Saiu no site ESTADÃO:
Veja publicação original: ‘O julgamento da sociedade é a pior coisa para uma mulher vítima de violência’
Você está acostumado a ler aqui sobre direitos da mulher. Hoje, peço licença para contar a história da Patrícia*
NANA SOARES
Reflexões sobre gênero, violência e sociedade
Você está acostumado a ler sobre violência contra a mulher neste blog. Hoje vai ler a história de Patrícia*. Ela é uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida – se deparam com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é urgente e diz respeito a todos – homens e mulheres.
O texto a seguir aborda violência contra a mulher.
Em 2016, aos 38 anos, vi minha história estampando a primeira página de jornais e sites da região. Tudo porque fui agredida por meu então noivo, uma figura importante da cidade em que morava.
Eu, mãe de três filhos, e ele, pai de dois, estávamos juntos há cerca de 6 meses. Mesmo nesse curto período de tempo, tínhamos um relacionamento sério e já estávamos noivos. Na verdade, foi depois de comprarmos nossa passagem de lua de mel que ele me agrediu.
O fatídico dia começou com um almoço em família. Para celebrar o noivado. Percebi que ele estava estranho, incomodado, não queria que eu olhasse para os lados. Até então, ele dava muitos sinais de ciúmes, mas eu achava que era normal daquela paixão tão grande que ele manifestava. Me mandava mensagem o dia todo, enviava flores, dizia que amava. Mas também começou a vigiar meu celular, a desconfiar de qualquer amizade com homens e me fez bloquear o contato com meu ex-namorado.
Todas as vezes que ele tinha ficado bêbado eu estava longe, mas nesse almoço percebi que ele tinha bebido. Voltamos para o meu apartamento e ele avisou que ia dar uma volta de carro. Uns dez minutos depois percebi que o carro dele ainda estava na garagem e mandei mensagem para entender o porquê. Como resposta, ele disse que não ia sair e estava voltando para casa. Já chegou para a briga:
“Quem é o playboy que está no apartamento? É por isso que você me mandou embora?”
Foi uma fala tão sem sentido que eu até ri. Mas aí começaram as agressões. Ele começou a me bater, mordeu minha mão, me puxou pelo cabelo e então me jogou contra a parede de um jeito que eu bati a cabeça muito forte. É um filme de terror que acontece em questão de segundos, uma situação que não dá para raciocinar. Gritei forte chamando pela minha filha que, quando conseguiu entrar no quarto, também foi agredida por ele. Eu estava caída, mas ao ver minha filha apanhando eu virei uma onça. Não sei de onde tirei força, mas fiz ele me soltar. Se não tivesse feito, acho que ele teria acabado comigo naquele momento. Mandei ele sair imediatamente e chamei a polícia.
A caminho do hospital, fui ameaçada. Ele soube que eu estava indo para lá porque eu havia ligado para a filha dele e também porque o caso já começava a ser notícia na internet. Quando cheguei, tive a iniciativa de falar com a recepcionista que eu era vítima de violência e não podia ficar esperando, precisava de atendimento imediato e, mais importante, que se alguém perguntasse por mim era para dizer que eu não estava lá. Alguns minutos depois, num descuido da segurança e enquanto eu era atendida pelo médico, ele invadiu o hospital e foi atrás de mim.
Eu sabia que ele tinha arma de fogo, então, naquele momento pensei que ia morrer, tive certeza de que ele foi buscar a arma para me dar um tiro. Depois de um tempo de ameaças, ele foi retirado do hospital e, ainda furioso, foi atrás do meu ex-namorado, que também foi ameaçado. Eu fui para a delegacia comum e fiz a denúncia. No dia seguinte, fui na Delegacia de Defesa da Mulher e pedi a medida protetiva, que foi concedida no mesmo dia. Esse é um recurso valioso que poucas mulheres têm informação e sabem que têm direito.
O julgamento da sociedade é a pior coisa que existe para uma vítima de violência doméstica. As pessoas me julgavam porque eu não sabia que ele usava drogas, que já tinha agredido outras mulheres, como se eu tivesse bola de cristal. Precisei de muito tempo para entender que não era minha a culpa por não saber o passado dele.
Eu era advogada e isso foi fundamental na minha investigação. Fiz exame de corpo de delito, levei o celular para recolher as provas, fiz tudo que a vítima precisa fazer para provar que sofreu violência. Aprendi que a agressão física em si foi pequena se comparada ao estrago emocional deixado por ela.
Nessa época eu parei de trabalhar, tive de ser acompanhada por psicólogo diariamente, por psiquiatra, tomei vários remédios, tive problemas para dormir. Pensei que seria melhor ter tomado aquele tiro no hospital. Deixei de sair por muito tempo e contratei um segurança particular, porque estava denunciando uma pessoa de família importante na cidade e de poder aquisitivo muito alto. Até hoje não consegui me envolver em outro relacionamento amoroso.
E as mulheres que não têm condição de contratar um segurança particular? Uma advogada? Meu caso me fez olhar muito para elas, me deu certeza da importância de lutar pelos nossos direitos. Por mexer com alguém de uma família tradicional, muita gente tentou me dissuadir para retirar a denúncia. Mas isso não é uma opção, vou com ela até o fim.
Penso que mais do que me proteger, eu protegi futuras vítimas desse homem.
Passados 20 meses, estou morando em outro estado. Minha advogada está confiante no processo e acha que as chances de condenação são grandes: tenho testemunhas sólidas, a agressão no hospital foi filmada, as provas são abundantes. Mas ele ainda não foi sequer chamado para testemunhar. No Brasil, nós temos uma das melhores leis do mundo no assunto, mas sua aplicação é muito falha.
Eu tive sorte em uma série de fatores: meu caso caiu nas mãos de uma delegada mulher, sou do Direito e conheço seu funcionamento. E ainda assim, apesar de meu gasto emocional e financeiro, meu processo está parado, como é a realidade da maioria dos casos de violência doméstica. O que me leva a concluir que não basta denunciar, temos também que cobrar respostas do judiciário.
Mas por mais moroso que seja o sistema, nós mulheres não podemos desistir de lutar pelos nossos direitos. Sendo vítima de violência, aprendi que ela acontece com qualquer pessoa, independentemente de posição ou classe social. Aprendi também que existe vida e felicidade mesmo após esse fenômeno devastador.
Hoje sou uma mulher totalmente diferente, amadureci muito com essa situação, quero lutar pelos direitos das mulheres. Estou aqui para dizer que os homens é que devem ter medo de ser punidos pela lei, e não nós que devemos ter medo deles. Chega de violência, chega de mulheres sofrendo caladas.
Entender o tamanho do problema é urgente e diz respeito a todos nós. Informe-se, apoie e denuncie. Outras colunistas do Estadão também cederam seus espaços. Leia mais histórias aqui. #DeUmaVozPorTodas
*O nome foi trocado para preservar a identidade da mulher.
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#ImagineJuntas: por um mundo feminista
POR NANA SOARES
07/03/2018, 10h23
A união entre mulheres pode mudar completamente a experiência da maternidade, do mundo do trabalho, pode fazer com que nos libertemos de um relacionamento violento e de um chefe assediador. Pode ressignificar a amizade, os relacionamentos amorosos, a adolescência, a vida adulta. Pode mudar vidas.
A união entre mulheres visando um mundo melhor e menos violento nada mais é do que a semente do feminismo, uma das noções mais transformadoras que já conheci.
Enquanto movimento político, o feminismo é relativamente recente, data de apenas alguns séculos atrás. Mas a solidariedade entre mulheres existe desde que o mundo é mundo – ou ao menos desde que o mundo configurou-se de maneira tão estruturalmente desigual entre os gêneros. E é essa desigualdade enraizada que faz com que uma prática tão natural quanto mulheres promovendo mulheres soe tão poderosa e radical.
Não existe feminismo sem mulheres unidas. Óbvio, mas colocando em outros termos: apenas nossa união é capaz de chacoalhar o mundo e trazer conquistas fundamentais. E caramba, como nós temos chacoalhado e incomodado o status quo.
Foi graças à união de mulheres do mundo todo que conquistamos o direito ao voto (que se pese que em muitos países esse direito foi negado às mulheres negras). Foi pela união de mulheres (e nunca, jamais, dos homens) que muitas nações legalizaram o aborto, é graças ao movimento feminista que temos legislações sobre violência doméstica, feminicídio, creches, pensões, licenças-maternidade e paternidade e por aí vai. Nossos direitos mais básicos vêm do entendimento de que aquilo que nos afeta pessoalmente é, na verdade, um problema coletivo, e que portanto deve ser enfrentado da mesma maneira.
Como o dia 8 de março bem nos lembra, essas conquistas não chegam sem reveses e luta constante, mas eventualmente chegam. É injusto, é cansativo e é sempre tardio, mas também compensa. Compensa porque cada conquista nos mostra como a união de mulheres é poderosa, como temos as ferramentas para mudar o mundo e como podemos efetivamente construí-lo, uma marcha por vez.
Um verso bem conhecido no mundo feminista diz que as mulheres são como as águas e crescem quando se encontram. É verdade, e a sabedoria popular descreve muito bem o efeito de “água mole” em “pedra dura”. É bem isso que o feminismo faz: une mulheres em torno de algo maior e inicia tempestades de fazer inveja em Poseidon.
Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, decidimos eu, Rita Lisauskas e Ruth Manus, três blogueiras, três amigas, criar três textos amigos, três textos irmãos. Todos eles falando sobre a importância da união feminina, cada um de um ponto de vista diferente. Queremos, nessa semana, mostrar o avesso da competitividade entre mulheres – poderíamos estar disputando likes, shares e leitores, mas não é nisso que acreditamos, nem é isso que queremos ser. Nossa condição de mulher nos une, nossas diferenças nos enriquecem. Como diria a poeta: “se juntas já causa, imagina juntas”. Se individualmente já somos fortes, imagine unidas.
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