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Veja publicação original: “O que falta fazer? Antes de mais, acreditar nas vítimas”
Por ALINE FLOR
Quase cinco anos depois da ratificação do tratado do Conselho da Europa sobre violência contra mulheres e violência doméstica, é altura de Portugal reflectir sobre como a lei tem evoluído para dar resposta às vítimas.
“É mais fácil para uma mulher dizer que foi vítima de violência doméstica do que de uma agressão sexual. Muitas das formas de agressão sexual contra mulheres e crianças não são sequer vistas como agressão, mas como comportamentos normalizados e legitimados pela cultura.” Foi com estas palavras que a juíza do Tribunal Constitucional Clara Sottomayor abriu a sua intervenção no seminário “O Direito a Viver livre de Violência. O que falta fazer em Portugal?”, organizado pela Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV).
Num momento em que Portugal está a iniciar o processo de avaliação da aplicação da convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica — a Convenção de Istambul, ratificada pelo país em Fevereiro de 2013 —, o painel do encontro de quinta-feira sobre “A Convenção de Istambul enquanto instrumento de combate à violência” juntou ainda Teresa Féria, da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), e Isabel Ventura, perita no Observatório da Violência contra as Mulheres do Lobby Europeu das Mulheres.
A violência sexual — e as respostas às vítimas deste tipo de crime — foi um dos temas em foco. Isabel Ventura trouxe para o debate os dados do Eurobarómetro de 2016 sobre as atitudes face aos crimes sexuais e violência doméstica: 19% dos portugueses que responderam consideraram que pode justificar-se ter sexo sem consentimento — uma violação — quando alguém está embriagado ou sob o efeito de drogas. E outros 10% disseram que se justifica ter sexo sem consentimento se a pessoa andar sozinha à noite.
Existem, aliás, várias ideias pré-concebidas — muitas vezes desfasadas da realidade — relacionadas com o contexto em que a violência sexual ocorre. “As pessoas ainda acreditam num dos maiores mitos da violação, de que é mais provável ser-se vítima de violação por um desconhecido, mas isto não corresponde às estatísticas”, sublinhou Isabel Ventura.
O tema foi levantado pela secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, em entrevista recente ao PÚBLICO: “É uma área muito sensível, que não tem só que ver com aquilo que nos vem à cabeça quando pensamos em violência sexual, das mulheres que são abusadas ou violadas na rua, mas também é da esfera da violência na intimidade. E as pessoas normalmente não falam com facilidade sobre o tema”, afirmou Catarina Marcelino.
Também para Clara Sottomayor, “a violência sexual permanece a forma de violência mais escondida e aquela que a sociedade mais legitima”.
Persiste, contudo, uma desconfiança sobre as sobreviventes deste tipo de crime. O Eurobarómetro de 2016 mostra que 19% dos portugueses consideraram que as mulheres muitas vezes inventam ou exageram as alegações de abuso sexual ou violação.
“Recentemente, foi publicada uma notícia citando fonte da PJ referia que 33% a 40% das denúncias de crimes sexuais são falsas, mas isto contraria os dados que temos”, denuncia Isabel Ventura.
Em 2008, o Instituto de Medicina Legal publicou os resultados de um estudo em que seguiu 100 queixas de violação apresentadas ao DIAP de Lisboa, e os dados indicam que apenas 5% das queixas de violação serão falsas denúncias. “Parece-me preocupante que o órgão de polícia criminal que investiga estes crimes venha a afirmar uma coisa destas, sem dizer como é que chegaram a estes dados, porque é uma mensagem muito perigosa para as vítimas”, lamenta.
“O que acho que falta fazer? Antes de mais, acreditar nas vítimas”, remata a investigadora.
“O tempo do sistema ainda não é o tempo da vítima”
Vários pontos da Convenção de Istambul foram integrados na legislação portuguesa. Por exemplo, em 2015, foram criados os crimes de perseguição e casamento forçado e autonomizado o crime de mutilação genital feminina; já este ano, foram introduzidas novas regras para a regulação urgente das responsabilidades parentais em situações de violência doméstica.
Mas as soluções encontradas nem sempre são satisfatórias, seja porque a lei é insuficiente, ou porque encontra obstáculos na sua aplicação. A avaliação junto do Conselho da Europa que agora começa é um processo de diálogo que tem precisamente como objectivo, sublinhava Catarina Marcelino, “ajudar os países a melhorar o seu desempenho”.
As respostas do Governo ao questionário do grupo de peritos do Conselho da Europa (GREVIO) foram conhecidas a 8 de Setembro. Da parte das Organizações Não Governamentais portuguesas, a AMCV e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) estão a dinamizar um grupo de trabalho alargado para elaborar um parecer com recomendações, e que conta com organizações como a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e a APMJ, que já entregou o seu relatório-sombra individual com considerações jurídicas.
Margarida Medina Martins, da AMCV, refere que “as questões que se põem, de facto, são a concretização [da legislação] no terreno, o que implica por parte da sociedade civil uma reflexão crítica” que se traduzirá no relatório. Alexandra Silva, da PpDM, ressalva que o diagnóstico aprofundado será apresentado em conjunto, mas refere à partida que algumas alterações legislativas ficaram “aquém da expectativa”.
Também para Daniel Cotrim, da APAV, algumas das medidas “têm sido passadas para o enquadramento legal português a conta-gotas, e às vezes em contra-relógio”, o que levou alguns diplomas a terem uma abordagem “um pouco redutora”.
Daniel Cotrim relembra que, “teoricamente, Portugal tem das melhores leis de protecção de vítimas de violência doméstica”. “Agora, se os direitos das vítimas — de violência doméstica e de outros crimes — estão a ser aplicados, a APAV tem algumas dúvidas.”
“O tempo do sistema ainda não é o tempo da vítima — e dentro do sistema estão as organizações, os tribunais, a polícia. O tempo da vítima ainda não é respeitado, ainda se demora muito tempo a resolver situações fundamentais da vida das pessoas.”
O porta-voz da associação reconhece que tem havido abertura do Estado para integrar mais questões que a Convenção levanta, “um processo de escuta às organizações não governamentais que trabalham no terreno diariamente com mulheres e com vítimas de violência doméstica.”
“Lei nos livros e lei em acção”
A aplicação da lei é uma das questões que preocupa a juíza Clara Sottomayor, que reconhece que nem sempre as normas são “interpretadas e aplicadas à luz dos princípios plasmados na Convenção de Istambul”. Cumprindo os princípios do documento, os juízes deveriam aceitar “a noção de violência de género como uma forma de violência estrutural que atinge desproporcionadamente as mulheres, reconhecendo-as como um grupo discriminado e subordinado na sociedade”.
Ao fazer uma retrospectiva dos tratados internacionais que visam o combate à discriminação e violência contra as mulheres, a juíza Teresa Féria completou ainda: “A discriminação é o conceito-mãe a partir do qual nasce a violência.”
No painel também se debateu o enquadramento da violação como crime semi-público, a inadequação da lei aos crimes relacionados com as novas tecnologias que vitimam mais as mulheres — a que Isabel Ventura chamou “violência sexual com base em imagens”—, e ainda a possibilidade de alargar o conceito de vítima, em casos de violência doméstica, às pessoas que presenciam a agressão, e não apenas a pessoa que sofre o dano.
Por fim, existe falta de formação especializada de magistrados e outros profissionais, ressalta Clara Sottomayor. “Há um desfasamento entre a lei nos livros e a lei em acção.” E, nessa medida, continuamos a ter decisões judiciais onde os “preconceitos sociais em relação às vítimas e em relação à violência sexual” ainda são visíveis na sua fundamentação.
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