Saiu no site GELEDÉS:
Veja publicação original: Patrioska: o fenômeno do machismo dentro do machismo
Venho fazendo anotações a respeito da discussão que vem mantendo o feminismo na mídia porque a coisa toda me parece irresistível. O quiproquó pós manifesto das francesas mobilizou perspectivas em muitos rincões do Ocidente, e voltarei ao assunto em outras colunas, pois quero explorar alguns de seus impactos.
por Joanna Burigo
Mas faço uma pausa para compartilhar um causo.
Este causo aconteceu comigo ontem, e sintetiza padrões comuns em situações pelas quais mulheres passam com frequência, sobretudo mulheres que se definem como feministas. Um padrão é o nosso acúmulo de esforços.
O primeiro, o esforço que precisamos fazer para conviver com a inevitabilidade das situações machistas. Os homens não têm como saber isso, mas viver apesar dos constantes episódios de machismo exige um esforço que eles desconhecem.
E falo em viver mesmo, dos sapos que engolimos em interações do cotidiano para não sairmos por aí como Michael Douglas em Um Dia de Fúria.
Para quem se dispõe a compartilhar perspectivas feministas, seja com análises sociais ou dividindo causos, outros esforços são necessários: conseguir se articular de forma compreensível, ponderada, fundamentada e crível, e ainda arriscar retaliações – muitas vezes violentas – justamente da parte de quem começa os imbróglios ao cometer atos machistas.
Falar de machismo é desagradável, e exige esforço..
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Mas vamos ao causo.
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Os personagens somos eu, que estudo e trabalho com feminismo (e importa especificar isso, pois mulheres menos envolvidas do que eu devem sentir tanta ou mais angústia ao passar por situações assim), e o cara, que não é o machão típico, nem o macho alfa, que é esquentadinho mas não necessariamente violento, é instruído, tem bons gostos e talentos, e é divertido.
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De um lado da interação, alguém cuja vida profissional é completamente vinculada à teoria e práxis feministas. Do outro, alguém que sabe disso muito bem, mas pouco sabe sobre o tema. O que é compreensível – mas também não é difícil de ver, entender e demonstrar que ele não quer saber.
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Este não querer saber revela outro padrão: o homem que, por ser legal, crê ser incapaz de cometer atos machistas, e ao ser apresentado ao machismo de seu ato, nega tudo e responde com mais machismo.
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É uma repetição social doida e doída que homens cometam atos machistas (e compreendo que possam não saber estar fazendo isso), para que mulheres os avisem, para que o resultado, por sua vez, seja não entendimento e progresso, mas a retaliação.
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Chamo o contínuo destas ações e comportamentos tipicamente patriarcais de “patrioska”, em alusão àquelas bonecas russas, que parecem se acumular e entrar ou sair uma da outra.
Pois esse causo é um exemplo típico da patrioska.
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O cara me mandou link para uma matéria escrita por uma mulher que se posiciona contra o feminismo. Li o texto por dever do ofício, e se tivesse respondido para o cara, teria apenas dito: “mulheres antifeministas existem, vida que segue”, e qualquer interação depois disso dependeria do retorno dele..
É assim que se constitui o diálogo. Mas não respondi nada sobre o texto porque, junto do link, veio esse pedido: “Por favor não me responda”.
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A declaração óbvia da falta de vontade de dialogar é a própria demonstração do apego narcísico e pueril ao desejo (consciente ou não) de se manter como voz dominante.
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O cara teve disposição para ler um texto que, imagino, confirma sua perspectiva.
Teve disposição para me enviar o texto, prevendo que eu ofereceria contrapontos. E, por isso, teve disposição para dizer que não queria meu parecer.
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A única disposição que ele deixou claro não ter é a de me ouvir. Em outras palavras, ele sente ter o direito de oferecer uma perspectiva enquanto conta com meu dever de não oferecer a minha.
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Respondi, não falando do texto, e sim apontando para a injustiça que é querer falar sem querer ouvir. E o grau da agressividade que sucedeu me deixou estarrecida. Não compartilho a troca toda por respeito à paciência da leitora, mas eis parte da interação:
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Ele: Respondeu, pedi para você não responder…
Eu: Não vou receber bobagem sobre meu próprio trabalho e aceitar quietinha. Até parece que não me conhece há mais de 30 anos. Não sabe brincar, não desce pro play. Se não mandar bobagem, não respondo.
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Ele: A diferença entre você e Hitler é que ele mandava matar.
Eu: [Emojis de risos complementados com] Ai, cara. Tu nem OUVE meus argumentos. É muita ousadia. Se OUVISSE veria que [feminismo] não tem nada a ver com ordem, e sim com justiça, e saberia que “feminazi” é o apelido mais velho que machistas dão para feministas que eles não querem escutar. Essa tua comparação é tão velha que chega a ser obsoleta. A chave que precisa virar tá em ti, não em mim. E isso fica EXPLÍCITO quando ME PEDES para não responder. Quem quer ouvir e quem não quer?
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Ele: Joanna, vai tomar no cu. Faz o seguinte. Esquece que eu existo. Que esqueço que você existe. Eu não gosto mais de ti. Só insisto por um amor que ainda existe.
Eu: Vamos ter que conviver com isso, então, cada um na sua. Acho uma pena. Mas a teimosia e a soberba são tuas. Te vira. Beijos.
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Ele: Vai tomar no cu de novo, hitlerzinha. Idiota. Imbecil. Retardada. Fui.
É ou não é a patrioska?
Boneco um: o cara manda conteúdo raso sobre a minha área. Boneco dois: pede para que eu não engaje. Boneco três: quando engajo dizendo que o pedido pelo meu silêncio não seria realizado, ele dispara ódio. Machismo provocador sobre machismo cego e surdo sobre machismo violento.
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E eu não quero importunar esse cara (quem mandou o link, afinal?), ou outros caras. Meu trabalho não é policiar suas vidas ou monitorar seus pensamentos, mas explicar os processos injustos que formam o patriarcado, quando eles se apresentam, para que possamos transforma-los. É esse o trabalho feminista.
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Há alguns meses, depois de um chilique que esse mesmo cara deu quando sugeri que a letra da música “Every Breath You Take” descrevia um machista possessivo (e descreve), expliquei que não me importo com o desconforto que a perspectiva feminista causa.
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Expliquei que incômodos são sinal de trabalho bem feito, mas não sua intenção. Expliquei que insights sobre relações de poder soarão desagradáveis para quem se beneficia delas.
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E expliquei que apresento perspectivas que revelam padrões, mas o esforço para mudanças de comportamento são responsabilidade de cada indivíduo.
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Ainda antes disso, esse mesmo cara disse que o entrave da nossa relação é que ele precisa pensar duas vezes antes de falar ou fazer as coisas.
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Comemorei o sucesso da estratégia, sem saber se ele a tinha entendido. Hoje é evidente que não, e aí se apresenta um nó cego cujo desatamento não compete ao feminismo.
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Aprimorar o comportamento dos homens frente à própria responsabilidade pelo machismo sistêmico, seja nas instituições ou nas relações individuais, não é trabalho para o feminismo.
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A recusa dos homens em ouvir nossa perspectiva é da ordem da cognição, da psique, do poder, e alguns diriam até do caráter. É um comportamento, que é social no sentido que seu surgimento só é possível por causa do próprio sistema patriarcal. Mas é um comportamento, pessoal e, infelizmente, transferível.
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Descrever este comportamento exige que usemos critérios objetivos – e estes podem ser capturados na linguagem, como na interação registrada acima, ou em ações violentas mais graves.
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Mas as interpretações dessas descrições dependem menos da clareza com que elas são feitas do que de movimentos subjetivos da psique de quem as recebe.
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Não adianta apenas apontar para um fenômeno para que as pessoas o enxerguem, é preciso descreve-lo bem, demonstra-lo com clareza.
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E por mais cansativo que isso seja, faz parte. Mas se a pessoa não quer nem enxergar o fenômeno, nem ouvir as explicações sobre ele, e só faz xingar quem consegue aponta-lo? Nó cego.
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Se nossas vozes são consideradas importunas ou autoritárias mesmo quando apontamos para a origem autoritária das violências a respeito das quais dizem estarmos importunando, existe alguma solução pacífica e integradora? Como mover se não entendem que a violência começa na falta de escuta – que as vezes nem é inconsciente, é declarada mesmo.
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Não querer saber sobre o que o feminismo pode ensinar por desejo (ainda que inconsciente) de permanecer no topo da cadeia da razão é sintoma de apego ao próprio poder que tentamos desarticular.
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Os sintomas de machismos e misoginias internalizados e inconscientes se revelam na linguagemcom que tratamos assuntos de gênero, ou as pessoas por conta de questões de gênero.
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E o feminismo tem o poder de revelar estes sintomas, mas não de completar o tratamento. Pensar sobre si mesmo como veículo de machismo pode até ser desagradável. Mas é preciso fazer o esforço.
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