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Veja publicação original: O primeiro crime da lei maria da penha! Comentários a Lei 13.641/18
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Por Renan Soares
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O descumprimento de medida protetiva virou crime, previsto na lei maria da penha. Teço breves comentários à luz de nosso sistema normativo.
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No dia 3 de abril, surge a Lei 13.641/18, que acrescenta o artigo 24-A a Lei Maria da Penha (Lei 11.340). Como dito no título, ao contrário do que muitos pensam, esse é o primeiro e único crime tipificado na LMP. Vamos ao texto legal:
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Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
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Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
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§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
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§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
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§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.”
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Essa norma trata da situação em que houve a decretação de medida protetiva contra o agente, porém o mesmo, em total desrespeito a determinação legal, descumpre a medida protetiva.
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1- Antes dessa inovação o descumpridor de medida protetiva ficava impune?
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Não.
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Existe a previsão de prisão preventiva na hipótese de descumprimento de medida protetiva. Uma sanção processual penal. (Art. 313, III, CPP)
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Existia uma corrente que defendia que tal descumprimento deveria ensejar ação penal pelo crime de desobediência (Art. 330, CP) no entanto essa tese não foi aceita pelo STJ. O tribunal da cidadania entende que não há crime de desobediência quando já existe alguma lei prevendo uma sanção civil, administrativa ou processual penal para esse descumprimento.
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Jurisprudência acertada do STJ, respeitando os princípios da ultima ratio e também do ne bis in idem.
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2- E o que muda com esse novo crime?
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A intenção do legislador é, claramente, que o agente responda pelo crime do Art. 24-A e sofra também a prisão preventiva do Art. 313, III, CPP. Pois escreveu a ressalva do § 3º- “O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.”
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O legislador buscou “superar” a jurisprudência do STJ para dar tratamento mais rigoroso a quem descumpre medidas protetivas, agora o agente pode ser preso preventivamente e ainda responder por crime.
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Resumindo: Agora, quem descumpre medida protetiva responde pelo crime do Art. 24-A e também recebe a sanção processual pelo descumprimento.
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Essa é a leitura básica da inovação legislativa.
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Agora pretendo aprofundar um pouco e trazer algumas reflexões:
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- O sujeito ativo do crime pode ser qualquer um, vez que medidas protetivas podem ser deferidas contra homem ou mulher.
- O sujeito passivo do crime é o estado, que está tendo sua ordem descumprida.
- O crime pode ser praticado mediante ação (ex: aproximar-se da vítima mesmo havendo uma proibição.) ou omissão (ex: não pagar os alimentos provisórios fixados pelo juiz como medida protetiva).
- Só é possível cometer esse crime na modalidade dolosa. É possível a tentativa.
- A ação penal é pública incondicionada.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
- Existem várias medidas protetivas; algumas são de caráter civil e outras criminais, aqui o legislador deixa cristalino que o descumprimento de medidas cíveis também pode configurar o crime.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
- Aqui o legislador criou uma exceção à regra do Art. 322,CPP. A regra é que crimes com pena de até 4 anos o Delegado de Polícia pode estipular fiança. Apenas o juízo responsável poderá conceder fiança.
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Já falei sobre fiança aqui. (inclusive atualizei essa exceção lá)
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§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
- Esse inciso é o “drible” que o legislador tentou dar na jurisprudência do STJ. Visando que além de responder pelo crime o descumpridor também possa ser preso preventivamente.
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Minha primeira reflexão: Vejo este inciso § 3º como uma exceção ao princípio do ne bis in idem – que proíbe uma dupla condenação pelos mesmos fatos.
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Ocorre que o princípio do ne bis in idem é consagrado na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em vigor no Brasil, e possui status de norma supralegal, acima da legislação ordinária mas abaixo da constituição.
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Então, tenho a impressão que é caso de uma lei ordinária, LPM, indo de encontro com uma lei de hierarquia superior, de modo inconvencional, e que por tanto não seria possível a cumulação de ação penal por crime e sanção processual pelo mesmo fato.
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Também ressalto que o Direito Penal é ultima ratio, de forma que a norma incriminadora só deve ser aplicada outros meios de controle social tiverem falhado em proteger o bem juridicamente tutelado.
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Greco, ressaltando o caráter subsidiário do direito penal, cita Roxin:
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“A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.”
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Não se ignora a importância da Lei 11340/06 para a proteção da mulher. Porém, ao meu sentir, a previsão de prisão preventiva já representava proteção o suficiente. Aqui até é possível invocar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
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Mas esse é um entendimento que certamente será minoritário. Apenas uma reflexão ao leitor. Não quero passar meu entendimento como uma verdade absoluta.
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Minha outra reflexão é: Aplica-se a Lei 9099/95 para o crime do Art. 24-A da Lei Maria da Penha?
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A Lei 9099 traz vários benefícios ao acusado, inclusive medidas despenalizados como a transação penal e a suspensão condicional do processo, por isso o debate é extremamente relevante.
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Esse tema certamente vai gerar grande controvérsia nas varas criminais (ou nos juizados).
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A pena máxima do Art. 24-A não ultrapassa dois anos, tratando-se de infração de menor potencial ofensivo (Art. 61 da Lei 9099/95). Porém a Lei Maria da Penha afasta a aplicação da lei 9099/95 (Art. 41 da Lei 11.340). Existem, no momento, duas correntes.
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- Uma corrente argumenta que a Lei 11.340/06 impede expressamente a aplicação de medidas despenalizadoras em fatos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, e que no crime de descumprimento de medidas protetivas a violência não deixaria de existir, mesmo que de forma implícita. Embora o sujeito passivo imediato seja o Estado, à conduta de quem ignora determinação judicial desta natureza é não só de desprezo à própria decisão, mas também de menosprezo à dignidade da ofendida, que continua sendo constrangida. Por tanto, não se aplica a Lei 9099/95.
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. - Outra corrente argumenta que a vedação do Art. 41 é referente a crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher e no tipo penal em questão o sujeito passivo é o estado, ou seja não é um crime contra a mulher mas sim contra administração pública, então na definição do Art. 41 da Lei 11.340/06 não cabe a vedação. A ampliação do escopo do Art. 41 violaria o princípio da legalidade-taxatividade, previsto tanto na Carta Magna quanto na Lei Ordinária. Por tanto, a Lei 9099/95 aplica-se.
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