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O país regista mais de 120 mil casos de violência doméstica

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Veja publicação original:  O país regista mais de 120 mil casos de violência doméstica

 

Violência física, patrimonial e psicológica são os tipos de violência mais denunciados

 

Volvidos cerca de oito anos da aprovação da lei 26/2009, de 29 de Setembro, a Lei contra a Violência Doméstica, persiste a falta de conhecimento do dispositivo legal nas zonas urbanas e, sobretudo, nas zonas rurais, onde não abundam instituições de justiça. Se por um lado a publicitação da lei constitui um dos desafios no combate à violência intrafamiliar, por outro, verifica-se ainda a predominância de alguns usos e costumes locais conflituantes com as normas jurídicas que salvaguardam os direitos e liberdades fundamentais.

 

 

O jornal O País apresenta uma análise de dados dos últimos cinco anos referentes à violência doméstica. Neste período, foram registadas 120 872 ocorrências, nas esquadras da polícia ou gabinetes de atendimento a mulher e menores vítimas de violência, sendo que as mulheres constituem a maioria das vítimas. Assume-se que o nível de consciencialização tenha aumentado nos últimos anos, visto que este tipo de violência passou a dominar os discursos públicos.

 

 

A violência física simples, a violência patrimonial e a violência psicológica figuram entre os principais tipos de violência mais denunciados. Esta última, apesar de ser invisível, deixa traumas e pode degenerar em violência física e, em casos extremos, em morte.

 

 

Maria Sopinho, chefe do Gabinete de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência na Cidade de Maputo, diz que “outrora, as pessoas chegavam para denunciar casos de violência física, mas hoje vem aumentando o número de queixas relativas à violência psicológica, o que nos faz crer que há uma maior consciencialização”.

 

 

Dos 1 036 casos de violência registados no primeiro semestre deste ano, 261 constituem queixas relativas à violência psicológica, que, segundo o código penal, é punível com pena de prisão de seis meses a um ano e multa correspondente.

 

 

IPAJ apoia vítimas carenciadas

Nos gabinetes de atendimento, o Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica presta serviços de assistência jurídica aos cidadãos carenciados. A instituição, que completou 23 anos esta semana, está presente em 140 distritos do país.

 

 

O IPAJ também exerce actividades cívicas que promovem os direitos e deveres dos cidadãos e divulga leis, à semelhança da Lei contra Violência Doméstica, à luz da aprovação do seu estatuto orgânico pelo decreto 15/2013, de 26 de Abril. Nos casos de violência doméstica, facilita a constituição da figura de assistente particular.

 

 

“Um dos objectivos estratégicos do governo é de garantir o acesso à justiça, através da consolidação e alargamento dos serviços de assistência jurídica e patrocínio judiciário aos cidadãos economicamente desfavorecidos. Deste modo, a assistência jurídica e patrocínio judiciário gratuito afigura-se como uma ferramenta necessária para o desenvolvimento socioeconómico do país”, referiu Justino Tonela, director-geral do IPAJ, durante a cerimónia de celebração dos 23 anos da instituição.

 

 

Segundo Tonela, apesar de se terem verificado avanços significativos ao longo deste período, há barreiras por se ultrapassar, a exemplo do regime jurídico da assistência jurídica e patrocínio judiciário em vigor, que carece de revisão profunda e de melhor enquadramento.

 

 

Vítima de violência em união precoce

A província de Manica apresenta um elevado número de casos de violência doméstica, nos últimos cinco anos, perdendo apenas para Nampula. Só no ano passado, 997 crianças foram vítimas de abusos de vária ordem. No primeiro semestre deste ano, foram registados 582 casos. O caso da Anita, nome fictício, de 13 anos de idade, vai constar das estatísticas do segundo semestre. A menina foi entregue aos 11 anos de idade pelo pai a um jovem de 19 para se casar. Em troca, o pai recebeu 500 Mt e bens alimentícios.

 

 

A menina passou a viver com o jovem e fazia trabalhos domésticos forçados. “Acordava, varria o quintal, depois ia buscar água. A seguir, fazia o almoço, lavava a roupa, preparava o jantar e depois dormia com marido”, contou Anita, segundo a qual fugiu do lar porque não conseguia fazer esses trabalhos pesados.

 

 

A casa de quatro metros quadrados onde vivia é feita de barro e estacas, sem mínimas condições de conforto. É uma estrutura constituída por dois compartimentos, tendo apenas uma esteira e uma mala de roupas que a menina abandonou quando fugiu. A menina denunciou que algumas vezes ficava sem comida, quando, por escassez, era obrigada a privilegiar o marido, dormindo com fome. Por outro lado, era torturada quando não aceitava dormir com o jovem a quem foi entregue.

 

 

O pai, que sabia das agressões, obrigou a filha a voltar ao lar, após a fuga. O homem de 48 anos, que está detido acusado de crime de corrupção de menor, nega ter obrigado a menina a permanecer naquela relação. A mãe assume ter consentido, mas disse que agiu assim por submissão ao seu marido, mesmo não tendo concordado. Para além do consentimento dos pais, a vítima fala da presença do líder comunitário no processo.

 

 

Quando o questionámos sobre o caso, o líder da localidade de Macate, posto administrativo de Zembe, negou ter estado presente na cerimónia de entrega da criança para o casamento, mas afirmou que “quando a menina quer estudar e o seu pai não quer que ela estude, o pai bate na menina e leva o dinheiro”, referiu Elias Bema.

 

 

O pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane chama atenção para a necessidade de se desincentivar estes actos nas comunidades. “O grosso da população moçambicana não sabe o que são direitos humanos. Os líderes comunitários têm passado por reciclagens e formações sobre direitos e cidadania, promovidos pelo Estado e outras organizações, mas não têm força para impor mudanças no seu meio. Não adianta levarmos as leis e as instituições para lá, precisamos de usar processos democráticos para sensibilizar as populações”.

 

 

O jovem de 19 anos está detido e responde por crime de violação de menor de 12 anos e violência física. Aliás, foi o mesmo que deu a conhecer o caso às autoridades, porque o pai da criança que havia fugido da sua casa se recusava a devolver os 500 Mt e bens alimentícios. Quando se apercebeu de que o pai da menina estava a ser detido, fugiu, mas foi mais tarde capturado pela polícia.

 

 

Custo social e económico da violência doméstica

Mulheres e homens que morrem ou ficam inabilitados para trabalhar por conta das agressões físicas ou doenças mentais acabam delegando o sustento ou a educação dos seus filhos a familiares ou mesmo a instituições sociais, o que faz aumentar o risco de desvios comportamentais das crianças e jovens. Para além do custo social, pesa o custo económico.

 

 

Em Nampula, província que lidera os casos de violência doméstica no país, fomos ao centro penitenciário feminino. Neste estabelecimento, 19 das 40 reclusas cumprem penas por crimes ligados à violência doméstica. A maioria das mulheres entrevistadas pelo “O País” diz ter agido em legítima defesa, que para algumas foi excessiva. Nestes casos, a retaliação completa o ciclo de violência que as suas respectivas famílias nunca conseguiram travar, por desconhecimento das leis ou por respeito às práticas costumeiras.

 

 

Na penitenciária, as reclusas beneficiam de actividades de terapia ocupacional, de modo a cumprirem o último fim da pena: reabilitação e reinserção do indivíduo. São desenvolvidas habilidades nos campos de alfabetização, informática, corte e costura, agricultura e pecuária.

 

 

Inês Eusébio, responsável pela penitenciária, disse que “algumas mulheres que saíram daqui conseguiram uma rápida reinserção, aplicando as técnicas de criação de frangos aqui ensinadas”.

 

 

É um modelo de gestão que minimiza os custos que o estado teria para sustentar este grupo. Mas o Estado não escapa de custos no Serviço Nacional de Saúde, que se ocupa o tratamento das vítimas de violência doméstica, sem contar com outros encargos relacionados com pagamento de funcionários e agentes que trabalham nas instituições de apoio jurídico e judiciário. Trata-se de um custo que pode ser minimizado, se os cidadãos denunciarem os primeiros abusos, o que pode prevenir mortes ou sequelas físicas e psicológicas.

 

 

 

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