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Veja publicação original: Ninfa Cunha: A mulher que escolheu fazer da dança o remédio para buscar a cura
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Uma doença que limita de forma significativa sua mobilidade não impediu que ela saísse do casulo: “Eu pensava que eu era quem tinha que me adequar ao mundo”, afirma, em entrevista ao HuffPost Brasil.
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Na mitologia grega, as ninfas são espíritos femininos que possuem uma ligação específica com algum aspecto da natureza. Alguns autores costumam classifica-las como anjos sem asas, leves e delicadas: a personificação da graça criativa. No campo da biologia, por sua vez, a Ninfa é a forma imatura de alguns seres que ainda não passaram por sua metamorfose completa – a etapa que antecede a última, na qual a plenitude é alcançada.
Ninfa Cunha nasceu com uma síndrome rara, congênita: ela é a quarta de uma família que, por três gerações, casou primos carnais. A chamada Ataxia de Friedreich limita de forma significativa a sua mobilidade, mas não impediu que ela saísse do casulo e alçasse voos pelo mundo da dança. Aposto que você está pensando: “nossa, brocou demais nessa escolha do nome artístico, viu, tô chocada”.
Bom, eu me sinto obrigada a revelar ela é Ninfa mesmo, desde que saiu da barriga da mãe. O nome é o mesmo da avó materna, uma espírita cuja mediunidade era conhecida para muito além de Irará, municipiozinho no centro norte da Bahia, mais conhecido por ser o berço de Tom Zé – e vocês tão bem perto de descobrir que ele não foi a única potência que a cidade lançou ao mundo.
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“Quando uma mãe recebe um filho com deficiência, costuma ter aquela visão de coitadinho. A minha não, me criou para a vida: ‘você não vai ter mãe e pai a vida toda, então corre atrás’.”
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Dividindo a atenção com cinco irmãos, Ninfa não foi criada com qualquer privilégio ou cuidado especial. “Eu agradeço muito isso. Geralmente quando uma mãe recebe um filho com deficiência, costuma ter aquela visão de coitadinho. A minha não, me criou para a vida, sempre me dizia: ‘você não vai ter mãe e pai a vida toda, então corre atrás”.
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Ela foi bem muito mandada e disparou em direção à sua independência. Se formou, em 1994, no curso de Comunicação Social, com habilitação em Relações Públicas. Quando estava começando na correria de procurar um emprego, já com todos os obstáculos que a cadeira de rodas impunha à época – “sempre senti que a cadeira falava mais alto que meu currículo, minha conversa, minha entrevista” – descobriu mais um problema: a diabetes.
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O que parecia ser uma doença fácil de se tratar com dieta e remedinhos acabou se complicando. Os níveis de açúcar não baixavam de jeito algum. Lhe foi sugerido, em última forma, que escolhesse alguma atividade física, no Hospital Sarah Kubitschek, em Salvador, para tentar regular esses índices. A preferida entre as opções apresentadas foi a dança. E, diferentemente do que até a própria Ninfa esperava, a profissional que ministrava a aula não encarava a atividade com mero exercício terapêutico, e sim como expressão artística.
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“O Despertar. Foi isso que eu comecei a sentir com o meu corpo com as aulas de percepção corporal. Como se cada parte do meu corpo falasse: oi, eu tô aqui! E, olha, eu posso fazer isso e aquilo.”
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“A minha única intenção era baixar o açúcar. Mas ela via as aulas de outra forma, ensinava muita percepção corporal, você mergulhava no seu interior. Ela não enxergava os pacientes como pacientes, mas como qualquer aluno”, conta. A coisa foi levada tão à sério pela mentora, que Ninfa, que jamais havia ficado debaixo dos holofotes de um palco, decidiu inscrever uma coreografia no Festival Internacional DançaBahia.
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Montaram uma sequência que acontecia inteiramente no chão. O nome, não poderia ser outro: “O Despertar”. “Foi isso que eu comecei a sentir com o meu corpo com as aulas de percepção corporal. Como se cada parte do meu corpo falasse: oi, eu tô aqui! E, olha, eu posso fazer isso e aquilo”.
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O batismo de palco aconteceu e em grande estilo: no Teatro Yemanjá do antigo Centro de Convenções de Salvador – o local tinha capacidade para mais de mil pessoas. “Quando eu ensaiei no palco, me desesperei. Achei que o palco fosse me engolir, que ninguém iria conseguir me enxergar naquela coreografia deitada”. Chorou, se descabelou, pensou em desistir, mas foi convencida a ir até o fim. “Eu topei o desafio e, gente, é uma coisa… Eu sinto como se tivesse transbordado, como se o meu corpo tivesse chegado até a última fileira do teatro”. Agora, as lágrimas, segundo ela, eram de certeza: “venci o palco, e não vou parar nunca mais”.
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“Eu pensava que eu era quem tinha que me adequar ao mundo, ao invés de o mundo parar e me entender. E a dança me leva a isso: a me entender como corpo e pensar que eu tenho sim o dever de lutar por esses direitos.”
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Em suas palavras, a dança é “um bichinho que te morde e quando você vai se dar conta, já era”. Ela costuma dividir a sua vida em duas fases: a Ninfa antes da dança, e a de depois. A arte e a consciência de ser corpo no mundo a acordaram para questões que eram de seu cerne, mas que não lhe chamavam a atenção. “Eu não me tocava, como se as questões da deficiência e acessibilidade não fossem de minha competência. Antes, eu pensava que eu era quem tinha que me adequar ao mundo, ao invés do mundo parar e me entender. E a dança me leva a isso: a me entender como corpo e pensar que eu tenho sim o dever de lutar por esses direitos”.
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Ninfa descreve essa sucessão de autodescobertas como “fichinhas que foram caindo”. A soma dessas experiências catárticas foi o entendimento de queria fazer parte do campo da arte e, ao mesmo tempo, a descoberta de que esse campo estava totalmente fechado para alguém sob as suas condições. Além do preconceito de praxe, mesmo que houvesse algum vestígio de preocupação das casas culturais em oferecer um ambiente acessível, essas obrigações se limitavam ao público destes estabelecimentos – toda a parte de bastidores, palco e camarins apresentava um desafio sobre-humano de barreiras físicas, arquitetônicas e latitudinais.
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Tomou consciência de que brigar sozinha não iria de nada adiantar e encontrou numa militância ainda tímida, gente que compartilhava de suas inquietações. “Só que as pessoas de dentro do movimento não se preocupavam em discutir o principal: o que é que tem de políticas públicas voltada para o segmento das pessoas com deficiência? E, no meu caso, sempre trazendo essa bandeira para o viés da arte”.
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“Era preciso não criar uma mesma sobre acessibilidade, e sim trazer a acessibilidade à tona nas discussões de audiovisual, de teatro, de dança. A acessibilidade corta, rasga, transversaliza todos esses segmentos.”
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Em 2002, descobriu que, dentro da Funarte (Fundação Nacional das Artes), havia um programa chamado “Arte Sem Barreiras”, que se preocupava em discutir as dificuldades e demandas do fazer artístico por pessoas com qualquer tipo de deficiência. Começou a frequentar alguns eventos, mas se deu conta de um pequeno, mas importante detalhe: “a gente fala para a gente mesmo, não haviam outras pessoas interessadas na questão. Era preciso não criar uma mesma sobre acessibilidade, e sim trazer a acessibilidade à tona nas discussões de audiovisual, de teatro, de dança. A acessibilidade corta, rasga, transversaliza todos esses segmentos”.
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Resolveu aplicar tudo que havia aprendido nos encontros nacionais, dentro de casa. Ao lado do coreógrafo Deo Carvalho, montou um projeto chamado Casulo Artes Inclusivas. O objetivo? Escancarar que a arte poderia ser utilizada com um viés pedagógico, terapêutico e de expressão para os aqueles apresentavam algum tipo de deficiência, seja ela qual for – “tudo num só liquidificador”.
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“Eu sempre pensei na dança, na criação da coreografia, com a intenção de provocar. Quando eu faço a dança, sempre penso nisso: meter o dedo na ferida de alguém e rasgar.”
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Criou o coletivo, mas permaneceu com seu trabalho solo. Em 2000, se apresentou seminua em uma coreografia sobre as Ninfas da mitologia grega; em seguida, a canção Beatriz, de Chico Buarque, foi a escolhida para embalar uma sequência mais doce de movimentos… E aí veio o problema. Foi chamada para se apresentar em igrejas, era recebida com mais lágrimas que aplausos: virou um ícone da superação, palavra que detesta.
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“Eu sempre pensei na dança, na criação da coreografia, com a intenção de provocar. Quando eu faço a dança, sempre penso nisso: meter o dedo na ferida de alguém e rasgar. Ela tem que fazer você voltar para casa com alguma interrogação na mente”. Não nasceu para ser santa, não gosta do papel e não interpreta ele bem. Em uma crise de TPM, criou a coreografia Fogo, na qual encena uma transa no palco – em uma das apresentações, numa Arquidiocese, fez o arcebispo Dom Geraldo Majella se retirar do local tamanho o choque.
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A repercussão na imprensa sobre a obra a desagradou. O foco era somente um: a doença. “Me perguntavam o que a cadeira de rodas representava para mim. Ninguém me perguntou qual pesquisa eu fiz para chegar naquela coreografia. Eram deficientes apresentando um trabalho de arte, mas não se falava de arte, e sim da deficiência”
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O incômodo foi tamanho, que decidiu ampliar o escopo do Casulo com um novo projeto: o Perspectivas em Movimento. Hoje, já em sua nona edição, reúne deficientes e suas famílias num mesmo palco, sob segmentos artísticos diversos, com acompanhamento psicológico e pedagógico no Espaço Xisto Bahia – equipamento cultural que, por acaso, foi convidada a dirigir após o sucesso dessas iniciativas.
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O grande sonho de Ninfa, hoje, é tornar o espaço o primeiro da Bahia a ser 100% acessível, tanto para o público e para os artistas, afinal “o caminho é a arte, é ela quem nos movimenta e que nos une”.
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Ficha Técnica #TodoDiaDelas.
Texto: Clara Rellstab
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Imagem: Juh Almeida
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Edição: Andréa Martinelli
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Figurino: C&A
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Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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