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Defensoras dos direitos de mulheres vivem rotina violenta no exercício da profissão
Mariana Rosetti Maia
“Tem um homem aqui muito exaltado te procurando” ouviu de sua secretária, do outro lado da linha, a advogada Gabriela Küster, de 32 anos. Ela já sabia quem a buscava em seu escritório: o marido de uma cliente, que estava insatisfeito com o rumo do processo de divórcio.
A cliente avisou à Gabriela que não conseguiu uma conversa amigável e pediria o divórcio litigioso, aquele sem acordo entre o casal. Como de praxe, Gabriela informou a decisão ao advogado que representava a outra parte. Momentos depois as intimidações começaram.
O marido da cliente passou a ligar no celular pessoal e profissional de Gabriela. As chamadas não foram atendidas, então, ele foi presencialmente ao escritório, que fica em Vitória, no Espírito Santo. Por sorte, ela não estava lá.
Gabriela recebeu um áudio de alerta de sua cliente. Cochichando, a mulher contou que o marido havia chegado em casa alterado e exigindo o paradeiro da advogada. Ela decidiu encaminhar prints ao próprio companheiro mostrando as tentativas de contato do marido da cliente. “Meu marido disse que o mesmo número havia ligado em seu celular. Eu não soube responder como aquele homem tinha conseguido um dado pessoal e restrito”, contou a advogada.
O interfone do apartamento de Gabriela tocou. Ela estava sozinha e o coração passou a bater mais forte. Era o porteiro avisando a entrega de uma encomenda. Gabriela se sentiu encurralada, ameaçada e exposta.
Advogada Gabriela Küster
Gabriela Küster é mais uma vítima do chamado “Lawfare de Gênero”, palavra em inglês traduzida por “guerra jurídica”. O termo surgiu para nomear violências sofridas por advogadas durante o exercício da profissão. São crimes patrimoniais, ameaças, perseguição, violência sexual, exposição virtual, violência jurídica, entre outros.
Cerca de 80% das advogadas já se sentiram ameaçadas no exercício da profissão em razão do seu gênero ou de suas clientes. Esse dado foi apontado no estudo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa CARMIM Feminismo Jurídico, vinculado à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que ouviu 190 advogadas, no Distrito Federal e nos 26 estados brasileiros.
Das respostas recebidas, 80% declara já ter sofrido alguma forma de violência de gênero no curso de processos judiciais, sendo que, em 90% dos casos, a violência foi praticada por homens. De defensoras de mulheres, as profissionais se transformam em vítimas dos mesmos agressores.
“VAI SOBRAR PARA VOCÊ”
A advogada Amanda Rodrigues, de 28 anos, estava frente a frente com um homem que já havia agredido sua cliente durante um processo de disputa de terra, quando ouviu que era “uma advogadazinha de merda”, seguido de “conheço sua família e sei onde você mora” e “vai sobrar para você”.
Ela não duvidou das ameaças. Passou a temer sair na rua, não só pela própria vida, mas também a dos seus pais. A advogada precisou de acompanhamento psicológico para lidar com o trauma.
Advogada Amanda Rodrigues
Outra advogada passou por momentos de desespero e perplexidade. Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, Laura Cardoso, de 31 anos, estava grávida de 39 semanas quando recebeu uma grave ameaça. Era domingo de noite quando a campainha de sua casa tocou e seu marido, após atender a porta, disse: “Laura, colocaram fogo no nosso carro”.
O veículo estava estacionado na rua com o interior todo queimado. A cadeirinha no banco traseiro, recém-instalada para o filho que chegaria nos próximos dias, ficou completamente danificada pelas chamas.
Dois homens em uma moto quebraram o vidro do carro com uma marreta, jogaram um galão de combustível dentro e atearam fogo. A principal linha de investigação do 1º Delegacia de Polícia de Pelotas era “represália pelo trabalho profissional” de Laura.
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As três advogadas, Gabriela, Amanda e Laura, atuam com perspectiva de gênero, na defesa de mulheres vítimas. Profissionais que apoiam mulheres para que rompam ciclos de violência. “Não é raro que atitudes violentas de agressores e homens as atinjam”, afirma Gabriela Souza, advogada e sócia da Escola Brasileira de Direito das Mulheres (EBDM).
Uma grande carga psicológica é exigida dessas defensoras. Gabriela Souza ressalta que as agressões também podem ser entendidas como uma estratégia para enfraquecer a defesa das mulheres. “Se as advogadas vão estar acuadas, com medo e precisando também se defender, cria-se um novo obstáculo na proteção da mulher.”
Em 2023, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contabilizou 1,3 milhão de advogados inscritos no Brasil. Deste total, 51%, mais de 700 mil, são mulheres, conforme apresenta o censo demográfico do Conselho Federal da Ordem. Mesmo maioria e com os variados relatos de violências sofridas por advogadas, não há dados nacionais amplos sobre essa realidade.
A presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, da OAB Nacional, Cristiane Damasceno, diz que há um canal de denúncias desde março de 2022. Até dezembro de 2023, recebeu cerca de 60 registros — em média, 2,7 queixas por mês. Mas a própria representante da OAB reconhece que o número não mostra o cenário real. “Recebo muito mais denúncias de advogadas pelo direct do meu Instagram do que pelo canal oficial.”
A subnotificação ocorre também porque, muitas vezes, os casos são tratados internamente e não chegam à OAB Nacional. Tem ainda as situações que não são comunicadas a nenhum órgão. O desafio é, além de criar um recurso seguro para acolher os relatos de violência, cruzar os dados com os canais de denúncia estaduais.
Entre as advogadas entrevistadas pela pesquisa do CARMIM, 88% acreditam que, a partir de própria experiência, ou de outros casos conhecidos por elas, a OAB não prioriza a proteção das advogadas contra a violência de gênero no exercício da profissão. A ausência de estatísticas nacionais confiáveis dificulta o estudo de políticas públicas de proteção e a mobilização dos órgãos competentes.
No mesmo dia em que sofreu as perseguições, Gabriela Küster entrou em contato com a OAB do Espírito Santo para pedir ajuda. Tempos depois, o advogado do agressor recebeu uma advertência verbal da organização sobre o comportamento inadmissível do cliente dele. Nenhuma punição prática ocorreu, mas as ameaças acabaram.
A advogada Amanda Rodrigues, depois das ameaças, solicitou assessoramento à OAB de seu estado e conseguiu uma medida cautelar. Além disso, registrou um boletim de ocorrência, mas não seguiu com o processo por questões psicológicas. Após ser notificado judicialmente, o homem não a procurou mais.
O processo que Amanda defendia acabou com um acordo rápido. A cliente dela contou que aceitou a proposta para finalizar o contato com o agressor. Ela estava com medo, mesmo sem saber sobre as ameaças sofridas pela advogada.
No caso de Laura Cardoso, que teve o carro incendiado, a polícia instaurou um inquérito policial para investigar o atentado. Até a publicação desta reportagem, ninguém havia sido identificado ou preso pelo crime. Laura mudou de estado para se sentir mais segura e só conseguiu repor o prejuízo meses depois.
Advogada Laura Cardoso
Os processos judiciais acabam e, às advogadas vítimas, resta lidar com os traumas que ficam. Seguir contando umas com as outras, quase sempre sem a ajuda efetiva e integral dos órgãos competentes, e sem, principalmente, a responsabilização dos agressores.
Gabriela Souza, advogada da EBDM, também já foi ameaçada de morte mais de cinco vezes ao longo da carreira. Perseguida, cadastrada num site pornográfico, ofendida, humilhada nas redes sociais e stalkeada [invasão ou perturbação contra a liberdade, ou privacidade da vítima]. Precisou pedir medida protetiva. “Isso tudo afeta nossa tranquilidade e ocupa um tempo precioso de trabalho intelectual”, desabafa.
Para Gabriela, é preciso ter mecanismos eficazes no país para proteção de todas as mulheres, inclusive das advogadas que colocam suas vidas em risco para proteger outras mulheres. –