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Muito mais do que uma responsabilidade individual, o cuidado é o elemento que sustenta o funcionamento social. Problema: ele nem sempre é remunerado e, quando é, é mal pago
Nos bastidores da economia global, existe um setor negligenciado há décadas que agora ensaia ganhar papel de protagonista, ao menos nas rodas de conversa e no debate público: a economia do cuidado. Longe dos holofotes do mercado financeiro, essa engrenagem sustenta as bases da sociedade, assumindo as atividades domésticas e o cuidado com dependentes, sejam eles crianças, idosos, doentes, pessoas com deficiência ou animais de estimação.
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) do ano passado trouxe como tema da redação os “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Na Câmara dos Deputados, a categoria também é pauta, encabeçada pela deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), que defende que o cuidado tem “cara, sexo, cor e idade”. Em geral, mulheres e, majoritariamente, negras.
Cuidar da roupa, da limpeza, da organização, da cozinha, das compras de mercado e farmácia, marcar consultas, levar para a escola e atividades extracurriculares, manejar remédios, zelar pela saúde, prover apoio emocional. Estes são alguns poucos exemplos da economia do cuidado, que tem como pilar o trabalho não remunerado realizado principalmente por mulheres, além dos serviços formais prestados por profissionais em áreas como saúde, educação e assistência social.
“O que hoje chamamos de ‘economia do cuidado’ era categorizado desde os anos 70, pela economia feminista, como divisão sexual do trabalho”, explica a professora doutora da Faculdade de Economia e do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hildete Pereira de Melo.
Em outubro de 2023, a professora e outros dois pesquisadores, Isabela Duarte Kelly e Claudio Considera, publicaram o artigo “Quanto vale o amor materno? Apenas abraços e beijos?”, no blog do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O estudo, que faz parte de um esforço de 20 anos de mensuração dos trabalhos da reprodução da vida e da discriminação das mulheres, concluiu que a atividade não remunerada de afazeres domésticos e cuidados nas famílias, se contabilizada, acrescentaria 13% ao PIB brasileiro.
“É muito cômodo para a sociedade incluir os cuidados dentro da categoria das tarefas domésticas. Sabe quantas mulheres estão em idade ativa e não estão no mercado de trabalho? 44%. O restante acumula funções e é dona de casa e trabalhadora. Uma vez no mercado, quais profissões elas escolhem? Educação, saúde, serviços sociais e trabalhos domésticos. Ou seja, cuidados”, aponta a especialista.
Em 2022, um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que as mulheres dedicavam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas. Já os homens dispensavam 11,7 horas.
“Há uma relação entre o nível de instrução e o número de horas dedicadas às tarefas do lar e de cuidados. Uma hipótese é que o aumento no nível de instrução também leva a um aumento nos salários, que permite a essas mulheres terceirizar para empregadas domésticas uma parte dessas demandas”, assinala o estudo feito por Hildete, Isabela e Claudio. No entanto, a pesquisa conclui que o grau de instrução dos homens pouco explica a quantidade de horas dedicadas por eles, mantendo uma média geral de 11 horas, que independe de região ou escolaridade. “Existe toda uma filosofia patriarcal para justificar isso”, garante a professora.
Ainda que longo, o caminho para equilibrar a equação do cuidado entre os gêneros passa pela esfera privada, através do reconhecimento e remuneração adequados, mas o Estado também pode contribuir. Políticas públicas, como creches e escolas em período integral – com opções inclusive nos fins de semana –, asilos públicos e licença parental igualitária são algumas soluções para o curto prazo.
A conscientização sobre os impactos da economia do cuidado também é essencial. “Se as mulheres estão sozinhas, sem homens e sem o Estado, não tem creche pública que amenize. Além disso, você já viu alguém sair do trabalho 15h30? Elas só funcionam até esse horário”, provoca Hildete.