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Para as mulheres da periferia, inovação empresarial é “sevirologia”

Saiu no site UNIVERSA: 

 

Veja publicação original: Para as mulheres da periferia, inovação empresarial é “sevirologia”

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Por Flávia Martinelli

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Genésia Anastácio nem sabe por onde começar a responder quando lhe perguntam sua profissão e no que trabalha. Aos 35 anos, a pedagoga da rede estadual de ensino passou a dar aulas particulares de português e matemática para se dedicar a sua empresa prestadora de serviços de limpeza, a Anastácios, em que faz as vezes de administradora, vendedora, treinadora de funcionárias, distribuidora de panfletos porta a porta e até gestora de pepinos de bancários e financeiros. Tudo isso conciliando a rotina de mãe solo de um filho de oito meses, cursos de capacitação em empreendedorismo e coaching. “Me viro nos 30”, brinca a moradora da Zona Leste de São Paulo que já foi metalúrgica, técnica de enfermagem e “vendedora graduada” de sapatilha, perfume, hidratante e tudo o que fosse possível para complementar a renda. “Ser rainha da ‘sevirologia’ é comigo mesmo!”

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A sevirologia não está nos livros de administração ou workshops de inovação empresarial, mas é prática que sempre existiu nas periferias

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“A diferença da sevirologia para as habilidades valorizadas no mercado de trabalho, como criatividade e adaptação às mudanças, é que não se identifica nem se valoriza no pobre esses mesmos talentos. Não se vê como habilidade a capacidade que temos para potencializar o que tá na nossa mão. Fazemos a coisa acontecer do jeito que dá e como dá”, diz a jornalista Thamyra Thamara, cofundadora do projeto Gato Mídia que, desde 2014, oferece aprendizado em mídia e tecnologia para jovens negros e moradores de favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. “Estamos o tempo inteiro inventando saídas para a ausência de grana ou do Estado. Costumam chamar isso de jeitinho brasileiro. Mas eu prefiro dar o nome de ‘tecnologia da gambiarra’ à essa sabedoria.”

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Thamyra é coordenadora de metodologias do projeto que tem o objetivo de estimular jovens das comunidades a produzir suas próprias comunicações, redes e conexões. “Queremos dar visibilidade a diferentes narrativas, oportunidades e ideias criativas e coletivas das favelas”, diz. Um dos módulos de aprendizado, o de oficinas de mídia e tecnologia para 15 mulheres durante duas semanas na comunidade, resultou na produção coletiva do teaser ‘Afinal, o que é tecnologia para a mulher da favela?’. O vídeo aborda os conceitos de gambiarra, sevirologia e tecnologia da sobrevivência. Assista abaixo:

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Criar e inovar no cotidiano são a ferramenta de resiliência e experimentação do pobre, preto e favelado. O morador de favela sempre faz e fez por ele mesmo, há muito tempo. Fica então a pergunta, porque continuam debatendo criatividade, inovação e cultura maker sem o pobre?” (Thamyra)

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Na foto, Thamara Thamyra, jornalista e co-fundadora do GatoMÍDIA. Foto: Wendy Andrade

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“Como não reconhecer na professora Genésia, que sempre se desdobrou em diferentes frentes de trabalho e hoje cuida da empresa de limpeza, uma empreendedora nata capaz de liderar sua própria vida ao experimentar o novo, o diferente?” É o que questiona a consultora de projetos Cecilia Laura D’Alessandro, especialista em técnicas criativas de inovação para organizações e profissionais. “Empresas buscam promover entre os seus funcionários o que Genésia já pratica: o protagonismo de sua realidade. É o que chamamos em inglês de ‘role model’, um modelo de habilidade, um papel exemplar para lideranças”, diz a facilitadora de projetos inovadores, com experiência de 20 anos em multinacional. “Além disso, ela é uma educadora, leva esse compromisso na alma. Hoje o líder precisa ser um pouco de professor, chefe, mãe, coach… Ela tem essas habilidades que podem ser naturais ou foram treinadas ao longo da vida.”

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Na foto, Genésia Anastácio, 35 anos, Pedagoga, Professora, Micro Empresária e Vendedora.

A tecnologia da gambiarra é coletiva, independente e secular

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Na esteira desse protagonismo também está cabeleireira Raquel Cristina Neves da Costa, de 28 anos. Especializada em cabelos crespos, ela criou dentro de seu salão, o Negras Raízes, na periferia de São Paulo, uma lojinha de produtos afro com turbantes, brincos e linhas completas de cabelo e maquiagem para mulheres negras. “Nunca tive emprego em carteira, atendia clientes em casa até o meu filho nascer. Foi então que investi, com muita coragem, no aluguel desse espaço e na equipe de três funcionárias.” A loja surgiu quando as contas apertaram e Raquel percebeu que as clientes desejavam sair do salão mais produzidas, maquiadas e com acessórios. “Providenciei! Mas foi com cuidado, passo a passo.”

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O que Raquel realizou a partir da sevirologia tem nome no universo corporativo. Primeiro, ela saiu da “zona de conforto” ao montar o salão fora de casa. Depois, “fez uma diversificação de portfólio para atingir mais mercado, aumentar o alcance da clientela e o faturamento”, explica a consultora Cecília. “Muitas vezes as empresas chamam equipes de marketing, fazem estudos de mercado, testes e ideações para introduzir uma novidade assim no negócio”, conta a especialistaE, mesmo com toda a parafernália, ela lembra que uma inovação pode ser barrada. “É preciso acolhimento das lideranças para o novo. Muitas empresas ficam paralisadas em práticas viciadas e repetitivas.” A coragem da cabeleireira pode ser exemplo para executivos que viram caçadores de segurança diante de incertezas.

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Na foto, Raquel Cristina Neves da Costa, 28 anos, cabeleireira.

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Outro problema de inovar nas corporações é a dificuldade de conexão com o mundo real. Cecília conta que existem organizações que, de tão fechadas, não conseguem fazer pontes com o público e levar suas criações para fora dos escritórios, onde as coisas acontecem de verdade. Raquel não correu esse risco ao ouvir suas clientes. “Elas já me sugeriram vender ou alugar vestidos de festa para poderem sair perfeitas do salão. Estou analisando”, conta a empreendedora novamente atenta à freguesia.

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O articulador Alex Barcellos, da Agência de Fomento à Periferia Solano Trindade, na Zona Sul de São Paulo analisa: “a tecnologia da gambiarra traz a vivência real e a troca de saberes entre as pessoas; é um conhecimento que foi aprimorado com conexões e arranjos seculares que a periferia encontrou para sobreviver.” Exemplo disso são os negócios de família, talvez a mais tradicional organização empreendedora da sevirologia.

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A Tia do Trailler e seu olhar de longo alcance

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A microempresária Thelma Santos de Oliveira Assis, de 44 anos, mais conhecida como “Tia do Trailer” ou  “Tia do Lanche”, foi motivada pelos filhos a deixar seu emprego de faxineira para montar seu negócio há cerca de 10 anos. “Quando os meus três entraram na adolescência, senti necessidade de ser autônoma e acompanhar de perto aquela fase, a escola e as influências do bairro”, conta a moradora de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo.

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O dinheiro da rescisão de trabalho e da venda da barraca de caldo de cana do marido virou o trailer que eles têm até hoje. Foi um sucesso. Na época, não existiam nem o shopping nem o estádio de futebol na região e os moradores do complexo habitacional, com quase 300 famílias, chegavam do trabalho e passavam no trailer para comer. Mas o cenário mudou. Thema montou uma sorveteria que não deu certo e teve que se virar de novo. “O local passou a ser o Espaço Memphis Salão de Festas e mantivemos o trailer mesmo sem tanta freguesia.” A clientela surgiu nos trabalhos voluntários que ela já fazia na região, como a festa anual das crianças do complexo.

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Na foto, Thelma Santos de Oliveira Assis, 44 anos, micro empresária, mais conhecida como “Tia do Trailer ou do Lanche”.

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“Dou graças a Deus de ver meu salão de festas cheio todo mês.” O marido, ótimo cozinheiro, ainda cuida do trailer, os filhos passaram a ajudar nos negócios, Thelma gerencia o salão, providencia os serviços de buffet e faz cursos de técnicas administrativas. Hoje, 40% do faturamento vem do trailer e 60% vem das festas.“A vida nunca foi fácil, mas me virar pela minha família é uma das minhas artes. Faço com amor e é por isto que dá certo.”

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Se o mercado exclui e se a sociedade reafirma que o lugar do pobre está predeterminado, a periferia devolve com força e potência transformadoras” (Alex Barcellos)

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Sob a ótica dos negócios, Thelma se aventurou num empreendimento altamente desafiador. “Não é pouca coisa ter uma empresa familiar e permanentemente separar a vida pessoal do que é a empresa. Isso requer uma disciplina muito especial”, diz a consultora Cecilia. Outro ponto ressaltado é a visão de longo prazo.“Muitos profissionais que tiveram acesso ao estudo, fizeram faculdade e treinamentos não têm essa habilidade para olhar para o futuro.”

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Especialista em fomento de negócios criativos, Alex Barcellos testemunha diariamente a ousadia de quem rompe padrões pré-determinados. “A lógica do mercado de trabalho exclui mulheres negras, que moram longe do serviço e têm filhos. A sociedade reafirma que o pobre deve aceitar uma vida sem grandes sonhos. Mas o que eu vejo na periferia é o contrário. Existe força e potência de sobra nas periferias.”

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Sua experiência o faz acreditar que se isso nem sempre se traduz em sustentabilidade, em riqueza real, é por conta de um complexo sistema que mantém as desigualdades no Brasil. Alex, no entanto, sempre se surpreende  “Ao driblar a falta de recursos básicos, como os clássicos ‘gatos’ onde não há luz ou os mototaxis que chegam onde o transporte público não vai, nos tornamos, de maneira coletiva, experimentadores independentes e criativos. E se somos formados em sevirologia, ainda temos mestrado em ‘ruologia’ e doutorado em ciências periféricas.”

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PARA SABER MAIS:

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Assista, abaixo, o documentário “Quem São os Makers da Favela?”, produzido coletivamente pelos 20 jovens  que participaram do último projeto Gato Mídia no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro. O filme traz exemplos de inovação social a partir da perspectiva da favela como um território fértil e capaz de produzir soluções criativas para os problemas das cidades.

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