Saiu no Blog da Redação:
Breve panorama sobre vozes femininas que hoje fazem versos — mas permanecem à sombra por preconceito de editores. Uma realidade em rápida transformação
Por Inês Castilho
No ano 40 do feminismo brasileiro, já não se admitem atitudes que até outro dia, naturalizadas, passavam batido. No mundo das luzes inclusive. Por exemplo, circula por aí manifesto em que intelectuais e artistas se comprometem a não participar de mesas de debates ocupadas apenas por homens – mudando assim o conceito de normalidade. Outro exemplo: questionada na última edição sobre a ausência de homenageadas, a Flip escolheu louvar este ano a escritora Ana Cristina César, segunda em 14 anos de festival – a primeira foi Clarice Lispector, em 2005.
No mundo editorial, a provocação veio de uma jovem poeta, Ana Rüsche, ao jogar na rede o texto Mulheres escrevem poesia e desaparecem, em que questiona a invisibilidade da “intensa produção de poesia feita por mulheres” no país. Ana cita livros e artigos recentes em que o placar é tremendamente desfavorável às poetas. Volta às publicações da virada do século e constata: a coisa é grave. “O que me espanta é que qualquer análise lúcida e cuidadosa dos dias de hoje iria apontar o evidente protagonismo feminino na poesia!” E então lança o dado avassalador: em todos esses livros e artigos não encontrou uma única poeta negra.
Há nomes consagrados como Cecília Meirelles, Pagu, Hilda Hilst, Olga Savary, Adélia Prado, Alice Ruiz, e mesmo o das malditas Leila Miccolis e Orides Fontela. E ainda de suas antepassadas Auta de Souza, Gilka Machado e Francisca Júlia, entre tantas outras que, à frente do seu tempo, ousaram poetar quando não eram autorizadas sequer a estudar. Falo das excluídas desde as décadas de 70 e 80, quando a produção poética das mulheres se torna mais expressiva, diante da ressurgência da luta feminista e o início da desconstrução social de gênero – tais como Stela do Patrocinio e Conceição Evaristo, esta finalmente vencedora de um Jabuti na categoria contos e crônicas. Ou das inúmeras jovens e nem tão jovens que, de lá para cá, vêm se aventurando na poesia.
Elas são tantas que nem conseguiria eu conhecê-las, nem seus nomes caberiam neste texto. Basta clicar no blog do poeta paulista Rubens Jardim – integrante da Catequese Poética, movimento que levou a poesia às ruas, logo após o golpe militar de 1964 e que, desde 2011, já publicou 270 poetas e mais de mil poemas de mulheres em seu site. Rubens, para quem “a poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano”, conta que iniciou esse trabalho ao perceber como era relegada a segundo plano a poesia das mulheres.
“Que o José Veríssimo ou o Sílvio Romero – famosos críticos e historiadores da literatura do século 19 – registrassem poucos nomes femininos, tudo bem. Eram poucas as mulheres ‘atrevidas’ a publicar. Mas, quando fiquei sabendo que um cara batuta como o Prof. Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, só menciona quatro nomes: Francisca Júlia, Gilka Machado, Auta de Sousa e Narcisa Amália, fiquei estarrecido. Aí baixou Xangô, santo da justiça, e iniciei o trabalho em favor das mulheres poetas. E as pesquisas foram me mostrando que, nessa garimpagem, eu estava encontrando ouro puro.”
Diante de tal transbordamento, aviso aos navegantes que os nomes aqui mencionados são fruto quase do acaso, somado a um gosto muito particular. E que entre eles encontram-se os de poetas bem divulgadas, assim como de outras que se publicam principalmente pela internet – essa ferramenta mais que bem-vinda para a difusão de todas as artes.
Pois elas são muitas, e já começam a causar – como no caso recente da censura ao poema da baiana Lívia Natália, “por incitar preconceito e intolerância contra policiais militares”. Vencedora do edital do programa “Poesia nas Ruas” em Ilhéus, na Bahia, a professora do Instituto de Letras da UFBa teve seu poema retirado de um outdoor, em três dias, quando lá deveria estar por dois meses:
Quadrilha
Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés
escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.
Como Lívia, não faltam mulheres negras, muitas periféricas, produzindo poesia nesta quadra da vida brasileira. Desde Alzira Rufino, feminista e ativista do movimento negro nascida em Santos (SP) em 1949:
Resgate
Sou negra ponto final
Devolvo-me a identidade
Rasgo a minha certidão
Sou negra
Sem reticências
Sem vírgulas
Sem ausências
Sou negra balacobaco
Sou negra noite cansaço
Sou negra
Ponto final.
“Quando leio uma poeta mulher negra, geralmente escuto um grito. Um grito que fala de outros tempos e outras dores que se repetem ainda hoje”, diz Lubi Prates, poeta curitibana que edita a revista literária Parênteses. Também ela versa sobre violência policial, aquela que se abateu contra os professores no Paraná, em
até só restar o depois/ sobre o dia 29 de abril de 2015, em Curitiba
(…)
pudesse,
recordaria o cheiro
antes daquela tarde
quando tudo se confundiu a
gás
pólvora
sangue.
(…)
Os motes exprimem a diversidade das próprias poetas. Amor, tema universal tão a nosso gosto, é tratado com humor sarcástico, bem distante da “delicadeza feminina” com que os críticos gostavam de carimbar essa produção. Como faz a poeta mineira Aden Leonardo:
Coisa de mulher
Tenho meus pés caídos…
– você ainda extorquiu o dedo mínimo
Já não servia de nada, Amor!
Foi só para ferir… ou organizar
sua gaveta de conquistas
Ou força lírica, como a poeta capixaba Fabíola Mazzini Leone:
simplicidade
realejo
quanto mais te amo
mais te vejo.
Igualmente universal, a dor é tematizada com leveza quase zen pela poeta Solange Padilha, paraense radicada no Rio de Janeiro, neste poema sem título:
sinto a dor que morde
bato asas
asas batem ao vento
mordem a dor
sinto o vento bater asas
rumo ao norte
não há mais dor
Ou com humor cirúrgico, como a curitibana radicada em São Paulo Alice Ruiz, em poema musicado por Itamar Assunção:
Milágrimas
Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre
(…)
Profunda, humana dor, retratada pela poeta mineira Líria Porto:
nau frágil
esbarrou na dor
e para não naufragar
deixava pelo caminho
parte da carga
outro baque
partiu-se o casco
o capitão foi a pique
salvou-se o mar.
Tem também a morte, nos versos da poeta paulista Rita Moreira:
Eros e Tânatos
Tão doce a Voz que noite alta
às vezes me chama –
a desses mortos,
que um dia eu amei
na cama.
E a liberdade, cantada pela mineira Adriane Garcia:
Escolher
Há você
Um espaço
Para os passos
E uma porta
Não é por que
É uma porta
Que você tem que
Abri-la
Liberdade pode ser
Antes da porta.
Política é por certo assunto de mulher – como faz Bianca Velloso, gaúcha criada na ilha de Santa Catarina:
resistência
novembro de mil novecentos e setenta e nove
primavera no hemisfério sul
e era medo o que florescia
no jardim lá de casa
(…)
Mas é assunto principalmente das poetas negras, ao tratar de gênero e etnia. Como Alzira Rufino:
Resisto
De onde vem este medo? Sou
sem mistérios existo
Busco gestos de parecer
Atando os feitos que me contam
Grito de onde vem esta vergonha sobre mim?
Eu, mulher negra, resisto.
Ou com a crueza de Elizandra Souza, da periferia Sul de São Paulo:
Em Legítima Defesa
Estou avisando, vai mudar o placar…
Já estou vendo nos varais os testículos dos homens que não sabem se comportar
Lembra da cabeleireira que mataram outro dia,
… E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade…
(…)
Sem palavras proibidas, e com todas as letras, assegura Viviane Mosé, poeta capixaba que adotou o Rio de Janeiro:
Toda palavra
(…)
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida.
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.
Toda palavra é bem dita e bem vinda
(…)
Ou ainda como, irreverente, faz a gaúcha Angélica Freitas:
Às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
(…)
Coisas de mulher, recorda outra poeta capixaba radicada no Rio, Elisa Lucinda:
Aviso da lua que mestrua
Moço, cuidado com ela
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua…
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
(…)
Ou como, lembrando a imposição cultural de juventude e beleza às mulheres, dizem os versos da gaúcha Nilcéia Kremer:
Kamikaze
Uma mulher traz areia nas mãos
vento nas veias
e uma ampulheta implacável
tatuada na pele
(…)
Mas é sobre lavrar versos, este ofício mesmo da poesia, que elas falam, pra mim, mais bonito. Como Viviane Mosé:
Receita para lavar palavra suja
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza.
Por exemplo a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
(…)
Ou, como diz Ana Estaregui, nascida em Sorocaba (SP), nestes versos sem título:
anotou em seu moleskine a palavra laringe.
o poema, em geral, cresce em volta de uma palavra estranha.
às vezes nem tão estranha, mas que provoca uma pequena paralisia.
[e eu adoro ser flagrada por essas palavras]
elas interrompem o meu dia, param tudo mesmo.
de vez em quando, quando posso,
pego elas com as mãos
e aí desenho um espaço pra elas, feito de letras
Ou ainda como, tropicalizando com humor, diz a poeta paranaense Marilia Kubota:
Gaste tempo
(…)
bravo
você tem jeito
pra escrever versos
eu só finjo
minha ikebana
tem flor de banana
Poesia feminina?
Se existe ou não uma escritura feminina é tema de debate – e há controvérsias. “Se existe ignoro, o que percebo são características comuns reflexo das vivências do universo feminino que inevitavelmente se evidenciam em algumas escritas femininas. Mas uma tradição mesmo que se compare ao ‘landay’, por exemplo, que são dísticos de lírica amorosa compostas tradicionalmente por mulheres no Afeganistão, eu não vejo no Brasil”, considera Nilcéia Kremer. “As características variam de poeta pra poeta, claro, a vivência em um gênero traz determinado assunto vivido para a poesia de tal poeta, assim como quaisquer diferenças podem atuar no conteúdo que um poeta elabora, mas isso não é o que define a poesia de alguém”, concorda Adriane Garcia. Já Aden Leonardo tem uma visão diferente: “há uma grande tendência em dizer poesia feminina. Acho justo até. Universo feminino é diferente do masculino. Falar de ciclos, crianças, flores, comportamentos, sofrimentos ditos ‘femininos’ só cabe com tal ‘justeza’ às mulheres. E que mal há nisso? É lindo! Acho que é fácil saber um poema feminino… É um instinto passado a verso.”
Mas afinal, escrever por quê?
“Escrevo porque preciso criar uma voz para mim mesma. Escrevo porque a própria língua é um enigma como a vida. Escrevo para me comunicar. E nesse desejo de transformar palavras em argamassa ou tijolos, faço minha tentativa de construir e habitar um universo”, diz Solange Padilha.
É quase uma questão de vida ou morte, versa a paulista Nydia Bonetti:
existe quando canta
por isso canta
pra existir
e morre
quando cala
[cada vez mais difícil
ressuscitar]
De saúde ou doença, considera Viviane Mosé:
Receita para arrancar poemas presos
A maioria das doenças que as pessoas têm
São poemas presos.
Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras
calcificadas,
Poemas sem vazão.
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado.
Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema.
Mas não.
(…)
Intime-se, publique-se. Este o conselho de Ana Rüsche às mulheres para que saiam do armário – ou da gaveta. “Sim, aquela gaveta onde se guardam os originais, onde os contos dormem esquecidos e os poemas ficam silenciados, cheios de rabiscos incertos. A gaveta também pode ser aquela pasta perdida no computador, uns documentos de word com capítulos de um romance sempre por terminar. A gaveta, o inverso do livro, outra forma de espera.” Ana oferece ali um passo-a-passo para a autopublicação.
E há também as poucas editoras que, antenadas com os novos tempos, vêm publicando a produção feminina. Como a Patuá, cujo editor, Eduardo Lacerda, também poeta, procura equilibrar autores e autoras. A invisibilidade das poetas é histórica, cultural, mas as coisas estão mudando, diz ele, ao lembrar que os prêmios Jabuti de melhor romance e livro do ano foram concedidos, em 2015, a Maria Valéria Rezende, uma freira; que Micheliny Verunschk ganhou, pela Patuá, o Prêmio São Paulo de Literatura de melhor autora estreante acima de 40 anos e o de estreante abaixo de 40 anos foi concedido a Débora Ferraz. “São mulheres, e ainda nordestinas; pela lógica do mercado, isso não aconteceria.” Também o Jabuti de contos foi concedido à jovem carioca radicada em São Paulo Caroline Rodrigues.
“As mulheres estão tendo visibilidade cada vez maior. A questão feminista está hoje muita clara para as jovens, e isso faz com que a coisa vá mudando, às vezes na marra. Um sintoma é a diferença que vejo entre as alunas de Letras da USP de agora e de quando saí da faculdade, há 10 anos. Estão muito engajadas na luta feminista, e isso acaba mudando as coisas também na cultura e nas artes.”
É vasta, diversa e de qualidade a produção poética das mulheres brasileiras na atualidade. E embora cantem como cigarras, as poetas, bem formiguinhas, vêm trabalhando para fazer frente a esse panorama de desigualdade. Por exemplo: um grupo formado por onze delas, de sete estados (entre as quais Ana Rüsche, de São Paulo) está organizando um festival para mostrar a invisibilidade das poetas brasileiras, em três eventos: “Poesia dos anos 1990” (março), “Poesia dos anos 00” (maio) e “Poesia de hoje” (junho). Na programação, debates, leituras e oficinas, em locais que logo serão definidos. Outras Palavras dará a notícia.
Publicação Original: Mulheres poetas, vibrantes porém ignoradas