Saiu no site TAB UOL:
Veja publicação original: O CREPÚSCULO DO MACHO
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Menos violência e mais sentimentos podem desenhar uma nova ideia do que é ser homem
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Cidade Tiradentes, zona leste da cidade de São Paulo. Saio de casa pela manhã e vejo dois meninos apostando uma corrida. O que está atrás grita: “Quem chegar primeiro é viado!”. Eles desaceleram. A disputa agora é para ver quem chega por último.
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“Olhemos com atenção para o mundo dos meninos e não levará muito tempo para percebermos que ser homem é vencer três nãos: não ser mulher, não ser gay e não ser criança. Um duro caminho para conquistar a masculinidade deve ser construído. Mais tarde eles serão incentivados a demonstrar que gostam de meninas, que sabem se defender de uma briga ou mesmo incentivados a provocá-la”, afirma Helen Barbosa dos Santos, doutoranda sobre construção hegemônica da masculinidade pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
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TEMPO DE VIOLÊNCIA
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94,4% das vítimas dos homicídios por arma de fogo no Brasil são homens. 79,31% dos mortos em acidentes de trânsito no estado de São Paulo foram homens. 45% dos feminicídios estão relacionados a homens que não aceitam a separação. 49.497 estupros foram registrados em 2016, mas estima-se que o número real possa chegar a quase 500 mil por ano.
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“Violência incita violência”, afirma Gabriela Manssur, promotora de justiça e idealizadora do projeto Tempo de Despertar, que enfrenta a violência contra a mulher por meio da reeducação de homens agressores. Segundo ela, estima-se que 67% dos homens autores de violência sofreram ou presenciaram atos dessa natureza durante a infância. Mas ninguém nasce assim, lembra a promotora. “Caso contrário, teríamos de admitir que aqueles meninos doces e meigos, quando criancinhas, já nasceram violentos”, diz. Gabriela contabilizou 2% de reincidência entre os participantes do Tempo de Despertar – a taxa dos que voltavam a cometer violência de gênero era, até então, de 65%.
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Com mais de 20 anos de trabalho sobre temas ligados a masculinidades, o psicólogo e pesquisador Marcos Nascimento, do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, diz que a violência é um repertório comum na vida dos garotos. “Quando um garoto na pré-escola é mordido por outro garoto, por exemplo, a resposta que ele ouve é ‘vai lá e morde ele também’”, afirma. “A construção de masculinidade que promove competição, a ideia de que alguém é mais homem do que outro, que por conta de uma noção de honra pode desafiar e, se possível, aniquilar aquele que o desafia, faz com que a violência seja incorporada no mundo masculino desde muito cedo”, completa.
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MENINOS NÃO CHORAM
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Mudar a maneira como os garotos são educados pode ser um ponto de partida em busca de novas masculinidades. É o que faz a editora de conteúdo Cecília Teixeira, 34. Ela mora com seu filho Pedro, 4, e com seus pais em um apartamento em Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo. Pedro é um menino agitado. Corre pela casa e larga o jantar na metade para ir ao quarto brincar com fogãozinho, vassourinhas e um aspirador de pó. A mãe explica que não lhe presentear com arminhas e bonecos de heróis foi uma estratégia para impedir a potencialização da agressividade e da competição. Pedro também não assiste a desenhos de super-heróis. “Esses desenhos geralmente mostram um homem resolvendo as coisas com violência. Direciona muito para o estereótipo sobre coisa de menino e coisa de menina”, afirma Cecília. Ela trabalha com o desenvolvimento de conteúdo para um aplicativo sobre habilidades socioemocionais na primeira infância, o que colaborou para a maneira como tem educado seu filho.
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“Tento sempre trabalhar o lado emocional, deixo claro que se ele está triste pode chorar. Explico que é normal sentir raiva, só não pode expressar essa raiva ou frustração batendo em alguém”, afirma. Divorciada há cerca de três anos, Cecília afirma que o ex-marido apoia essa abordagem. “Durante toda a separação, eu lhe enviei textões sobre feminismo. Isso ajudou a conscientizá-lo sobre o machismo”, conta. O ex-casal divide a guarda de Pedro, e ela diz que esse modelo ajudou a aproximar pai e filho. “Quando éramos casados, ele trabalhava longe, então a obrigação recaía mais nas minhas costas. Agora não. A paternidade colaborou para diminuir o machismo dele”, afirma.
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O consultor financeiro Roberto Teixeira, 61, é pai de Cecília e acompanha parte da entrevista. Ele vem à sala para participar do retrato da família para o TAB (foto acima). Ri de um comentário, que havia acabado de ler nas redes sociais. Alguém havia enviado “abraços héteros”. “E isso existe? Abraço é abraço”, gargalhou. Teixeira faz home office e assumiu parte de tarefas domésticas como lavar roupa, limpar a casa e preparar a comida, além de ajudar a cuidar de Pedro. “Eu fui criado com a ideia de aproveitar os privilégios dos serviços das mulheres. Eu era o provedor que ajudava muito pouco”, admite. O exemplo do avô serve para o neto. “Hoje o Pedro ajudou a preparar o molhinho do frango. Ele também coloca algumas roupas na máquina para lavar”, diz a mãe. A participação dos homens nas tarefas domésticas pode reverter um dado histórico. Pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que as mulheres dedicam 73% a mais de tempo cuidando de pessoas ou tarefas domésticas do que os homens.
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Longe da família de Cecília, no Jardim São Luís, estão a autônoma Erica Fernanda Thomaz, 27, e seus filhos Zion, 3, e Carolina, 5 (foto acima). Apesar da distância do bairro de classe média alta até a periferia da zona sul, as duas mães dividem uma preocupação em comum: criar os filhos longe dos clichês de macho.
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“Eu sempre falo para o Zion que não tem essa de brincadeira de menino ou de menina: existe brincadeira de criança”, diz Erica, que já corrigiu o filho quando este fez ressalvas sobre a irmã poder jogar bola com ele. Zion e Carolina são filhos de pais diferentes. Erica está separada do pai de Zion há pouco mais de um ano. Segundo ela, faz seis meses que o ex-marido não vê o filho. A irmã visita o pai com mais frequência, o que cria atritos com o que a mãe tenta ensinar. “Ele já disse para ela que rosa não era cor de menino. Eu tenho um trabalho diário de rebater e desconstruir o que eles veem e escutam em outros lugares”, afirma Erica. Enquanto sua mãe fala, Zion brinca pela sala com o carrinho rosa de sua prima. Nesse instante, ela expressa sua preocupação sobre a vida dos homens negros.
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“Tenho mais medo por ele do que por ela. Quando o assunto é PM (Polícia Militar), o homem negro é muito mais abordado do que a mulher, então eu ensino ele, hoje, a cumprimentar, a respeitar, mas uma hora vou ter que ensinar como reagir a uma abordagem policial. O homem negro é muito mais assassinado do que o homem branco e eu temo por isso”, diz.
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UM ESTRANHO NO NINHO
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“Não tinha lugar para mim dentro da masculinidade hegemônica, não pode abraçar, não pode beijar, não pode dançar. Ahhh! Eu não cabia nisso”. A fala é do designer e ator Rafael Cristiano, 25, criado no Grajaú e morador de Interlagos, na capital paulista. “Nas rodas de conversas masculinas, na escola, eu sempre estive na beirada. Eu era o viadinho da turma, e para bancar isso se paga o preço. Eu apanhava e era zoado”, lembra.
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Criado no catolicismo, a atração que Rafael sentia por homens e por mulheres sempre foi entendida como pecado. Ele começou a se entender como bissexual a partir do relacionamento com sua companheira Fernanda, a primeira e única pessoa com quem manteve uma relação afetiva. “Na bissexualidade, minha existência é mais afirmada”, explica.
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A experiência no ambiente escolar e a descoberta da sexualidade inspiraram Rafael em um estudo sobre masculinidades negras e periféricas. No ano passado, ele realizou rodas de conversas sobre o tema em escolas estaduais na periferia da Zona Sul. “A escola é um lugar opressor, onde se aprende a ser homem da pior maneira. O trabalho proposto é repensar a masculinidade de uma forma positiva, analisando letras de funk e rap com os alunos e fazendo uma reflexão sobre a violência de gênero”, afirma. “A masculinidade em parte é um teatro, é preciso inclinar os ombros para trás, fechar a cara, encarar o outro homem”, completa.
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Rafael (foto acima) vê uma mudança pequena nas masculinidades, e a considera particularmente tímida entre aqueles que têm menos acesso a esses discursos, como mulheres e homens da periferia. Ele diz que o homem tem a necessidade de poder para ser bem-sucedido, e na periferia, geralmente, os homens são subalternos no trabalho, então se apropriam do que está ao alcance: as mulheres e seus corpos.
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“Quando não se apropriam das mulheres, esses homens se apropriam da marginalidade e do narcotráfico para alcançarem o patamar de consumo que eles almejam, mas que lhes é negado. Acho que aquela frase dos Racionais Mc’s ajuda a exemplificar o que quero dizer: ‘Você sabe o que é frustração? Máquina de fazer vilão’. Inclusive o Mano Brown é um cara que está se revendo. Ele elaborou e repensou tudo que viveu naquela época, entendendo que eram machistas e ainda são”, analisa.
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Quem também usa os Racionais Mc’s para expor seu pensamento é o sociólogo Túlio Custódio, que pesquisa sobre masculinidades negras. “‘Crime, futebol, música – caralho – eu também não consegui fugir disso aí’. O que ele está dizendo com isso? É que são apenas três lugares onde ele consegue vislumbrar visibilidade a partir de uma masculinidade subalterna”, explica Custódio. “Esse lance do machão, da violência, coisas do tipo, são bem presentes [na periferia]”, concorda o rapper Rincon Sapiência, um dos expoentes do hip hop nacional. Mas Rincon também enxerga uma mudança no seu ritmo, muito associado a ideias machistas no passado. “Por conta das redes sociais, as mulheres e os gays têm exigido uma melhor postura de nós, no rap, e isso só tem acontecido porque essa cobrança tem nos feito repensar o nosso lugar no rap como homens”, avalia.
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MUDANÇA DE HÁBITO
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“Os gêneros estão em constante transformação. O feminino vem passando muito por isso e o masculino pode se espelhar. Há uma amplitude de gêneros e de pessoas dentro dos gêneros”, afirma Guilherme Nascimento Valadares, editor-chefe do portal PapodeHomem. O próprio Valadares e o portal passaram por um processo de transformação, “O PapodeHomem era muitas vezes machista e não nos dávamos conta disso, pelo contrário, não nos achávamos machistas”, afirma.
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Para Valadares, os exemplos da mídia ainda representam homens, em sua maioria, em imagens congeladas, atrás de um patamar de sucesso inalcançável e que qualquer um que busque esse ideal irá muito possivelmente se deparar com o fracasso. Essa ideia sintetiza o que ele vê como os quatro pilares usuais da masculinidade: o homem provedor, o homem protetor, o homem reprodutor e o homem autoconfiante. “Os homens ocupam a maior parte dos cargos executivos em empresas, ganham mais e são maioria no Senado, mas também são maioria nas prisões”, afirma. Apesar de concordar que é necessário fazer com que os homens entendam o que é desrespeitoso e machuca as outras pessoas, em especial as mulheres, Valadares alerta que a tentativa de “conceber” um novo homem é uma farsa e um caminho para criar novos pilares que não serão alcançados e gerarão frustrações.
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Fábio Mariano, doutorando em ciências sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), mesma instituição em que ministra um curso sobre masculinidades, defende que uma nova masculinidade não é um projeto individual, mas deve ser olhada de maneira coletiva. “Estabelecer essas relações é essencial para que o indivíduo não se veja como o centro do pensamento, mas como alguém capaz de ajudar a desconstruir padrões normativos que foram estabelecidos e estão enraizados. É preciso questionar o lugar que se está e topar sair dele”, afirma.
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“Com 12, 14 anos meu pai me levava no puteiro. Era algo que eu não gostava. Na época eu queria namorar, desenhar coração, me apaixonar, mas com o tempo você se acostuma com esses e outros privilégios machistas”. Quem lembra o passado com uma mistura de arrependimento e dor é Claudio Serva, 45, terapeuta tântrico (foto abaixo).
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Estamos na Casa Prazerela, que oferece terapias para mulheres, onde Serva acaba de fundar uma filial de serviços integrada chamada Prazerele. O evento é sobre respiração de renascimento para homens, a mesma que fez Serva ter uma forte ruptura com o homem que era para se tornar o homem que é. Tirar os sapatos se faz regra antes de entrar na casa localizada na Vila Madalena. Na roda, participam seis homens. Quadros de mulheres saindo de úteros ou flores saindo de ventres decoram o ambiente. Há uma mesa repleta de frutas, amendoim e água aromatizada à disposição dos participantes. A terapia começa, baixa-se a luz, coloca-se música e são espalhados colchões para que todos deitem no chão. A respiração é feita pela boca, de forma profunda. No entorno, alguns se contorcem – o rapaz ao meu lado chora.
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Filho de um pai machista, Serva era um homem acima do peso – tinha 116 quilos – e sedentário, que trabalhava como diretor em uma imobiliária. Há um ano, um processo de divórcio seguido de um curso sobre terapias tântricas e a participação em uma terapia de respiração de renascimento o fizeram perder 40 quilos. Decidiu largar o emprego e se dedicar às aulas sobre o tema e estudos que envolvem masculinidades. “Eu era um consumidor de pornografia. Com o tempo entendi que isso era algo ruim, explora as mulheres. O caminho para consciência é muito mais trabalhoso do que aproveitar a construção do machismo”, analisa. E, ecoando os ensinamentos que dizem que a masculinidade tóxica se aprende ao longo da vida, conclui: “Essa reconexão com o garoto que eu era foi essencial para ser quem sou”, afirma.
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COLABOROU NESTA EDIÇÃO
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Fred Di Giacomo, coordenação e edição, agência Énois Inteligência Jovem
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