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A 89.ª cerimônia de entrega do Oscar, que ocorreu em Los Angeles (Califórnia) no último domingo (26/02), foi extremamente aguardada. O motivo envolvia não apenas o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, vários filmes com diferentes perspectivas e atores de diferentes perfis estavam concorrendo, mas também porque se esperava que os libelos contra o presidente Donald Trump dessem o tom da apresentação, dos discursos dos ganhadores e das entrevistas concedidas pelos atores e pelas atrizes no tapete vermelho antes do evento.
E, de fato, a cerimônia foi marcada por comentários críticos e politizados contra o presidente – para alguns, mais, para outros, não fortes o suficiente, mas foi indiscutível o tom de chacota, de provocação e de denúncia do racismo, do machismo, da islamofobia e da LGBTfobia da atual administração presidencial estadunidense. Um fato, porém, parece ter passado batido para a maioria dos votantes do Oscar e para a plateia: o de que havia pelo menos dois conhecidos agressores de mulheres sentados naquelas cadeiras com chances reais de levar um prêmio para casa. Um deles, de fato, venceu a indicação.
Os agressores em questão são Casey Affleck e Mel Gibson. O primeiro foi acusado por duas colegas de assédio sexual enquanto filmavam Eu ainda estou aqui, filme produzido por Affleck em 2010. As mulheres, uma produtora e uma diretora de fotografia, entraram com uma ação na Justiça contra Affleck, cujo conteúdo se encontra online, e relatam momentos de verdadeiro terror, humilhação e violência vividos nas mãos dele.
As mulheres denunciaram que Affleck as humilhava falando sobre seu corpo, aparência e sexualidade, que frequentemente chamava mulheres de “vacas”, pedia a outros homens da equipe que as tocassem ou mostrassem o pênis a elas, e uma relatou que, certa vez, Affleck quis obrigá-la a entrar no quarto dele, aos empurrões e tapas. Também foi colhido o relato de que uma delas acordou, no meio da noite, com Affleck seminu, bêbado e acariciando suas costas, e que ele trancou uma delas para fora do próprio quarto (da vítima).
Devido ao fato de que assédio e tentativas de estupro e estupro consumado são extremamente difíceis de se provar em juízo, uma ação na esfera criminal não chegou a ser ajuizada, prosseguindo apenas na civil. Affleck então conseguiu realizar um acordo extrajudicial com as duas, e as indenizou (mas não divulgou o valor).
No caso de Mel Gibson, que estava sendo festejado por seu filme Até o último homem e concorrendo a melhor diretor pela obra, há vários casos de violência doméstica e de antissemitismo envolvendo o ator. Numa ocasião, Gibson chegou a dizer que a sua então namorada, violentada por ele em 2010, merecia apanhar, em um áudio divulgado por ela. E há vários outros casos: Johnny Depp, Michael Fassbender, Woody Allen, Roman Polanski, exemplos de como uma denúncia de violência de gênero pode acabar com a carreira de um homem.
Diante dos protestos de alguns artistas, de fãs de cinema, de militantes pelos direitos das mulheres e de parte da imprensa frente à nominação de Affleck para o Oscar de Melhor Ator e à possibilidade de ele ser premiado – o que de fato ocorreu –, a reação foi imediata por parte dos que minimizam a violência contra a mulher. Afinal, o Oscar trataria da melhor interpretação, de “arte”, e não de militância. O prêmio não seria para “melhor homem do ano” ou de “melhor comportamento do ano”, e sim de melhor ator. A academia, embora não tenha se manifestado quanto a isso, pareceu concordar com essa mentalidade.
O curioso é que a mesma academia que resolveu fechar os olhos frente ao caso de Affleck está longe, como se viu, de ser apolítica. Com razão, denunciou a política extremamente discriminatória de Trump contra imigrantes, principalmente contra adeptos do islamismo. Também se esforçou – embora não o suficiente – para deixar para trás a imagem de racista e de privilegiar apenas atores brancos para os melhores papeis. O que explica, então, o fato de que, quando se tratam de violações dos direitos das mulheres, haja esse silêncio?
Durante a cerimônia, premiou-se Moonlight, um belíssimo filme sobre a experiência de um menino negro e gay a crescer na periferia de Miami. O diretor do ganhador de Melhor Filme Estrangeiro (O apartamento), o iraniano Ashgar Farhadi, protestou contra Trump não indo à cerimônia, e uma colega leu seu protesto contra a política imigratória atual, sendo aplaudidíssima. O apresentador Jimmy Kimmel atirou para vários lados, inclusive tendo provocado o presidente no Twitter. Em outras ocasiões e anos, a política também deu o tom no Oscar: da ex-primeira-dama Michelle Obama apresentando o Melhor Filme de 2013 (Argo, que trata de um episódio político crítico envolvendo Irã e EUA, dirigido pelo irmão de Casey, Ben Affleck) a Leonardo DiCaprio protestando contra a destruição do meio ambiente, passando por um filme celebrado que criticou a perseguição a roteiristas comunistas durante a era macarthista (Trumbo) e várias outras mensagens que mostram que não se trata apenas de “arte”, mas de tomada de partido. A quem serve a politização do Oscar? Às mulheres, certamente não.
Além disso, seria ingenuidade defender que o critério para concorrer à estatueta dourada envolve apenas talento, e não também dinheiro e relações políticas em sentido amplo. Hollywood movimenta bilhões todos os anos. Somente em 2015, o total de arrecadação nas bilheterias ultrapassou os US$ 11 bilhões, somados todos os filmes que estiveram em cartaz nos EUA e no Canadá. Uma vez que é preciso evitar o prejuízo (pagar o filme, basicamente) e também obter lucro, as produtoras fazem marcação cerrada sobre a academia para obter indicações. Investem pesado em divulgação, em mimos para jornalistas da área, em merchandising social e fazem maratona de entrevistas coletivas com atores e atrizes, entre outras ações. Filmes de menor orçamento, com rostos pouco conhecidos e produtores com poucos contatos por vezes podem realizar verdadeiras obras-primas, mas não verão seus filmes serem indicados.
Além disso, em relação aos atores-agressores em si, a discussão é muito mais complexa do que a famosa frase “é preciso separar o ator do homem”. Casey Affleck, por exemplo, era um ator apenas relativamente famoso – mais por ser irmão de Ben Affleck e amigo de Matt Damon do que por seu talento (que nem é o que está sendo discutido aqui). O que é preciso ponderar e refletir é que ser premiado com o Oscar significa não apenas levar a estatueta para casa. Significa também ganhar as manchetes, ganhar prestígio, fama, contratos de publicidade, elogios de jornalistas, mais fãs que o acompanharão. Significa ganhar poder e poder moldar sua imagem de forma a afastar o passado de agressor e deixar aparecer apenas a do homem talentoso, do gênio, ou então, pelo menos, a do ator talentoso e perseguido, que não pode realizar sua arte por conta da militância de quem não sabe separar as coisas. É esse o poder que queremos dar a alguém que agride mulheres e não sabe se colocar em seu lugar no ambiente de trabalho?
Se, quando não era muito famoso, Casey se sentiu autorizado a praticar tais atos, como será agora, que ele faz parte do seleto grupo de atores a ganhar um Oscar na categoria principal? E, se Affleck tem direito a ser reconhecido e deixado em paz como profissional, por que negou o mesmo direito às suas colegas de profissão? Por que também não as respeitou enquanto seres humanos, mulheres e profissionais? Como será a vida e a carreira dessas mulheres após ficarem conhecidas como as mulheres que denunciaram um astro do cinema oscarizado? Conseguirão trabalho ou serão vistas como as problemáticas e extremistas com quem ninguém quer trabalhar? Por que temos de esquecer a vida pessoal do ator e focar apenas na sua carreira, enquanto o mesmo direito é negado às mulheres? Mesmo a indenização, justíssima, que receberam, não será capaz de afastar o fato de que viveram um tormento psicológico e físico. Também não vão compensar a falta ou diminuição de trabalho que certamente enfrentaram e enfrentarão.
Após mais uma demonstração de que não importa o quanto um homem agrida outras mulheres, ele nunca será responsabilizado pública e profissionalmente – e mais: a de que ele continuará ganhando poder e notoriedade e se tornando cada vez mais intocável conforme sobe os degraus da fama –, qual o impacto que essa atitude de Hollywood terá na vida de mulheres na indústria do cinema que hoje sofrem assédio de colegas? Será uma mensagem de que ninguém levará a sério a sua denúncia, certamente. E, enquanto isso, a imagem de indústria liberal e politizada de Hollywood seguirá crescendo. Continuamos a não aprender com o passado não muito distante em que atrizes eram estupradas, assediadas e humilhadas por colegas e superiores homens, como Alfred Hitchcock, Marlon Brando e Bernardo Bertolucci.
Diretor de O último tango em Paris, Bernardo Bertolucci admitiu que ele e o ator Marlon Brando planejaram o estupro real de Maria Schneider no longa. “Queria sua reação como menina, não como atriz”, confessou. “Não queria que Maria interpretasse sua humilhação e sua raiva, queria que sentisse. Os gritos… ‘Não, não!’”.
A incrível habilidade das pessoas de compartimentalizar as coisas nos mostra por que é tão difícil desmascarar agressores. Eles são bons atores, são trabalhadores, são gênios. Quem irá acreditar que esses homens tão prestigiosos violentam mulheres? E os agressores sabem disso e contam com isso – contam com nossa capacidade de separar as coisas e fazer vista grossa ao que eles fazem. Ninguém mais vai se lembrar do agressor, apenas do ganhador do Oscar.
E a maior hipocrisia de todas é que o visado da noite de domingo (e com razão, obviamente), Donald Trump, é acusado das mesmas atitudes criminosas que levaram Affleck a realizar um acordo com suas colegas: o de não respeitar seus corpos, de tocá-los sem seu consentimento e de tratar mulheres como animais e objetos. Apesar do tratamento diferenciado por parte do Oscar, os dois se igualam ao demonstrarem por que as mulheres geralmente não denunciam o que sofrem por parte dos homens: ninguém acredita em suas palavras, elas são culpabilizados e, de quebra, para reiterar sua humilhação pública e o fato de que ninguém se importa, esses homens podem ganhar um Oscar ou a presidência dos EUA.
No Brasil
Aqui, o recado passado foi semelhante: nem mesmo um feminicídio pode prejudicar a carreira de um homem. Após sair da prisão para aguardar em liberdade o julgamento de um recurso, o “goleiro” Bruno foi tratado com comiseração pelos meios de comunicação brasileiros, em especial os da TV. Em entrevistas, foi pintado como a verdadeira vítima, como um exemplo de superação, como homem trabalhador que quer voltar a jogar, um homem religioso e um pai dileto, já que disse que irá lutar pela guarda do filho que teve com a mulher que mandou assassinar, hoje aos cuidados da avó da vítima, Eliza Samúdio. Disse até que irá escrever um livro sobre toda a história, embora até hoje não tenha dito onde está o corpo de Eliza. E isso não é novidade: há alguns anos, Bruno já obteve uma ajuda preciosa da imprensa, que fez as vezes de assessora de comunicação do goleiro, como mostram essas matérias da Placar e do Globo Esporte.
Aliás, a forma pela qual Bruno e Eliza são conhecidos na imprensa diz muita coisa, mesmo que sutilmente: Eliza é a “amante de Bruno”. Bruno é goleiro talentoso e vencedor, com propostas para voltar a jogar até no exterior. Nas matérias, nenhuma menção ao termo feminicídio¹. Fala-se em “morte de Eliza”, como se a mulher houvesse morrido de causas naturais ou de acidente. Em geral, também não há a voz de um familiar de Eliza, que fale sobre como estão seus parentes e o filho.
Mais raro ainda é haver espaço para especialistas nas questões de gênero que possam de fato contribuir para a discussão do tema – os números da violência e de impunidade, os requintes de crueldade que envolvem esse tipo de crime (como ataques em partes específicas do corpo da mulher, como mamas, vagina, ânus e rosto), os estereótipos de gênero que alimentam essa violência, os serviços que as vítimas devem acionar, o impacto do crime na vida dos filhos, entre outras questões. Há, simplesmente, o sensacionalismo, a vitimização do agressor, o crime tratado como uma patologia ou uma monstruosidade, em busca dos cliques, revertidos em audiência e publicidade.
Obviamente que é preciso respeitar o devido processo legal e o direito à ampla defesa de Bruno, e afastar qualquer reiteração da máxima de que “bandido bom é bandido morto”. Porém, o que se discute aqui é a irresponsabilidade da imprensa, que sensacionaliza, não aprofunda, trata a vítima como um número (ou nem isso), sem voz nem história, que vitimiza o agressor e limita o tema às páginas e editorias policiais, em vez de promover o aprofundamento do tema. É preciso questionar a premissa de que a mídia tudo pode e de que tudo o que ela veicula está consagrado pelo direito constitucional à informação e pelo interesse público. Nem sempre. Precisamos questionar: quais as consequências da publicação de matérias assim? Como elas são costuradas, que fontes são ouvidas, qual o objetivo das mesmas? A mídia deve ter responsabilidades, até porque isto está previsto na Constituição Federal e mais especificamente na Lei Maria da Penha, artigo 8°, inciso III.
E os meios de comunicação de fato não podem dizer que não possuem experiência com o tema, nem que nunca foram objeto de escrutínio neste sentido, e que portanto não sabem ainda como agir: basta lembrar a cobertura irresponsável e tenebrosa de casos como o do assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, em 1976, em que a imprensa difamou a vítima e deu espaço para o agressor dizer que matou “por amor”. Ou um caso recente, o do sequestro e assassinato de Eloá Pimentel por Lindemberg Alves, em 2008, transmitido em tempo real pelas emissoras de TV, com direito a entrevista com o assassino e romantização da violência doméstica, episódio reconstruído no documentário Quem matou Eloá?. A pergunta é importante: Alves puxou o gatilho sozinho?
Recentemente, com a denúncia de que o cantor sertanejo Victor Chaves havia batido na esposa grávida, o Fantástico veiculou uma entrevista com o cantor, em que a repórter perguntava ao agressor se a mulher tinha algum “tipo de transtorno”. A entrevista, provavelmente de interesse da Globo e do cantor, não contribuiu em nada – não mostrou por que tantas mulheres têm medo de denunciar, ou por que tantas voltam atrás na denúncia, não falou dos índices absurdos de violência doméstica e de feminicídio, não ouviu especialista de gênero. Foi, como em mais um caso, apenas uma tribuna para o agressor, que certamente não será afetado e poderá surgir “fortalecido” de tudo. Ainda não aprendemos nada com o passado, e não se sabe quando iremos aprender.
¹ Embora na época da morte de Eliza Samúdio a lei do feminicídio ainda não tivesse sido aprovada, aqui o feminicídio é tratado como fenômeno social, que existe independentemente de aprovação ou sanção do Direito.
Vanessa Fogaça Prateano é jornalista, estudante de Direito e integrante do Coletivo de Jornalistas Feministas Nísia Floresta
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