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Veja a publicação original: Na pandemia, redes feministas se tornam ainda mais fundamentais para as mulheres que abortam na América Latina
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Ativistas de Argentina, Colômbia, Chile e Equador contam como o acesso ao aborto legal ficou mais difícil e o que fazem para acompanhar mulheres que desejam interromper uma gravidez
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Por Aline Gatto Boueri
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a América Latina, redes de feministas que acompanham abortos com medicamentos, realizados em casa, passaram a ser a opção mais viável para interromper uma gravidez não desejada. Com os sistemas de saúde sobrecarregados e no epicentro da pandemia do novo coronavírus, governos da região têm restringido o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva.
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Em todos os países consultados, o protocolo do aborto é similar. Primeiro, uma mulher que deseja abortar entra em contato com a organização. Em seguida, é feito um levantamento sobre o estado de saúde físico, mental e socioeconômico da pessoa que vai passar pelo procedimento.
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O segundo passo é uma reunião. Durante a pandemia, esse encontro passou a ser virtual. A partir daí, uma acompanhante específica é designada para acompanhar de maneira remota o aborto realizado em casa.
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Nessa etapa, a mulher também é orientada sobre como ter acesso ao misoprostol, medicamento que provoca contrações uterinas e é sugerido, acompanhado de mifepristone, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como método eficaz e seguro para a interrupção da gravidez. Dependendo do país, o remédio pode ser comprado pela mulher na farmácia, fornecido por unidades de saúde, por uma rede internacional que trabalha de maneira colaborativa, por organizações locais ou obtido, muitas vezes, no mercado ilegal.
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Durante o processo de aborto, a mulher pode ser encaminhada ao sistema de saúde, em caso de risco. As ativistas de todos os países têm um mapa de profissionais da saúde aos quais a mulher pode recorrer.
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O acompanhamento pós-aborto pode incluir assistência legal em caso de denúncias, orientação sobre direitos e recomendações sobre exames médicos que as mulheres precisam fazer depois de uma interrupção voluntária da gravidez.
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Apesar de atuar em países onde o aborto ainda nem sempre é um direito garantido a todas as mulheres, as integrantes dessas redes fazem questão de aparecer publicamente, com nomes reais, como parte de sua estratégia política. A Gênero e Número conversou com ativistas de Argentina, Colômbia, Chile e Equador que garantem que mulheres possam interromper uma gestação durante a pandemia e explicam o que significa um aborto feminista.
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Argentina
“O aborto feminista é um aborto executivo, que evita a burocratização do procedimento. E, o mais importante, a protagonista é a pessoa que vai abortar. É um aborto que faz uma pedagogia da escuta — atenta e interessada — mas sem impor nada. Uma escuta para modificar uma situação particular, mas que pode ser um ponto de inflexão na vida de uma mulher“
— Ruth Zurbriggen, uma das fundadoras do coletivo La Revuelta, que integra Socorristas en Red, uma articulação de feministas que acompanha abortos.
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Na Argentina, um documento da Direção de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério da Saúde reforça que o acesso à interrupção legal da gravidez – para casos já previstos pelo Código Penal – é um serviço de saúde emergencial e essencial durante a quarentena obrigatória, decretada pelo presidente Alberto Fernández em 20 de março. Com pouco mais de 44 milhões de habitantes, a Argentina registrou 31.577 casos e 842 mortes por covid-19 até 15 de junho, segundo dados do Ministério da Saúde do país.
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No país, é possível encontrar misoprostol em farmácias e postos de saúde das principais cidades. O direito à interrupção legal da gravidez está previsto em casos de estupro e risco de vida para a mãe, mas tem sido estendido a mulheres que argumentam que uma gravidez não desejada coloca sua saúde mental em risco, o que significa um perigo para suas vidas.
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Mesmo depois de rejeitado pelo Senado, ativistas pelos direitos das mulheres na Argentina consideram que o aborto legal passou a ser socialmente aceito no país a partir do intenso debate público e parlamentar em 2018. Segundo dados da Secretaria de Saúde Sexual e Reprodutiva da Cidade de Buenos Aires, 542 mulheres realizaram interrupções legais da gravidez na capital argentina em 2016. Em 2018, esse número saltou para 4.858.
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Para Zurbriggen, assumir-se publicamente como acompanhante de aborto contribui para a despenalização social da prática. “A Socorristas en Red tem um efeito legalizador, porque permite falar de aborto abertamente”, avalia. “Nunca tivemos medo. Tomamos a decisão de que o nosso trabalho seria público, porque precisávamos ganhar adesão à causa. Nós estamos cuidando da vida e da saúde das mulheres que decidem abortar. Por que deveríamos nos esconder?”, questiona.
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A pandemia alterou a rotina de atendimentos para as Socorristas. “O que estamos fazendo, por um contexto muito particular da Argentina e depois de muitos anos de articulação, é encaminhar tudo que podemos ao sistema de saúde, a depender de onde a mulher está. Temos um mapa bem claro no país inteiro para encaminhar mulheres a lugares de referência onde ela possa realmente resolver a interrupção da gravidez. Isso também nos dá um panorama da heterogeneidade do atendimento no país. Sabemos que há províncias [estados] onde não contamos com nenhum profissional de saúde amigável”, conta Zurbriggen.
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“Quando uma mulher nos chama, ela vai ter resposta. Porque nós vamos fazer tudo que seja necessário para que ela tenha resposta. E se ela não tiver resposta no lugar para o qual a encaminhamos, nós vamos nos mobilizar para solucionar o seu problema”, diz ela. Entre 2014 e 2019, as Socorristas en Red atenderam 38.116 mulheres em toda a Argentina, segundo o levantamento feito pelas ativistas.
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Colômbia
“Para nós, lésbicas feministas, o aborto feminista é um aborto seguro no sentido de que deve ser livre de preconceitos, de questionamentos, de violências, de práticas heteronormativas que vivenciamos em atendimentos hospitalares. É um aborto acompanhado por outras mulheres. Não é somente a expulsão de um saco gestacional ou de um feto, mas também a possibilidade de resistir a um sistema que nos obriga a parir“
— Eliana Riaño-Vivas, ativista da rede feminista Las Parceras.
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Referência para brasileiras que desejam abortar, a Colômbia despenalizou parcialmente o aborto em 2006, em uma decisão da decisão da Corte Constitucional do país, para casos em que a gravidez representa risco à vida ou à saúde da mulher, quando há malformação fetal que inviabilize a vida fora do útero e em casos de estupro ou inseminação artificial não consentida.
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No entanto, Riaño-Vivas conta que o acesso ao direito ao aborto ainda é difícil para algumas mulheres. Com a pandemia, os esforços do sistema de saúde se concentram no atendimento a pacientes de covid-19, e os obstáculos para realizar uma interrupção legal da gravidez aumentaram. Com cerca de 50 milhões de habitantes, a Colômbia registrou 1.592 óbitos e quase 49 mil casos de Covid-19 até 15 de junho, segundo a OMS.
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Entre janeiro de 2018 e maio de 2019, a organização atendeu 654 mulheres que desejavam abortar. Riaño-Vivas conta que as ativistas de Las Parceras viram aumentar seu volume de trabalho, mas pontua: “O aumento no número de acompanhamentos não significa que as mulheres estejam abortando mais. Ao não encontrar respostas dentro da institucionalidade, as organizações feministas passam a ser praticamente sua única opção”.
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Com as dificuldades de acesso ao aborto no sistema de saúde somadas às medidas de restrição à circulação e de isolamento, muitas mulheres procuram as redes feministas com gestações mais avançadas, segundo a ativista de Las Parceras. Com isso, o procedimento farmacológico é menos efetivo, e o atendimento em hospitais, mais difícil.
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“Passamos então a intensificar o acompanhamento no âmbito institucional, jurídico e legal, para que as mulheres possam também abortar em instituições, mesmo nessas circunstâncias”, conta Riaño-Vivas.
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Chile
“Um aborto feminista é um aborto acompanhado, cuidado, que questiona a heterossexualidade como instituição e também como prática sexual – que por ser uma prática obrigatória, muitas vezes coloca as mulheres em risco. É também um ato de rebeldia, porque um dos objetivos mais importantes do heteropatriarcado é que sejamos heterossexuais e mães“
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— Viviana Díaz, médica e ativista da rede de acompanhantes de aborto Con Las Amigas y en la Casa.
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No Chile, somente em 2017 o aborto foi despenalizado em casos de risco à saúde da mulher, estupro e inviabilidade da vida fora do útero. No entanto, Díaz afirma que sequer nesses casos o sistema de saúde está garantindo o direito das mulheres durante a pandemia.
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“Estamos sozinhas. O sistema não está dando respostas. O que antes estava garantido, agora não está mais. A pandemia é o argumento para tudo”, denuncia a ativista. Com cerca de 18 milhões de habitantes, o Chile registrou 3.323 mortes por Covid-19 e cerca de 175 mil casos até 15 de junho, segundo a OMS.
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A falta de opções no sistema formal se vê agravada por uma situação particular: o misoprostol não tem sido encontrado nas farmácias do país, e o acesso ao medicamento depende de redes internacionais, que compram os remédios em outros países e os levam ao Chile.
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“Com a pandemia e o fechamento das fronteiras, além das dificuldades econômicas que a população vive hoje no Chile, as mulheres não encontram o medicamento ou não podem pagar por ele”, conta Díaz.
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“A quantidade de atendimentos que realizamos duplicou entre o fim de março e as duas primeiras semanas de abril. Recebíamos 200 e-mails por mês e passamos a receber 400. Temos um acordo com uma organização com a qual trabalhamos para que as mulheres possam ter acesso ao medicamento sem precisar contrair dívidas, mas a quantidade de medicamentos disponível para um mês acabou em 15 dias”, explica a ativista.
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Assim como na Colômbia, no Chile também a pandemia gerou mais riscos às mulheres que desejam abortar. Segundo Díaz, durante o procedimento de aborto com medicamentos, existe uma resistência ainda maior em procurar um pronto-socorro quando uma acompanhante telefônica identifica, pelo relato da mulher que aborta, sintomas que exigem atendimento hospitalar.
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“Se antes já era complicado convencê-la a sair de casa para procurar atendimento médico, agora definitivamente não querem sair de jeito nenhum. Porque têm medo do contágio pelo novo coronavírus, porque não têm permissão para circular. É muito mais difícil convencer uma mulher que está passando por uma hemorragia a sair de casa”, relata a médica.
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Apesar da precariedade no acesso ao direito ao aborto, Díaz acredita que o debate tem avançado mais agora, durante a pandemia, do que durante a revolta popular que começou em outubro de 2019 no Chile. A maior dificuldade para acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, como métodos anticoncepcionais, e a maior visibilidade de casos de violência sexual durante o confinamento chamaram a atenção para a importância e a urgência de conquistar o direito ao aborto.
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“A questão do direito ao aborto foi pouco debatida durante as manifestações populares. Mas agora, que há mais medo de ir ao consultório médico, que há filas enormes em farmácias, que é mais difícil conseguir misoprostol, o aborto tem sido mais debatido. Se deixarmos em evidência que é provável que haja mais mulheres grávidas agora – e contra o seu desejo -, fica também mais clara a urgência de conquistar o direito ao aborto”, avalia Díaz.
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Equador
“Um aborto feminista é um aborto seguro, acompanhado de informação. É também um aborto livre de preconceitos, de culpas, de justificativas. Acompanhamos abortos sem a necessidade de perguntar os motivos que as mulheres têm para realizá-los“
— Verónica Vera, ativista da rede feminista Las Comadres.
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No Equador, em março e abril, as notícias sobre corpos abandonados nas ruas da cidade de Guayaquil chamaram atenção da imprensa mundial para a situação do país durante a pandemia do novo coronavírus. Com cerca de 17 milhões de habitantes, o país registrou quase 47 mil casos de covid-19 e mais de 3.800 mortes pela doença até 15 de junho, segundo a OMS.
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O aborto só é despenalizado em caso de risco à vida ou à saúde da mulher ou em caso de estupro a uma mulher com deficiência mental. Em 2019, o Congresso equatoriano rejeitou estender a despenalização do aborto para casos de estupro.
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“Em um contexto de normalidade, sem pandemia, já era muito difícil ter acesso a um aborto legal dentro das causas previstas por lei. Nos últimos dois meses, as opções seguras de abortos clandestino também ficaram mais restritas. Existem limitações grandes em serviços clandestinos que antes estavam disponíveis, como clínicas particulares”, relata Vera.
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Segundo Vera, houve um aumento de 25% no número de acompanhamentos realizados pelas cerca de 60 integrantes da rede em todo o país. Assim como na Colômbia, a pandemia veio acompanhada de maior atraso na procura por um aborto, seja porque há dificuldade em realizar exames em um sistema de saúde concentrado no atendimento a pacientes de covid-19, seja porque o isolamento ao lado de pessoas que não apoiam a mulher na decisão de abortar reduz a privacidade e aumenta os obstáculos na hora de procurar ajuda.
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“Agora há muito mais mulheres que chegam a nós sem sequer ter feito um exame para confirmar a gravidez. Muitas não conseguem sair para ir à farmácia e comprar um teste rápido. Então, além da informação sobre o aborto que já dávamos antes, agora também precisamos orientar sobre como confirmar a gestação. O acompanhamento que fazemos hoje é muito mais integral”, conta a ativista.
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A dificuldade de acesso legal ao misoprostol também representa um desafio. Vera conta que é possível conseguir o medicamento em farmácias com uma receita médica, porém, o mercado ilegal é o principal fornecedor. E a clandestinidade faz com que os preços sejam muito mais altos.
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Ainda que consigam comprar os insumos necessários para realizar um aborto, muitas vezes as mulheres que se veem obrigadas a recorrer a vendedores ilegais descobrem, depois, que receberam medicamentos fora do prazo de validade, doses menores do que as necessárias para o procedimento e informações enganosas sobre a forma de usá-los.
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“Precisamos então lidar também com a desinformação, dar segurança às mulheres de que as orientações que trazemos estão atualizadas, baseadas nos protocolos da OMS, e desmentir a informação falsa que receberam dos vendedores ilegais”, lamenta Vera.
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A ativista ressalta que Las Comadres realizam um trabalho legal, de informar mulheres e reduzir danos e riscos que um aborto inseguro poderia trazer. No entanto, Vera destaca que, diferentemente da Argentina, o aborto não está socialmente despenalizado no Equador, e isso aumenta o risco de criminalização da mulher que aborta.
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“Sabemos que vivemos em um contexto que não é muito amigável com as mulheres, e sabemos que são as mulheres pobres que estão mais expostas a ser denunciadas quando vão aos hospitais públicos. Por isso, trabalhamos com organizações de assessoria legal e jurídica, fazemos um acompanhamento integral para que nenhuma mulher que aborte conosco seja criminalizada.”
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*Aline Gatto Boueri é jornalista e colaboradora da Gênero e Número