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Veja publicação original: População LGBT é jogada à própria sorte
Com 17 anos, Léo Barbosa caminhava em uma estrada em Caruaru, no agreste de Pernambuco, até ser parado por um carro. O motorista saiu do veículo, chamando-o de “sapatão” e o agrediu com chicote, deixando marcas físicas, que sumiram com o tempo, mas as lembranças não. Trinta anos depois e morador de Santo André, Léo ainda teve outros episódios de agressões e exclusão, por ser transgênero.
Léo é apenas um de diversos retratos dessa natureza no Brasil, o país que mais matou travestis e transexuais no planeta em 2016. Segundo o Grupo Gay da Bahia, 347 pessoas foram mortas pela sua condição sexual (homossexualidade) ou de gênero (travestis e transexuais). Ou seja, a cada 25 horas, uma pessoa da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) perdeu a vida.
Neste ano, a Rede Trans Brasil identificou 144 assassinatos de pessoas trans e travestis em 2016. Ainda segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 61 pessoas foram mortas por transfobia, em 2017, até meados de maio. Tais dados foram coletados por meio de jornais e de movimentos LGBT, uma vez que no Brasil, não há especificação de crimes motivados por gênero entre os órgãos de Segurança Pública.
No entanto, a exclusão e o desrespeito à população LGTB também é uma forma cruel que mata gradualmente. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), mais de 800 mil suicídios são registrados em todo o mundo a cada ano. De acordo com o dossiê da Rede Trans Brasil, o tipo de ocorrência é uma das causas mais recorrentes entre homossexuais, travestis e transgêneros no País.
Portanto, ser homossexual, travesti e transgênero no Brasil significa assumir para si um caminho árduo que poucos têm coragem. Não se trata apenas sofrer risco de violência e insultos preconceituosos, que por si só, já são graves pelos traumas físicos e emocionais. No entanto, há quem não tenha a aceitação da família, sai de casa, sem amparo do Poder Público, cujo isolamento termina em depressão.
‘Já estou fazendo hora extra’
“Já estou fazendo hora extra nesse planeta. Tenho 47 anos e a média de idade de uma pessoa trans é de 35 anos no Brasil”, constata Léo Barbosa. A expectativa de vida no País é de 75,4 anos, segundo dados de 2015 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No entanto, por ser transgênero, Léo não compartilha desse privilégio e lida com a exclusão da família e da sociedade.
“Todas as violências e violações de direito, eu sofri. Meu único emprego formal foi em 1989. Estudei nos melhores colégios, fiz faculdade de Administração e atendi a tudo que o mercado pedia. Mas ouvia ‘não contratamos pessoas como você’. Imagine você ouvir isso milhares de vezes”, lembra.
De sexo feminino no nascimento, Léo percebeu que era menino aos cinco anos. No entanto, nunca teve aceitação total da família. “Não me sentia mulher, não me sentia lésbica. Eu sempre fui homem e heterossexual”, descreve. Apesar de muitas vezes cogitar em desistir, hoje Léo faz graduação de Direito, em São Paulo, para ajudar quem precisa, mesmo que seja necessário enfrentar preconceitos de alunos e docentes.
‘Tentei suicídio até superar tudo’
Morador de São Bernardo e estudante de Economia da UFABC (Universidade Federal do ABC), Raimundo Neres, 35 anos, sentiu na pele o desamparo familiar, simplesmente por ser homossexual. “Meus pais vieram do Ceará e a minha família toda é testemunha de Jeová. Morávamos na Cohab 2, em Itaquera (zona leste de São Paulo), e aos 14 anos comecei a ter conflitos e tinha medo”, recorda.
Ao tomar conhecimento, integrantes da igreja imediatamente proibiram Neres de dialogar com outros homens. O pior, porém, viria a seguir, quando a religião afastou a família de seu dia a dia. “Meus irmãos não podem falar comigo e não tenho contato com meus sobrinhos. Fiquei com depressão, tentei suicídio, usei drogas, até superar tudo isso após 15 anos de conflitos. Hoje, tenho a relação básica com a minha mãe”, explica Raimundo, o Rai.
‘No serviço público, sou exceção’
Há mais de três décadas na Prefeitura de São Bernardo, Neon Cunha, 47 anos, deixa claro que é uma exceção entre os funcionários transgêneros no serviço público. Atualmente, ela ocupa a chefia de seção áudio, vídeo e infografia da Secretaria de Comunicação e é a única trans, entre 13,6 mil servidores. Desde os 12 anos empregada no Paço, quando era mensageira, Neon teve de lidar com humilhação e preconceito.
Com registro de nascimento como menino, Neon sempre foi uma mulher desde que tomou consciência de seu gênero, a partir dos dois anos de idade. A sua orientação sexual hetero somente foi vivenciada aos 26 anos. “Se não tivesse conhecimento político e dos meus direitos, estaria ‘penando’ (na vida). O funcionalismo não está devidamente preparado para lidar com pessoas trans. Meu caso não é regra, e sim uma exceção”, afirma.
Com 12 anos, Neon também soube por meio de amigas transgêneras que o preconceito mata. No entanto, a vida ainda lhe provaria pelos próprios olhos, por meio da Operação Tarântula, uma ação policial de caça a travestis e transgêneros, durante o segundo governo de Jânio Quadros (à época no PTB), entre 1986 a 1988, na Prefeitura de São Paulo.
“O próprio Jânio declarava que era preciso limpar a cidade dos ‘anormais’. Um dia estava no Centro de São Paulo, quando um policial desceu do camburão e atirou na cabeça de uma travesti negra. Depois ele olhou para nós e disse: ‘O que foi? Nunca viu melado (sangue) escorrer não?’”, lembra.
‘Meu refúgio é na música’
Hoje estabelecida em Santo André, a artista musical Sanara Santos, 18 anos, também passou pelo afastamento de sua família. Por ser transexual, a jovem se viu obrigada a sair de casa ao ser agredida pela irmã, após voltar de Fortaleza (Ceará), e ser acusada de pagar a viagem com prostituição, o que nega. “Sou uma pessoa trans, preta e de favela. Não faço ideia como seria uma abordagem comigo numa periferia”, lamenta.
Sanara achou na música uma forma de fazer críticas sociais ao Poder Público quanto à falta de amparo a travestis e transgêneros, por meio do rap, funk e samba. “O acompanhamento emocional não existe. Nas pessoas trans, isso é necessário. Tive amigas que tentaram cometer suicídio ou que fizeram auto-violência por meio de cortes, para penalizar o
corpo que as pessoas não queriam ver”, explica.
Pesquisas apontam maior tendência de suicídio entre LGBTs, diz psicólogo
Há mais de 20 anos trabalhando na Saúde Pública, o psicólogo Reginaldo Branco da Silva confirma que a discriminação e a repressão sexual (homossexualidade) e de gênero (travestis e transexuais) podem elevar casos de depressão e até tentativas ou consumação de suicídios. Para o especialista, o enfrentamento do preconceito é necessário por parte do Poder Público, assim como o acompanhamento continuado dos transtornos emocionais para identificar tais riscos.
“Diversas pesquisas, geralmente realizadas por institutos americanos, apontam maior tendência de suicídio entre a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), principalmente entre jovens. Muitas vezes é possível tratar a pessoa para ajudá-la a superar esse momento. Porém, nem sempre se consegue prever a tentativa de suicídio, geralmente, porque a pessoa não é continuamente acompanhada por nenhum serviço de saúde”, diz.
Silva ainda assegura que a preocupação entre jovens na população LGBT ocorre principalmente devido à inexperiência com relação ao enfrentamento da violência por sua condição, além da ausência de autonomia financeira e afetiva, principalmente de familiares. Entretanto, o psicólogo também alerta para suicídios entre os idosos por motivos como a solidão, além do alcoolismo e outras drogas nessa faixa etária.
“Ainda há levantamentos que apontam o importante papel da família nessa situação: quanto menos a família aceita a condição LGBT e discrimina seu parente, maior a chance dele aumentar suas situações de risco (violência, uso de álcool e outras drogas, ficar em situação de rua), assim como influenciar diretamente nas tentativas de suicídio”, completa.
Amparo público ainda é insuficiente no ABC
Em políticas públicas para a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), o ABC engatinha. O RD procurou as sete prefeituras da região para saber se existe serviço de abrigo para acolher pessoas do segmento em situação de risco, com funcionários treinados, garantia de segurança e respeito à condição de gênero do cidadão ao uso de banheiros e dormitórios (masculinos ou femininos).
O governo de Santo André diz que o Centro POP, conhecido como Casa Amarela, é capaz de atender ao público LGBT e com funcionários capacitados. No entanto, a gestão municipal admite que o albergue, administrado pela instituição Lídia Polone, ainda não apresenta estrutura necessária para atender a ocupantes homossexuais e transgêneros e que tais medidas estão em tratativas.
A Prefeitura de Ribeirão Pires, por sua vez, informa que a Casa Abrigo conta com servidores com capacidade para atendê-los, por meio de funcionários orientados a respeitar a identidade de gênero de cada usuário. A nota informa que os travestis podem utilizar o banheiro feminino e há a garantia da segurança dos ocupantes do local.
Em Diadema, o governo informa que o município não possui casa abrigo para o público LGBT, entretanto, conta com dois albergues que recebem a população trans, que também tem à disposição o Centro POP. A administração ainda oferece ações de prevenção a DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), como a AIDS e hepatites virais.
São Bernardo, São Caetano, Mauá e Rio Grande da Serra não esclareceram se têm focos direcionados à população LGBT em situação de vulnerabilidade.