mas o governo não tem dado condições boas para gente trabalhar”, pontua Cristiana.

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Cristiana e os dois filhos, de quem está distante há dois meses (Foto: Arquivo pessoal)

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Ela faz parte dos 11 milhões de mães solo no Brasil, que corresponde a 26,8% das famílias do país. Pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que em 35% das casas sustentadas por elas já faltou dinheiro para comprar comida durante a pandemia e em 31% para adquirir produtos de limpeza, essenciais em meio a uma crise de saúde pública. Isso agrava a vulnerabilidade que essas mulheres já viviam antes da pandemia: segundo dados do IBGE, 56,9% das mães solo vivem abaixo da linha da pobreza, sendo 64,4% dessas mães negras.

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A psicóloga e educadora Elânia chama a atenção para a realidade na periferia, onde crianças e adolescentes muitas vezes ficam em casa sozinhos e são responsáveis pela casa e por outros irmãos menores. “Quando se é uma criança periférica, se aprende desde cedo que ou a mãe sai para trabalhar ou vai faltar comida em casa”, diz Elânia, que destaca a ausência do Estado nesse contexto.

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Sem acompanhamento psicológico

Nem todas as profissionais de saúde contam com auxílio psicológico no seu local trabalho. Das quatro profissionais entrevistadas, duas não possuem esse acompanhamento (ambas trabalham em hospitais públicos). “Nosso único tratamento psicológico tem sido nós mesmas, uma conversando com a outra, uma ajudando a outra. A gente chega em casa com o psicológico muito abalado, a mente muito cansada e o corpo muito cansado”, diz Katia.

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Segundo Guilherme, o professor da USP que estuda o impacto da pandemia na saúde mental das crianças e adolescentes, a pandemia e todo o contexto que a acompanha chegam aos cérebros das crianças por meio de informações, das emoções de seus pais, das mudanças da rotina e do ambiente.

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“Todas as crianças e adolescentes neste momento se deparam com situações que geram sofrimento. A limitação de não poder ir e vir, a restrição de espaço, o medo de ser infectado ou de ter seus familiares infectados, a interrupção do ensino presencial, a percepção de que seus pais estão ansiosos, preocupados, irritados, as brigas, são todas situações que geram estresse”, explica.

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Para os profissionais de saúde, o Ministério da Saúde criou um canal de teleconsulta psicológica por meio de videochamada, o TelePsico Covid-19, que começou a funcionar na última terça-feira (19 de maio) e segue até o fim de setembro, segundo informações do ministério. O contato deve ser feito pelo telefone 0800 644 6543 para marcar a consulta, que poderá contar também com o atendimento de um psiquiatra, se necessário.

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As profissionais de enfermagem relatam que lidar com mortes em grande quantidade e de forma tão frequente faz com que elas fiquem em alerta o tempo todo, preocupadas se foram infectadas ao menor sinal de algum sintoma que seja compatível com o coronavírus.

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“Certos tipos de situações a gente está acostumada, mas com a covid-19 a tensão é muito grande. O que mais pega é a parte psicológica, a enfermagem tá doente na parte psicológica de lidar com tantas mortes. Pacientes que eram o filho de alguém, era a mãe de alguém”, diz Marina Ribeiro dos Santos, 34 anos, técnica de enfermagem no Hospital Municipal de Parelheiros, em São Paulo.

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Mãe solo, Marina tem um filho de sete anos, que é cuidado pela mãe e o padrasto da auxiliar de enfermagem enquanto ela trabalha. Saindo às 11h30 de casa para trabalhar, e voltando às 22h30, sobra pouco tempo para estar com o filho. No período que está em casa, ela tenta ao máximo acompanhar as atividades da escola e as aulas de judô que foram adaptadas para o ensino à distância.

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Marina e o filho: ela tenta ao máximo acompanhar o seu ensino a distância (Foto: Arquivo pessoal)

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