Saiu no site G1:
Veja publicação original: Homem invade universidade no Ceará e atira contra ex-namorada, diz Polícia
Acórdão da Relação do Porto confirma pena suspensa em caso de violência doméstica, censurando a vítima devido a uma relação extraconjugal. Especialista em violência de género considera argumentação “frontalmente contrária à Constituição”.
Por ALINE FLOR
“O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.”
As declarações constam de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Outubro, que confirma a condenação de dois homens a penas suspensas por violência doméstica e outros crimes (pode consultar aqui o documento na íntegra). Fora de contexto, as palavras escritas pelo relator, o juiz desembargador Neto de Moura, e assinadas ainda por Maria Luísa Arantes, levaram alguns especialistas a questionar se se trataria de um processo actual: “A expressão ‘mulheres honestas’ foi muito comum entre a jurisprudência até, pelo menos, ao fim da década de 80, mas já não constava no código penal de 1982”, explica a socióloga Isabel Ventura, autora de uma tese de doutoramento onde analisou os discursos judiciais em casos de violência sexual.
Trata-se de um caso de violência doméstica, em que a vítima foi agredida pelo ex-marido e pelo homem com quem tinha mantido uma relação extraconjugal (que motivou a separação do casal, meses antes da agressão). Em Junho de 2015, depois de a mulher ser sequestrada pelo ex-amante, que lhe pedia que retomassem a relação, o homem chamou o ex-cônjuge da vítima para juntos a confrontarem. Na agressão, foi usada uma “moca” com pregos. “É um caso extremamente violento”, caracteriza Isabel Ventura.
Os homens foram condenados pelo Tribunal de Felgueiras a penas suspensas. O Ministério Público recorreu da sentença, mas a decisão foi confirmada pela Relação do Porto. Na argumentação do acórdão, a que o PÚBLICO teve acesso, lê-se que “a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher” é vista “com alguma compreensão”.
“Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”, lê-se no acórdão. O caso ainda não transitou em julgado, e a advogada da vítima afirma ao PÚBLICO que a cliente não decidiu que medidas tomar.
Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, lamenta o impacto simbólico da fundamentação apresentada. A jurista, que investiga a violência de género nos homicídios conjugais e violência doméstica, afirma que, “quando um acórdão da Relação fala disto com normalidade, em vez de com censura, está de certa forma a tornar mais legítimo que haja mais homens a serem violentos contra as suas mulheres”. “Está a colocar em risco a vida de muitas mulheres em Portugal”, condena a jurista.
Ferreira Leite afirma que a associação Capazes vai apresentar uma queixa ao Conselho Superior de Magistratura (CSM). Fonte da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas afirma que a entidade também tomará uma posição em breve. O CSM ainda não adiantou se já foram apresentadas outras queixas ou se será aberto algum processo disciplinar ao juiz com base no caso agora tornado público.
Ao que o PÚBLICO apurou, existe pelo menos mais um processo em que é possível encontrar na argumentação deste magistrado um ataque às “mulheres adúlteras”.
Numa acórdão da Relação do Porto, em que o juiz Neto de Moura foi relator, o depoimento de uma vítima de violência doméstica de Vale de Cambra é desconsiderado devido ao facto de esta “[andar] a trair o marido”. “Uma mulher adúltera é uma pessoa dissimulada, falsa, hipócrita, desleal, que mente, engana, finge. Enfim, carece de probidade moral”, caracteriza o relator. “Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos”.
Ainda sobre o caso de Felgueiras, Inês Ferreira Leite afirma que “o Estado não pode dizer que é normal na sociedade que o adultério da mulher torna compreensível a forma brutal como esta vítima foi perseguida e agredida pelos dois homens”. “É uma argumentação frontalmente contrária à Constituição e é profundamente machista, discriminatória e, portanto, inaceitável.”
O PÚBLICO contactou a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), para tentar obter um comentário, mas a presidente da ASJP declinou pronunciar-se sobre este caso.
Com Ana Henriques
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