Saiu no site CONJUR
A compreensão do feminicídio como fenômeno jurídico-social tem suas raízes na década de 1970, quando a socióloga Diana Russell cunhou o termo “femicide” para designar os assassinatos de mulheres por razões de gênero. Na América Latina, a antropóloga mexicana Marcela Lagarde adaptou o conceito para “feminicídio”, agregando a dimensão da responsabilidade estatal na prevenção e repressão dessas mortes, especialmente após os emblemáticos casos de Ciudad Juárez, no México.
O caso “Campo Algodonero” (González e outras vs. México), julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2009, tornou-se um marco jurisprudencial ao reconhecer a responsabilidade estatal por falhas sistemáticas na prevenção, investigação e punição de feminicídios. Esta decisão histórica estabeleceu parâmetros fundamentais para a compreensão da violência de gênero como violação de direitos humanos, exigindo respostas estatais efetivas.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994) fornece o marco normativo internacional que fundamenta a obrigação dos estados em adotar medidas específicas contra a violência de gênero. O Brasil, como signatário, assumiu o compromisso de implementar legislação e políticas públicas adequadas, o que se reflete na evolução normativa que culmina na Lei nº 14.994/2024.
Neste contexto histórico e normativo, a Lei nº 14.994/2024 representa um avanço significativo ao criar um tipo penal autônomo para o feminicídio, previsto no artigo 121-A do Código Penal, abandonando a anterior sistemática que o considerava uma qualificadora do homicídio. Esta alteração simboliza o reconhecimento da especificidade e gravidade desta forma de violência contra a mulher, alinhando-se aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Mudanças para enfrentar o feminicídio
A violência contra as mulheres no Brasil continua sendo uma questão alarmante, e a promulgação da Lei nº 14.994/2024, que integra o chamado Pacote Antifeminicídio, trouxe mudanças significativas no enfrentamento ao feminicídio e à violência doméstica. Todos os passos nessa luta já nos tiram do lugar, mas é preciso atenção, muita atenção.
Como disse Maya Angelou: “Eu levanto. Eu levanto. Eu levanto.” (Still I Rise, 1978). Essa frase ressoa com a luta das mulheres que, apesar das violências, continuam resistindo e reivindicando seus direitos fundamentais.
O novo tipo penal reflete avanços importantes na responsabilização dos agressores e também abre espaço para reflexões críticas sobre sua eficácia no combate às raízes estruturais dessa violência, como enfatizado por importantes nomes da doutrina penal e criminológica.
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Assim, podemos afirmar que a principal alteração promovida pela nova legislação é a autonomização do feminicídio como crime específico, previsto agora no artigo 121-A do Código Penal, com penas que variam de 20 a 40 anos de reclusão. Essa medida visa a reconhecer a gravidade do feminicídio como uma manifestação extrema da violência de gênero.
Há muito, quando tivemos o primeiro contato com o termo “feminicídio”, alguns consideraram banalidade dar nome ao que já existia. No entanto, nomear é tirar algo do desconhecido e da invisibilidade muitas vezes impostas. Foi um avanço. Como dito, todo passo dado nos leva na direção do objetivo maior: o fim da violência contra a mulher. Mas é fundamental estar atento não apenas aos objetivos finais, mas também às causas do problema, especialmente quando estamos tratando de violência de gênero e doméstica.
Objetividade pluriofensiva
O feminicídio, como tipo penal autônomo apresenta uma estrutura delitiva complexa que transcende a mera proteção da vida humana. Sua objetividade jurídica é pluriofensiva, tutelando não apenas a vida da mulher enquanto bem jurídico primário, mas também a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva de gênero e a igualdade material entre homens e mulheres como bens jurídicos secundários. Esta estrutura normativa reconhece que o feminicídio, mais que um homicídio qualificado, representa uma violação específica que atinge a mulher em sua condição existencial de gênero, afetando toda a coletividade ao perpetuar padrões históricos de discriminação e dominação.
A tipificação autônoma evidencia, portanto, uma tutela penal que ultrapassa a dimensão individual do direito à vida, alcançando uma dimensão coletiva ao proteger também a ordem social igualitária e não-discriminatória, constitucionalmente assegurada, especialmente quando consideramos as hipóteses de aumento de pena que visam a proteger situações de especial vulnerabilidade, como a gestação ou o período pós-parto.
Noutra feita, o novo tipo penal do feminicídio apresenta uma estrutura singular quanto aos seus sujeitos. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum), independentemente do gênero, desde que atue motivada pelas razões da condição do sexo feminino. Quanto ao sujeito passivo, a lei protege a mulher, devendo-se interpretar este conceito de forma ampla e inclusiva, abrangendo tanto mulheres cisgênero quanto transgênero. Esta interpretação, alinhada com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da não-discriminação, dispensa a necessidade de prévia alteração do registro civil ou realização de cirurgia de redesignação sexual para o reconhecimento da condição feminina da vítima.
Tal entendimento encontra respaldo na autodeterminação de gênero e na compreensão de que a violência de gênero se manifesta contra a mulher em sua expressão identitária, independentemente de alterações corporais ou documentais. Esta abordagem inclusiva reforça o caráter protetivo da norma e sua finalidade de combater a violência estrutural contra todas as expressões da identidade feminina.
Além disso, o Pacote Antifeminicídio introduziu agravantes específicas para casos de violência contra mulheres. Vejamos:
- A prática durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, ou se a vítima é mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade;
- Contra vítimas menores de 14 anos, maiores de 60 anos, mulheres com deficiência ou doenças degenerativas que acarretem vulnerabilidade física ou mental;
- Na presença física ou virtual de descendentes ou ascendentes da vítima;
- Em descumprimento de medidas protetivas de urgência;
- Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio cruel;
- À traição, emboscada ou dissimulação, ou que dificulte a defesa da vítima;
- Contra autoridades ou agentes da segurança pública no exercício de sua função ou em decorrência dela, ou contra seus familiares em razão dessa condição.
A nova lei ainda incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos (inciso I-B do artigo 1º da Lei 8.072/1990). Anteriormente, o feminicídio já era classificado como hediondo, todavia, na condição de qualificadora do homicídio comum.
Responsabilidade de todos
Alice Bianchini, uma das maiores autoras no assunto, desde a publicação da Lei 13.104/2015 já afirmava que essa legislação “não trouxe uma nova qualificadora, mas buscou aclarar situações de violência que frequentemente permaneciam invisíveis nos processos penais envolvendo mortes de mulheres”. Conferir visibilidade à especificidade da violência de gênero é um passo essencial para consolidar dados que auxiliem na formulação de políticas públicas mais eficazes. Como citou Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil: “O primeiro passo para enfrentar o feminicídio é falar sobre ele.”
A tipificação do feminicídio como crime autônomo representa um marco no reconhecimento do caráter sistêmico da violência contra mulheres. Essa mudança legislativa reforça o princípio da dignidade da pessoa humana no microssistema protetivo da Lei Maria da Penha e da legislação que combate a violência de gênero.
Mulheres continuam morrendo no Brasil, em uma quase pandemia, porque o país não consegue efetivar suas políticas públicas para protegê-las. Não adianta termos a 3ª melhor legislação do mundo no tema e continuarmos a evoluir as penas previstas, sem uma estrutura de proteção eficiente. Continuaremos sendo o 5º país em números de violência contra a mulher.
A responsabilidade não é apenas do estado, mas dele e de toda a sociedade. Sim, nós precisamos “meter a colher”, homens também precisam entrar nessa luta que é de todos os seres humanos.
Impacto na vida da mulher
A violência doméstica exerce um impacto devastador na vida da mulher, interferindo diretamente em sua capacidade de tomar decisões e de conduzir sua vida. A violência psicológica, que inclui humilhações, ameaças e manipulações, é apontada por Silvia Pimentel como uma das formas mais efetivas de controle, reduzindo a autonomia feminina e promovendo um ciclo de dependência emocional. Já a violência física, embora mais visível, afeta a saúde física e mental, comprometendo a capacidade da mulher de planejar um futuro independente.
Simone de Beauvoir já advertia em O Segundo Sexo: “Não se nasce mulher: torna-se mulher.” Essa frase ilustra como as mulheres, socialmente condicionadas, tornam-se mais vulneráveis a relações abusivas que perpetuam estruturas patriarcais.
Embora o endurecimento de penas seja um passo significativo, ele atua mais no momento pós-crime, o que evidencia um padrão recorrente na resposta estatal à violência de gênero: a prevalência do direito penal como instrumento principal de enfrentamento, em detrimento de uma política integral de prevenção e proteção. Esta abordagem, que prioriza a resposta punitiva, revela-se insuficiente quando não acompanhada de políticas públicas estruturantes.
A sentença da Corte Interamericana no caso “Campo Algodonero” já apontava que a responsabilidade estatal não se limita à repressão penal, mas abrange falhas sistêmicas na prevenção da violência de gênero. O mero recrudescimento da resposta penal, sem o correspondente fortalecimento das redes de proteção e prevenção, pode representar uma resposta simplista a um problema complexo e multifacetado.
Prevenção, proteção e punição
A experiência da Lei Maria da Penha demonstra que a efetividade do enfrentamento à violência de gênero depende de uma articulação entre medidas preventivas, protetivas e punitivas. A nova tipificação do feminicídio, ao elevar significativamente as penas — podendo alcançar 60 anos de reclusão com as causas de aumento —, não encontra correspondência em um fortalecimento proporcional das políticas de prevenção e proteção.
Esta disparidade entre o rigor punitivo e a fragilidade das políticas preventivas pode comprometer a efetividade da nova legislação. A ausência de investimentos adequados em delegacias especializadas, casas-abrigo, centros de referência e programas de autonomia econômica para mulheres em situação de violência representa uma falha estatal que não será suprida pelo mero agravamento das penas.
O caráter autônomo do tipo penal, apesar de necessário para visibilizar a especificidade do feminicídio, pode ter seu potencial preventivo limitado pela carência de uma política criminal integrada. A experiência internacional, especialmente a partir das recomendações da Convenção de Belém do Pará, indica que o sucesso no enfrentamento à violência de gênero depende de uma abordagem holística, que combine medidas penais com políticas sociais, educacionais e econômicas.
Compromisso estatal além do Código Penal
A nova tipificação, portanto, embora represente um marco importante no reconhecimento da gravidade do feminicídio, corre o risco de reproduzir o que a criminologia crítica feminista já apontava: a insuficiência do direito penal como instrumento isolado de transformação social. A efetiva prevenção do feminicídio demanda um compromisso estatal mais amplo, que inclua o fortalecimento das redes de proteção, políticas de empoderamento econômico, educação em direitos humanos e transformação das estruturas sociais que perpetuam a desigualdade de gênero.
A ausência deste approach integrado pode resultar em uma proteção deficiente dos direitos fundamentais das mulheres, não obstante o rigor da nova legislação penal. O desafio que se apresenta é conjugar o necessário reconhecimento da especificidade do feminicídio, agora consolidado em tipo penal autônomo, com políticas públicas efetivas que atuem nas raízes sociais e culturais da violência de gênero.
A criminalização, por mais severa que seja, não é preventiva por si só. Sua eficácia depende de ações articuladas, como:
- Educação em igualdade de gênero, desde a formação básica até campanhas de conscientização para adultos;
- Fortalecimento de equipamentos públicos especializados, como delegacias de atendimento à mulher, casas de abrigo e serviços de assistência social;
- Capacitação contínua de profissionais da Justiça e da segurança pública.
O enfoque repressivo, quando desvinculado de ações preventivas, é insuficiente para mudar o cenário atual. O Pacote Antifeminicídio representa um avanço, mas sua eficácia está condicionada à implementação de políticas públicas preventivas e à transformação cultural que desconstrua as bases da violência contra as mulheres.
Simbolismo penal? Necessidade e indispensabilidade.
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Fontes Bibliográficas
Bianchini, Alice. A Qualificadora do Feminicídio e sua Autonomia Jurídica. 2023. Disponível em: Portal TJ/SE.
Pimentel, Silvia e Bianchini, Alice. Feminismo(s). 1ª ed. Matrioska, 2021.
Maya Angelou. Still I Rise. 1978.
Simone de Beauvoir. O Segundo Sexo. 1949.
Nova Lei do Feminicidio: comentários à Lei nº 14.994/2024/ Bruno Gilaberte, João Paulo Martinelli, Leonardo Schmitt de Bem, – 1. Ed. – Belo Horizonte, São Paulo : D’Placido, 2024.
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é advogada criminalista e eleitoralista, especialista em Processo Penal, Direito Público e Direito Eleitoral, pesquisadora em Criminologia, com atuação nos Tribunais Superiores, presidente Nacional da Abracrim Mulher, secretária-geral da Abracrim Nacional, membra do IAB e ABMCJ, autora de diversas obras jurídicas e palestrante.
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é advogada criminalista, especialista em Direito Constitucional, Direitos Humanos e Tribunal do Júri, professora de Processo Penal, vice-presidente da Comissão Nacional do Tribunal do Júri da Abracrim e membra da Comissão do Tribunal do Júri da OAB/MG.