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O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará nesta quinta-feira (20) uma ação sobre a retificação de gênero de um homem trans do Rio Grande do Sul, e isso pode ter um impacto enorme para a vida das pessoas trans.
Não existe uma legislação específica que regulamente expressamente o direito de retificação de nome e gênero de travestis, mulheres transexuais, homens trans e outras pessoas trans. Com isso, cada pessoa trans deve, individualmente, bater nas portas da Justiça demandando a retificação. O pedido será analisado por um juiz que pode ou não autorizar a retificação.
Sem uma lei expressa e sem o consenso entre juízes e juízas, acaba por não existir uma forma padronizada de lidar com esses casos. Cada juiz exige o que acredita ser necessário para a concessão do direito; na prática essas exigências podem ser bem diferentes de juiz para juiz. Isso tem consequências graves, como o fato de ser mais fácil mudar em algumas cidades e de haver pessoas que migram ou fingem morar em outras cidades para conseguir retificar com mais facilidade.
Geralmente, a autorização da retificação tem sido condicionada à prova de que a pessoa é “transexual de verdade”. Para realizar essa prova, são anexadas fotos, testemunhas dão depoimento afirmando que a pessoa se identifica publicamente com um nome e gênero diferentes dos que constam nos documentos oficiais, entre uma miríade de outras maneiras.
As provas mais importantes, todavia, têm sido o laudo psiquiátrico e/ou o parecer psicológico que afirmam ser a pessoa transexual. Na presença do laudo, grande parte dos juízes tem autorizado a retificação do nome. A retificação do gênero, no entanto, tem sido mais difícil, e muitos juízes ainda exigem que a pessoa se submeta a uma (ou várias) cirurgias de transgenitalização.
O Recurso Extraordinário 670422, que será julgado no STF, discute justamente a exigência da cirurgia para a retificação de gênero. No caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) autorizou a retificação do nome, mas não autorizou a retificação do gênero, porque a pessoa não havia se submetido a cirurgia de neofaloplastia. Além disso, o TJRS exigiu a inserção da palavra transexual no campo de averbações da certidão*.
Apresentado pela famosa advogada Maria Berenice Dias, o recurso argumenta que essa exigência da cirurgia é desnecessária e cruel. Exigir a cirurgia significa reduzir o gênero à genitália, ignorando as experiências cotidianas das pessoas que já vivem uma vida no gênero com o qual se identificam e que podem, inclusive, estar satisfeitas com seu órgão sexual e não desejar se submeter à cirurgia.
Para piorar, essa exigência implica uma limitação descabida do acesso ao direito, uma vez que a realização da cirurgia de transgenitalização é bem difícil no Brasil. Existem apenas cinco hospitais públicos do País que realizam esse procedimento gratuitamente e todos contam com grandes filas.
O sistema privado realiza algumas cirurgias de transgenitalização, todavia são caras e a técnica da neofaloplastia (uma das técnicas utilizadas para a construção de um pênis) não pode ser realizada no sistema privado por ser uma cirurgia considerada de caráter experimental. O recurso ainda afirma que a averbação com a palavra transexual seria discriminatória, produzindo novos constrangimentos e violando a dignidade e a privacidade da pessoa.
Esse tipo de ação, um recurso extraordinário com repercussão geral, tem o poder de unificar a jurisprudência nacional. Isso quer dizer que o julgamento tem efeitos que extrapolam o caso concreto em julgamento.
Se o STF for favorável à retificação de gênero sem a realização da cirurgia, essa posição pode passar a ser adotada por todo o Brasil em casos similares, facilitando muito para diversas pessoas, principalmente aquelas que vivem em cidades com juízes mais conservadores e resistentes.
Se o resultado for negativo, significará um retrocesso enorme, dificultando a autorização em novos casos, principalmente para os homens trans, que raramente tem acesso à cirurgia de transgenitalização.
Tudo indica que teremos uma grande conquista nesse julgamento, mas ainda está longe do ideal. Os debates sobre os direitos das pessoas trans, mesmo quando favoráveis ao reconhecimento dos direitos dessas pessoas, têm uma conexão problemática com os discursos científicos que consideram a transexualidade como uma doença.
Ainda que a cirurgia deixe de ser necessária, a lógica patologizante que exige a comprovação de que pessoa é “transexual de verdade” por meio de laudos e pareceres permanecerá. Por isso, é preciso despatologizar a transexualidade, como a Organização Mundial de Saúde já vem indicando que fará em breve, e reconhecer a autonomia das pessoas trans para se identificarem da forma como bem desejam.
É preciso também desjudicializar a transexualidade, isto é, retirar a necessidade das pessoas trans de ingressarem com uma ação na Justiça para que seus direitos sejam reconhecidos.
Alguns países como a Argentina e Malta já possuem experiências exitosas de transformar a retificação de nome e gênero das pessoas trans em um simples procedimento administrativo, sem grandes burocracias.
Essas experiências mostram que não só é possível de ser feito, como não causa problemas para o Estado. Essa é a forma mais adequada de se garantir o direito das pessoas trans, e já há um projeto de lei que busca facilitar as coisas por aqui também, o Projeto da Lei João W. Nery (5002/2013).
Comemorarei a aprovação, caso aconteça, mas com a consciência de que ainda há caminhos para se trilhar.
*As alterações na certidão são normalmente registradas no campo de averbações; quando uma pessoa casa e altera seu nome, por exemplo, essa alteração é registrada ali.
*Este artigo é de autoria de colaboradores do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o Huffington Post é um espaço que tem como objetivo ampliar vozes e garantir a pluralidade do debate sobre temas importantes para a agenda pública.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL: O STF pode autorizar a retificação de nome e gênero de pessoas trans sem cirurgia