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Os Excluídos da História, de Michelle Perrot: A resistência das mulheres à invisibilidade e à domesticação (Resenha) por Vanessa Prateano

Saiu no site DELIRIUM NERD

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Se há uma historiadora que dedicou toda a sua carreira a visibilizar a história das mulheres, esta historiadora é a francesa Michelle Perrot, nascida em 1928, em Paris. Conhecida como “a mestra da história das mulheres”, Perrot iniciou seus estudos na área – e também sua militância, já que se coloca como uma historiadora feminista – em 1973, quando, já doutora em História e docente na Universidade Paris VII, lecionou um curso intitulado “As mulheres têm uma História?”. Desde então, publicou vários livros sobre o tema, como “A História das mulheres no Ocidente”, “Minha História das mulheres”, “Mulheres públicas”, “As mulheres ou o silêncio da História” e o infanto-juvenil “Era uma vez… a História das mulheres”, além deste “Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros”, lançado no Brasil pela primeira vez em 1988 e relançado em 2017 pela Editora Paz e Terra.

Em Os excluídos da História, Perrot traz à luz a História e as histórias de três “personagens” frequentemente esquecidos pela historiografia tradicional (e masculina, burguesa e focada nos documentos oficiais) quando ela se iniciou no tema: as mulheres, os prisioneiros e os operários. Por meio de 11 artigos (cinco sobre os operários, três sobre as mulheres e três sobre os prisioneiros), transita-se pela França do século XIX, período no qual Perrot se especializou, e são descortinados meios de resistência desses personagens frente ao Estado, à polícia, à exploração da burguesia e também à tirania dos homens, em especial a dos revolucionários e sindicalistas que tentaram calar a mulher e encerrá-la na esfera doméstica – enfrentando a resistência ferrenha das mulheres operárias e donas de casa pobres, que disputaram a cidade e suas ruas centímetro por centímetro.

Os temas dos artigos podem parecer mais familiares à leitora e ao leitor de hoje, mas é importante lembrar que o livro foi publicado pela primeira vez há 28 anos, quando o cenário era outro. Na primeira parte, Perrot relata as relações dos operários com as máquinas recém-inventadas; a temida disciplina industrial que domestica os corpos dos trabalhadores e suga seu tempo livre e energia; a relação destes com seus patrões; o nascimento do Primeiro de Maio na França e a relação do operariado com a cidade e a luta por moradia.

Os Excluídos da História

No terceiro capítulo, inspirada por Michel Foucault, o grande historiador das prisões e manicômios, de quem foi amiga e colega de trabalho, a autora relata o nascimento das prisões e seus diferentes sistemas de encarceramento, assim como as diferentes penas impostas (isolamento, trabalho forçado, pena capital, degredo) e também o uso da ciência estatística para a catalogação dos crimes e controle dos corpos. Ainda, analisa um tema delicado: o quanto as revoluções e seus líderes tentaram se afastar daqueles que consideravam presos comuns, por vezes incentivando que o Estado os prendesse e punisse, atitude também adotada por muitos sindicalistas – uma divisão entre “classes trabalhadoras” e “classes perigosas” que de certa forma deixou os “bandidos” – em oposição aos admirados presos políticos – à mercê do Estado punitivo.

É no segundo capítulo, porém, o dedicado às mulheres, que se concentram as histórias mais interessantes, divertidas e saborosas do livro – e nem por isso menos adeptas do rigor histórico e metodológico. O sexto artigo dedica-se ao poder das mulheres, o sétimo à mulher popular rebelde, e o oitavo, à dona de casa que circula pelo espaço público parisiense no século XIX. O foco é majoritariamente voltado para aquelas que seriam as mais esquecidas entre as esquecidas: as mulheres pobres, tanto operárias quanto prostitutas, lavadeiras e donas de casa, sem escolaridade, que penam para ganhar um sustento para si e sua família, que fazem pequenos bicos, trabalham como camelôs, participam de protestos e se organizam, causando medo e preocupação nas autoridades, em particular as policiais.

“Muitas vezes observou-se que a história das classes populares era difícil de ser feita a partir de arquivos provenientes do olhar dos senhores – prefeitos, magistrados, padres, policiais. Ora, a exclusão feminina é ainda mais forte. Quantitativamente escasso, o texto feminino é estritamente especificado: livros de cozinha, manuais de pedagogia, contos recreativos ou morais constituem a maioria. Trabalhadora ou ociosa, doente, manifestante, a mulher é observada e descrita pelo homem. Militante, ela tem dificuldade e se fazer ouvir pelos seus camaradas masculinos, que consideram normal serem seus porta-vozes. A carência de fontes diretas, ligada a essa mediação perpétua e indiscreta, constitui um tremendo meio de ocultamento. Mulheres enclausuradas, como chegar até vocês?” – A mulher popular rebelde, p. 198.

As mulheres e o poder

O tema do sexto artigo, como a própria Perrot já adianta, é ambíguo e atual: teriam as mulheres tido poder naquele período, o século XIX? Se sim, qual é a natureza desse poder? É de fato um poder ou um arremedo de poder, visando a dourar a pílula da dominação masculina e acalmar um pouco as feministas? São perguntas que se colocam até hoje. O poder, diz ela, é polissêmico – pode significar muitas coisas. Diz-se que as mulheres não possuíam (possuem) poder porque a visão do que ele significa é muito ligada à esfera pública e política, em geral domínio dos homens. Para entender o poder feminino, é preciso se livrar dessa visão limitadora.

Em geral, o poder das mulheres sempre esteve ligado a duas figuras distintas: por um lado, simbolizam o poder da sedução e da perdição. Eva, a força das sombras, é o poder que leva à ruína. Por outro lado, tem-se a mulher mãe, essa potência civilizadora que prepara os cidadãos (sempre no masculino) de amanhã – ela se faz presente em quadros de museus, em poemas, bustos pela cidade e no discurso de médicos, políticos e religiosos. É possível, porém, pensar o poder das mulheres por outros caminhos? No artigo, pouco analítico e mais descritivo, traça-se a história da dicotomia entre público e privado, família, sociedade civil e Estado, e o papel da mulher nessa intrincada relação.

A discussão feita no artigo ainda é atual e muito importante para o feminismo: a estratégia deve focar na opressão e visibilizar as violências estruturais e sistemáticas que atingem as mulheres enquanto uma espécie de classe ou focar nas resistências e numa releitura que mostre a agência de indivíduos e grupos de mulheres? A tendência de focar num possível poder das mulheres dentro do lar e nos bastidores da política tem seus riscos, como coloca a autora: se as mulheres sempre tiveram o poder de manipular os homens, afinal, por que reclamam tanto da desigualdade? Corre-se o perigo de as mulheres serem vistas como aquelas a “reclamar de barriga cheia”.

Os Excluídos da História

A mulher rebelde 

O segundo artigo, sobre a mulher popular rebelde, é um relato saboroso das revoltas lideradas pelas mulheres em favor da manutenção da vida da família: elas se rebelam contra a alta do preço dos alimentos, fazem motins, exercem vigilância cerrada nos mercados, intimam os vendedores de trigo a lhes entregarem o cereal; se eles se recusam, elas tomam, taxam-no e vendem-no elas mesmas; são mulheres jovens e velhas, grávidas, lactantes, jovens solteiras que sustentam os pais doentes, diaristas, prostitutas, remendeiras e lavadeiras. Durante os motins de 1817, elas se sobressaem, muitas são presas, condenadas a trabalhos forçados ou à morte.

Não são apenas guardiãs do pão, mas também do teto – lutam contra senhorios e, quando não podem pagar o aluguel, organizam mudanças na calada da noite e colocam tudo o que possuem em carrinhos de mão, as crianças no topo dos pertences que carregam. Também se insurgem contra as máquinas que vêm destruir o modo de trabalho tradicional e impor disciplinamento de seus corpos. Realizam motins também nas florestas, pelo direito à madeira. Porém, ao longo do século, passam de organizadoras a auxiliares. Os homens a limitam ou desprezam nos momentos revolucionários conforme as revoltas se militarizam. São toleradas apenas como cantineiras e enfermeiras e não podem falar ou dirigir.

Aqui, Perrot relata sobre um espaço privilegiado da sociabilidade das mulheres no século XIX: o lavadouro. A rua pertence a elas após os homens irem para o trabalho, mas somente às mulheres pobres. As ricas estão presas em suas casas e vigiadas pela criadagem. A mulher do povo está livre de espartilhos e circula em busca de sustento. Fala palavrões, é explosiva e gera receio nas autoridades. Nos lavadouros não apenas se lava roupa, mas se trocam informações, receitas e remédios; acolhem-se as mulheres abandonadas, as prostitutas, as recém-saídas da prisão e os órfãos. “Os lavadouros são locais de feminismo prático”, diz Perrot.

Aqui, a discussão também é atual: o machismo renhido dos homens ditos revolucionários (hoje, os homens de esquerda). O desprezo, o apagamento, a invisibilidade e até mesmo a violência física cometida por esses homens contra as mulheres. A noção de cidadania destes homens não inclui as mulheres. Pensa-se classe, mas a discussão da condição feminina “dividiria” e “enfraqueceria” a revolução. Ela pode esperar. Não por acaso, Olympe de Gouges foi guilhotinada pela revolução ao escrever sua Declaração Universal dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Quantas Olympes ainda sofrem para se fazerem ouvidas nos círculos ditos progressistas?

 

 

 

 

Veja publicação original: Os Excluídos da História, de Michelle Perrot: A resistência das mulheres à invisibilidade e à domesticação (Resenha) por Vanessa Prateano 

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