“Todos os dias, eu choro. A dor é imensa, e a saudade, maior ainda. As duas crianças mais velhas sofrem muito. A pequenininha fica olhando, esperando a mãe chegar”, revela. A família de Monika é corresponsável pelas necessidades materiais e emocionais dos cinco filhos de Lilian (três meninas e dois meninos), nascidos de três relacionamentos anteriores ao que ela teve com Jhonnatan. Os dois mais velhos (de 9 e 7 anos) e a mais nova (de 1 ano e meio) vivem agora com a avó materna. Os outros dois (de 5 e 4 anos) moram com a avó paterna.
.
A família segue em luto pela morte ainda recente da jovem. Apenas uma das três irmãs e o pai aceitaram conceder entrevistas. Adão Pedro trabalha com a televisão ligada algumas horas do dia e se diz assustado com a quantidade de casos de feminicídios noticiados. “Uma pessoa que dorme com uma mulher, que diz que a ama e depois maltrata e mata não é gente”, afirma. A filha não é a única vítima deste ano que ele conheceu. Adriana Maria de Almeida, 29 anos, morta no Riacho Fundo apenas 17 dias depois de Lilian, era vizinha dele.
.
“Ninguém é dono de ninguém. Você vem de uma mulher, convive com uma mulher, não pode achar que tem o poder sobre a vida dela. Isso não tem nada a ver com amor”
Adão Pedro, pai de Lilian
.
.
O feminicídio é sobre todas as mulheres
No jornalismo, a reportagem cujo tema central é a vida de uma pessoa chama-se perfil, como uma referência à imagem de um rosto. O retrato de Lilian Cristina construído a partir dos relatos de familiares leva a uma outra metáfora, a do espelho. A história de vida da jovem moradora da periferia do Distrito Federal reflete a da maioria das vítimas de feminicídio no Brasil.
.
O Mapa da Violência 2015 traz a análise dos crimes de assassinatos contra mulheres desde 2003 e revela que a maioria das vítimas era negra e com idades entre 18 e 30 anos. “Nos homicídios femininos, há maior incidência de mortes causadas por força física, objeto cortante/penetrante ou contundente. A agressão perpetrada no domicílio da vítima tem maior incidência entre as mulheres do que entre os homens. É cometida, preferencialmente, por pessoas conhecidas”, destaca o documento elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) Brasil.
.
Dados mais recentes apresentados pelo Atlas da Violência 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelam que os homicídios seguem como a principal causa de morte entre jovens (homens e mulheres) no país. As negras representam 66% do total de mulheres assassinadas.
.
A história de uma vítima de feminicídio, em parte, também conta um pouco do que é ser mulher. O caso de Lilian leva a uma reflexão sobre como a desigualdade de gênero está imbricada nas relações sociais.
.
.
Arquivo Pessoal
Jhonnatan Neto foi preso em flagrante após esfaquear a ex-namorada
.
Em poucos meses, Jhonnatan foi do início de um relacionamento à violência extrema. O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Cristiano Rodrigues tem se dedicado à compreensão das masculinidades não hegemônicas (isto é, identidades de homens que não são, ao mesmo tempo, heterossexuais, brancos e ricos) e encontra, nos estudos de gênero, a lente que permite analisar o que aconteceu entre Lilian e Jhonnatan.
.
A célebre frase da teórica feminista francesa Simone de Beauvoir – “Não se nasce mulher, torna-se mulher” – pode também ser aplicada à construção da identidade dos homens, como um grupo social de características semelhantes.
.
Para Rodrigues, a masculinidade hegemônica se constrói por meio de dois movimentos. O primeiro se dá a partir da estabilidade da identidade do outro. Lilian e as mulheres que se contrapõem às decisões dos homens desestabilizam a masculinidade. As respostas a esse fato – de acordo com as análises de Rodrigues – são, em geral, a autoviolência (como o silêncio) ou a eliminação do outro (o feminicídio).
.
“Não se constitui a masculinidade sem o ódio às mulheres”
Cristiano Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) da UFMG
.
O outro movimento de construção da masculinidade está relacionado ao fato de os homens conviverem, ao mesmo tempo, com sentimentos de objetificação da mulher e de abjetificação do que é feminino. Ou seja, o desejo pela mulher conecta-se com um sentimento de desprezo a tudo o que se refere a ela. A alternativa para lidar com essa dicotomia também é a partir da violência. Quanto mais tomados pela abjetificação, maiores são o ódio e a necessidade de demonstrá-lo, inclusive para seus pares.
.
A delegada titular da 6ª Delegacia de Polícia, Jane Klébia, que registrou a ocorrência do feminicídio de Lilian, surpreendeu-se com o fato de os dois estarem dividindo a casa mesmo depois do fim do relacionamento. Jane adverte que é importante que as mulheres compreendam o potencial lesivo do ódio deles contra elas. “A mulher tem direito a viver livre, a ter os parceiros que quiser. É importante, porém, que consiga zelar pela própria segurança”, argumenta.
.
.
Saídas para o problema
Depois de realizar 50 entrevistas com homens em Belo Horizonte para a pesquisa sobre masculinidades e de 15 anos dedicados aos estudos de gênero, Cristiano Rodrigues acredita que há caminhos para um novo projeto de identidade masculina, mais distante da violência.
.
Para ele, o ponto de partida está no aumento da responsabilização dos homens. “É preciso assumir que estamos em condições mais positivas que as mulheres por conta da estrutura patriarcal das nossas sociedades. Isso vale também para homens que não são heterossexuais, brancos ou ricos”, diz. Entre as vantagens masculinas, é possível mencionar os ganhos mais elevados com o trabalho, a menor participação em tarefas não remuneradas e a maior representação política e em espaços de poder.
.
DANIEL FERREIRA/METRÓPOLES
A família de Lilian Cristina fez uma caminhada no Paranoá em defesa das mulheres
.
Outra questão importante é reconhecer as desigualdades entre homens, o que Rodrigues chama de fraturas internas. Ele afirma que, durante muito tempo, movimentos sociais e especialistas atuaram para proteger as mulheres contra a violência de gênero dizendo a elas o que fazer. “Agora, as respostas devem ser outras: precisamos dizer aos homens como eles têm de agir e, sobretudo, como não devem agir”, destaca.
.
É em meio a esse caldo de cultura que são definidos status sociais e poderes desiguais para homens e mulheres. É também nele que se constroem as instituições que mediam as relações sociais. No caso de Lilian e Jhonnatan, nem houve tempo para uma denúncia ao sistema de Justiça, mas esse feminicídio nos coloca frente ao questionamento de como é necessário enfrentar a cultura machista com políticas públicas.
.
Na visão da advogada criminalista Soraia Mendes, o sistema de Justiça, especialmente o criminal, ainda está no início de sua caminhada em relação aos direitos das mulheres. Apenas no século 21, em 2006, o Brasil passou por uma mudança legislativa significativa, a promulgação da Lei Maria da Penha.
.
“O sistema de Justiça segue como reflexo da nossa sociedade. Encontramos, por exemplo, vieses machistas na visão que magistrados têm de subalternidade das vítimas, como a mulher que gosta de apanhar ou o fato de que a violência doméstica deva ser solucionada no campo da família”
Soraia Mendes, advogada criminalista
.
Soraia — que tem pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — defende que tanto a Lei Maria da Penha (LMP) quanto a Lei de Feminicídio são ganhos para a luta pelo direito a uma vida livre de violência. “A tipificação dos feminicídios trouxe a desigualdade de gênero para o centro da discussão processual”, defende.
.
Entre as especialistas responsáveis por elaborar o anteprojeto que deu origem à Lei Maria da Penha, Myllena Calasans reforça a importância de as estruturas do Estado garantirem o aparato de serviços de atendimento às mulheres de forma descentralizada e com qualidade. “Não podemos dar margem para que a vítima seja responsável pelo risco a que está submetida. Uma mulher só pode escolher se afastar do agressor se tiver para onde ir”, alerta. “As estratégias para neutralizar o ódio dos homens contra as mulheres não podem ser apenas culturais. Devem ser materiais também”, explica.
.
Myllena ressalta que não adianta a população permanecer em vigília e como agente denunciador enquanto o poder público se distancia do papel de garantidor de ações de enfrentamento às violências. Para ela, o feminicídio precisa ser compreendido como “a ponta do iceberg” das ausências do Estado em sua função de promover políticas públicas preventivas, de assistência e de coibição.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.