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‘Para nós, a cozinha é trincheira de luta’, diz líder de coletivo que empodera mulheres por meio da comida

Saiu no site O GLOBO

 

Veja publicação original:  ‘Para nós, a cozinha é trincheira de luta’, diz líder de coletivo que empodera mulheres por meio da comida

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Festival LivMundi, que acontece neste domingo no Parque Lage, vai apresentar o trabalho de agroecologia e empoderamento desenvolvido por mulheres na Penha, Zona Norte do Rio

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Por Renata Izaal

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“Meu nome é Ana Santos. Sou neta de Guaraciara e bisneta de Mariana. Minha vó veio do continente africano. Depois, da Bahia para o Morro da Providência, onde minha mãe foi gerada. Vivendo em situação de fragilidade, minha mãe fugiu para Nilópolis, na Baixada Fluminense, onde eu fui gerada. Muitos anos mais tarde, decidi voltar para a favela.”

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É assim, em um discurso carregado de ancestralidade e territorialidade que a principal articuladora do Arranjo Local da Penha se apresenta. O coletivo de agricultura urbana engaja mulheres e jovens em diversas atividades voltadas à soberania alimentar. Por meio da comida, discutem sustentabilidade, feminismo, saúde, identidade e protagonismo. Um trabalho que será apresentado no festival LivMundi, que acontece este fim de semana, com entrada gratuita, no Parque Lage, no Rio.

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Em entrevista ao GLOBO, Ana conta como um projeto de agroecologia na Zona Norte do Rio tem levado mulheres a debater suas condições de vida e a criarem redes de apoio entre si. Elas plantam hortas, cozinham, trocam receitas, discutem o machismo e se apropriam de seus saberes e territórios: “Aprendemos que o alimento é um conector entre essas mulheres”.

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Ninguém espera um projeto ecológico na favela. Ou espera?

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As pessoas não sabem que tem verde na favela. Mas tem. O Parque Municipal da Serra da Misericórdia é o pulmão da Penha, na Zona Norte do Rio. Estava abandonado pelo poder público, havia presença da polícia na entrada e árvores morrendo. Montamos o Centro de Integração da Serra da Misericórdia e reflorestamos dois hectares para começar a transformar esse espaço. Assim, criamos uma área de lazer, verde e gratuita, na favela. Isso sim é raro. As pessoas não sabem sobre a Serra da Misericórdia. Isso se dá não porque a favela esteja desconectada da cidade. A favela é cidade. Mas porque a cidade está desconectada da favela.

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Por que agroecologia na Vila Cruzeiro?

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Minha mãe não entendeu quando eu decidi voltar a viver na favela. Fui para o Grotão, na Vila Cruzeiro, entre a Penha e o Alemão. Lá eu conheci uma galera inovadora do grafite e percebi que a educação seria o eixo central da minha atuação. Quando, em 2011, conheci a agroecologia tudo fez sentido. A agricultura urbana se relaciona com vários temas. Por meio dela falamos de educação, de arte, feminismo, estou nas ruas com as pessoas.

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O Arranjo Local da penha questiona se comida de verdade é direito ou privilégio. E então?

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Vamos pensar na mulher que participa das nossas atividades. Ela sai de casa às 4 horas da manhã para trabalhar, vai fazer faxina. Sequer tem tempo de criar os próprios filhos. Ela joga a sacola de lixo no morro não porque não tenha higiene, mas porque as circunstâncias e os meios em que está inserida a levam a isso. Quando chega em casa, ela leva muito tempo com os filhos e a produção do alimento. Isso porque o marido quer comer carne, arroz e feijão. Sabe aquela salada que a médica na Clínica da Mulher recomendou a ela? Essa mulher simplesmente não tem tempo para isso.

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Como conscientizar essas mulheres sobre saúde, sustentabilidade e os efeitos do machismo?

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Para nós, a cozinha é trincheira de luta. Cada vez mais nós as trazemos para cozinhar. Descobrimos que muitas dessas mulheres eram jovens lindas que vieram no Nordeste, se envolveram com um homem, tiveram filhos e filhos e ficaram sem saída porque não têm outra casa. Mas elas podem ter informação, e isso vale mais que dinheiro. Montamos uma cozinha e ressignificamos o ato de cozinhar. Elas trocam receitas, compartilham saberes e até criaram um livro de receitas que vamos levar ao LivMundi. Fui questionada por feministas: “como você vai falar de independência da mulher levando-as para a cozinha?” A realidadde dentro da favela é outra. A cozinha, para a gente, é ferramenta de transformação para novas possibilidades.

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É um processo de empoderamento através do alimento.

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Sim. Aprendemos que o alimento é um conector entre essas mulheres. É uma maneira de preservar e compartilhar conhecimento, de criar redes entre elas, inclusive entre as diversas gerações de mulheres. Isso tudo em um ambiente que, até então, era de competição entre elas. Nós vamos, por exemplo, à Clínica da Mulher para encontrálas. Por meio da comida, falamos sobre autocuidado, saúde e nutrição. Nessas rodas de conversa, surgem os chás, os xaropes, as pancs (plantas alimentícias não-convencionais) que todas têm no quintal e que fazem parte de sua alimentação. Esse conhecimento é discutido e passado adiante.

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Você fala de ancestralidade e redes de saber. Isso também foi construído entre as mulheres da sua família?

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Eu estava sempre na feira com a minha avó. Para os meus amigos, eu era pobre porque o quintal da nossa casa era de terra, não de cimento; porque a gente comia aipim com carne-seca no café da manhã, não pão com queijo e presunto. Só depois eu entendi que a minha avó lutou para manter viva a sua cultura. Sem conhecimento acadêmico, ela entendeu e lutou para que a gente não perdesse a memória do alimento.

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Eu sempre quis ser professora (Ana Santos cursou a Escola Normal) e, aos 10 anos, entendi que a leitura abria portas. Ensinei minha avó, minha prima e minhas duas irmãs a ler e escrever. Sempre tive claro que, se a gente sabe ler e escrever, consegue dizer sim ou não. Então, sim, as mulheres da minha família se apoiaram.

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A comida foi importante nesse processo?

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A comida é importante. Minha mãe sofreu violência doméstica. Um dia, nós duas conversamos e eu disse a ela que juntas sairíamos daquela situação. Ela conseguiu se tornar outra mulher e, um ano depois dessa transformação, o meu pai foi assassinado. Qual o assunto que eu tinha em comum com ela? A violência. O que mais nós podíamos fazer juntas? Chega um momento em que o dinheiro não dá, e a vida vira escola, casa e televisão. Um momento em que a mãe já não consegue acompanhar e explicar o dever de casa da escola para o filho, o momento em que mais irmãos nascem e a atenção se divide. O alimento e a cozinha refazem essas conexões.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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