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Pelo direito de ser quem se é

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Veja publicação original: Pelo direito de ser quem se é

 

A forma como mulheres trans e travestis são privadas de reconhecimento social e de direitos básicos de cidadania não se dissocia da opressão patriarcal que segue impondo também às mulheres cisgêneras a violência da expectativa de um ideal hegemônico, universal, que constitui o ‘ideal de mulher’

 

 

No filme Traídos pelo Desejo, de 1992, o Exército Republicano Irlandês (IRA) sequestra o soldado inglês (Forest Whitaker) que desenvolve uma amizade com o guerrilheiro (Stephen Rea) encarregado de vigiá-lo. Mas o soldado morre e o guerrilheiro vai dar a notícia a Jil (Jaye Davidson), a namorada dele, por quem acaba se apaixonando. O grande burburinho causado pelo filme se dá por conta do “segredo” que envolve Jil. Tenho na memória o quanto me identifiquei com a personagem, que se reconhecia e se respeitava enquanto mulher, sem grandes adjetivos ou imposições denominativas. Para além da identificação existia a semelhança física entre nós duas: embora fosse uma personagem, era ela quem conduzia minha auto-identificação enquanto mulher transgênera.

Passaram-se mais de 22 anos para que eu resolvesse reivindicar este direito: abri uma ação pedindo ao Estado Brasileiro que me validasse em nome e gênero. Com a negação ao direito de ser quem sou, pedi então o direito à morte assistida e/ou digna. Lembremos que este é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. A ação ganhou visibilidade na imprensa e no final de 2016 saiu a sentença favorável, inédita, já que o auto-reconhecimento foi considerado. Eu não precisei me submeter à cirurgia de readequação genital e nem a todo um processo patologizador para conseguir a mudança de gênero e nome.

Poderia ser uma enorme vitória e eu deveria ter celebrado. Todos à minha volta esperavam por isso. Mas durante o ano de 2017, desde que peguei a nova certidão de nascimento, fiquei tentando identificar a dor que ela me trazia. Foi somente após uma breve e potente convivência com mulheres trans e travestis encarceradas, por meio do Instituto de Defesa do Direito de Defesa de São Paulo, que retomei minha identidade dentro de uma sociedade que promove a desigualdade social. Foi impactante estar em uma sala com outras 24 semelhantes. Era um espelho facetado que mostrava nossa principal igualdade: todas negras em seus variados tons. Mas ali também havia beleza e a cultura de quem vive (e sobrevive) a despeito da privação da liberdade.

Só agora, em janeiro de 2018, comecei a fazer a retificação dos documentos.

O fato é que cada passo dado nesta longa jornada pela legitimidade concedida por outro me faz pensar, reconhecer e me envolver na dor e na distância de quem sequer pode acessar o sistema, e não são poucas as pessoas que são violadas por essa burocracia que nos oprime e determina condições inferiores ou total negação de humanidade. Eu queria tudo aquilo. Mas não só pra mim.

Não consigo celebrar uma vida, ainda que a minha, enquanto outras tantas são negociadas. Aqui falo da dor que sinto, e da raiva, ao ver tanta desonestidade para impedir o direito mais simples, o mais autêntico: o de existir em sua verdade, o direito de ser quem se é.

A forma como mulheres trans e travestis são privadas de reconhecimento social e de direitos básicos de cidadania não se dissocia da opressão patriarcal que segue impondo também às mulheres cisgêneras a violência da expectativa de um ideal hegemônico, universal, que constitui o “ideal de mulher”.

Simone de Beauvoir ensina: “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.” Somente o caminho da liberdade pode eliminar a sujeição. É ele que traz a certeza de cessar o choro de quem não está disposta a compactuar com a dor. Ninguém pode garantir uma vitória, mas a própria luta pode compensar. Entre diferenças, opressões e privilégios, o “mexeu com uma” deve ser de fato o “mexeu com todas”.

A luta, a que dói em mim, é pela dignidade de todas, esta é a conquista que quero celebrar em um grande coletivo.

Neon Cunha é Publicitária, diretora de arte e colaboradora da marca Isaac Silva. É também ativista independente, mulher negra, ameríndia, feminista e transgênera. Tem atuado em palestras e debates na defesa da dignidade, em especial das transgêneras

 

 

 

 

 

 

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