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Veja publicação original: Mulheres e o mercado de trabalho: a primeira barreira é a entrevista
Na sociedade machista em que vivemos, o mercado de trabalho pode ser nocivo às mulheres mesmo antes que ela conquiste sua inserção. O processo seletivo para uma vaga de emprego, e consequentemente a contratação, é mais difícil para as mulheres do que para os homens. E é possível afirmar isso com base, não só nas experiências individuais, como também cientificamente.
Um estudo divulgado em 2017 pela Universidade da Califórnia e pela Universidade do Sul da Califórnia revelou que elas são interrompidas durante entrevistas mais vezes do que os competidores do sexo masculino, o que pode causar estranheza, ansiedade e nervosismo nas entrevistadas. As mulheres costumam receber mais perguntas (em média, 17 para elas e 14 para os homens), as quais costumam ser intimidadoras e exigentes, as forçando a provar ainda mais sua capacitação. Já para os homens, quando são interrompidos, o interrogatório não é o mesmo. Pelo contrário: costumam ouvir algo “geralmente positivo e afirmativo”, segundo a pesquisa.
Diante deste cenário, superar a barreira da entrevista é uma vitória para as mulheres que buscam iniciar uma carreira, mas esta fase se apresenta cheia de medos e desafios, em vez de aprendizado e crescimento. Pensando nisso, a Think Olga elaborou este roteiro, em parceria com a ThoughtWorks Brasil, empresa de consultoria tecnológica que valoriza a contratação e o desenvolvimento de pessoas pertencentes a grupos minorizados. Listamos perguntas e práticas preconceituosas das empresas no processo de contratação que muitas vezes passam despercebidas, mas que representam desvantagem e desrespeito que não deveriam ser comuns ou aceitas pelas candidatas.
E, para explicar como agir diante de tais situações, contamos com a consultoria da advogada trabalhista Amarílis Costa, mestranda em Humanidades, Direito e outras Legitimidades pela FFLCH – USP, coordenadora Adjunta do Grupo de Estudos Ciências Criminais e Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e co-fundadora do projeto Preta e Acadêmica. Ela explica que, embora muitas empresas não sigam isso à risca, a decisão do entrevistador, do RH ou dos gerentes da empresa devem ser feitas mediantes somente às capacitações profissionais da candidata e não à questão de gênero, sexualidade ou raça. Inclusive, anexar fotos ou vídeos no currículo não é obrigatório – mesmo que por solicitação da empresa – porque a aparência física da candidata não pode ser um fator de avaliação na hora da seleção.
Tendo em mente que a conquista do trabalho é mais difícil para as mulheres, principalmente negras e transexuais, nossa proposta não é aconselhá-las a desistir de uma oportunidade ao primeiro sinal de preconceito. Mas sim como, justamente, identificá-los e agir contra eles de modo a garantir que esta barreira possa ser quebrada.
Além disso, ter uma entrevista segura e livre de preconceitos é um direito de todas.
“Por mais que não exista ainda uma relação de emprego estabelecida na entrevista, este ramo também é protegido pelo direito trabalhista e tem que obedecer a legislação”, finaliza Amarílis.
SEUS PLANOS DE ENGRAVIDAR NÃO SÃO DA CONTA DE NINGUÉM
Sim, a empresa precisa ser informada se a candidata tem uma doença que precisa ser tratada ou que a tornaria inapta para a função, mas não como critério de avaliação. Sendo assim, a questão sobre saúde não deverá surgir na entrevista de emprego. “A empresa pode precisar até de informações jurídicas na burocracia da contratação, como antecedentes criminais, por exemplo. Mas jamais perguntar diretamente para o candidato. Isso se confere em documentos e, em linhas gerais, não são questões pertinentes”, explica Amarílis.
Apesar disso, as perguntas feitas mais frequentemente para mulheres são sobre maternidade. Muitas empresas argumentam que precisam saber se as mulheres estão grávidas ou se desejam engravidar para avaliar questões como licença-maternidade. Ou ainda, se têm filhos e se a criação e saúde deles poderiam influenciar seus horários de trabalho. Mais uma vez, é importante lembrar que homens também têm filhos, mas a paternidade não fica no caminho da contratação da mesma maneira que a maternidade fica.
A intenção de maternidade não é algo que se possa prever em exames admissionais – a empresa não pode pedir atestado ou exame para comprovação de esterilidade ou gravidez na admissão. Além disso, perguntas sobre maternidade são consideradas pessoais, discriminatórias e proibidas, portanto você não é obrigada a responder.
SUA SEXUALIDADE NÃO MUDA O SEU DESEMPENHO
“Não influencia na capacitação da candidata. Não é de interesse da empresa. Não deve ser questionada”, Amarílis é direta sobre a questão, mas alerta que as empresas não deixam de “investigar” sobre a orientação sexual de suas candidatas, usando perguntas capciosas sobre hábitos e hobbies, onde a candidata pode deixar escapar suas companhias ou lugares que frequenta. Ainda que as respostas não digam mais sobre a sexualidade da mulher do que a própria afirmação dela diria, existe um julgamento lesbofóbico ou bifóbico envolvido.
Esta estratégia também é usada para descobrir costumes da candidata, como, por exemplo, se ela costuma beber ou frequentar baladas. Amarílis alerta que a resposta da mulher costuma ter mais peso e afetar a decisão de contratação. “Existe um julgamento de caráter e social atrelado a esta pergunta, geralmente atribuído ao sexo feminino”, argumenta.
Dentro do que são consideradas perguntas pessoais, estas questões são proibidas pela legislação do trabalho, mas raramente punem o recrutador, pois a empresa argumenta ter feito perguntas leves, para descontrair. De qualquer modo, você não é obrigada a dar detalhes pessoais sobre sua vida. É importante ter atenção a perguntas pessoais que podem parecer somente parte de uma conversa descontraída.
VOCÊ É LIVRE PARA TER A RELIGIÃO QUE VOCÊ ESCOLHER
Segundo a especialista, não há nenhuma necessidade de responder perguntas relacionadas a crenças, mesmo quando a empresa é ligada a instituições ou trabalhos religiosos. “Não se pode, em momento algum, questionar valores pessoais. E o primeiro deles é a fé”, destaca Amarílis.
Segundo dados da Secretaria dos Direitos Humanos (SDH), vinculada ao Ministério da Justiça, entre janeiro e setembro de 2016, foram registradas 300 denúncias de intolerância religiosa, pelo Disque 100. Um aumento de 105% na comparação com o ano anterior. Porém especialistas acreditam que o aumento poderia ser ainda maior, considerando que dados do ano inteiro não foram consolidados e que nem todos denunciam as agressões sofridas. E, como outros problemas sociais no Brasil, a intolerância religiosa pode chegar também às empresas e seus processos de seleção.
Pensando nisso, como candidata, é preciso desconfiar de perguntas relacionadas a símbolos religiosos, tais como turbantes, escapulários, colares de contas ou hijabs, por exemplo. Elas sugerem que não só a religião está sendo julgada, como também a influência dela na vestimenta da candidata – o que costuma acontecer principalmente com as mulheres. Perguntas mais diretas como “qual sua religião” ou “quantas vezes na semana você frequenta a igreja” também são vistas pela lei como práticas ruins.
Caso questionada, você pode recorrer ao seu direito de falar somente sobre suas capacitações durante a entrevista, respondendo com outra pergunta: “qual a importância dessa questão para o meu desempenho no trabalho?”
RACISMO É CRIME
Para além do gênero, o julgamento por aparência também é racista e elitista. Por isso, a entrada de uma mulher em uma empresa não pode, jamais, estar relacionada à sua disponibilidade de alisar o cabelo, por exemplo. “Existem alguns cargos e funções específicas que pedem algum tipo de alteração da imagem do empregado, como no setor da saúde, por exemplo. Porém, textura do cabelo, sendo algo natural da candidata, não cabe em tal exigência”, explica Amarílis.
E também nunca é suficiente destacar que a cor de sua pele não deve influenciar a escolha do avaliador e da instituição como um todo – isso porque, na prática, esta regra fundamental ainda não está sendo obedecida.
São recentes – em torno de 15 anos – as políticas públicas, como as cotas, que garantem a presença da população negra nas universidades brasileiras. E, embora existam resultados positivos, ainda há muito a percorrer até que exista igualdade nos meios acadêmicos e também, como uma extensão disso, no mercado de trabalho, como aponta a diretora executiva do Instituto ID_BR, parceiro da ThoughtWorks, Luana Genot: “O público negro, após essa inserção na universidade, não segue sendo absorvido proporcionalmente no mercado de trabalho, sobretudo no setor privado”. E essa tendência tem nome: racismo institucional.
Em 2016, uma campanha do Governo Estadual do Paraná viralizou por mostrar, de forma prática, como funciona o racismo institucional. Dois grupos de profissionais de RH foram expostos a um grupo diferente de imagens de pessoas em atividades do dia a dia. O primeiro grupo visualizou somente fotos de pessoas brancas, chutando que aqueles seriam gerentes, empreendedores e outros cargos de liderança. Já o segundo grupo visualizou as mesmas imagens, mas com protagonistas negros, e acreditou que eles fossem seguranças, empregadas domésticas e outras profissões comumente atribuídas a negros em um mercado de trabalho segregador.
De acordo com a Gerente Geral do Escritório de BH da ThoughtWorks Lisiane Rocha, mesmo quando a atribuição do cargo de uma pessoa negra, especialmente uma mulher negra, está clara, existe uma dúvida de capacidades, muitas vezes já na entrevista de emprego. “Em processos seletivos eu escuto com frequência que ‘essa pessoa precisará de apoio, não está pronta para exercer essa função e precisará de muito tempo para aprender’”, conta.
Ela percebe a questão de raça institucionalizada neste tipo de pensamento, quando pessoas brancas expõem, durante a entrevista, suas possíveis dificuldades na atuação daquela vaga. “Fica aparente para mim quando observo outros processos seletivos onde candidatos brancos trazem os mesmos pontos de desenvolvimento, mas isso é tratado como “grande potencial de aprendizado”, observa Lisiane.
Em casos de racismo em entrevistas de emprego, existe a possibilidade do avaliador ou empresa serem apenados em outras esferas que não só a trabalhista, já que racismo é crime no Brasil. Amarílis incentiva a denúncia, mas alerta que a candidata poderá encontrar dificuldades se não tiver provas. “Denunciar racismo no Brasil já é difícil e em caso de entrevistas, muitas vezes, não há testemunhas”.
NÃO HÁ LUGAR PARA TRANSFOBIA
O mercado de trabalho para pessoas transexuais e travestis é tão escasso que não há dados estatísticos de quantas estão, atualmente, trabalhando no mercado formal. Contudo, sabe-se que a inclusão é urgente, pela situação de marginalidade social a que são submetidas e também considerando que 90% da população trans brasileira está na prostituição, de acordo com a estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Segundo a analista de sistemas na ThoughtWorks Brasil e membro do Grupo dos Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS) Daniela Andrade, mesmo algumas empresas que se dispõem a contratar pessoas trans não conseguem atendê-las já no processo de recrutamento, uma vez que possuem pouco ou nenhum preparo sobre como lidar com documentação, além de nenhum controle sobre perguntas ofensivas e pessoais. “É muito comum ser perguntada sobre sua genitália ou sobre cirurgias de mudança de sexo”, relata Daniela.
De acordo com Amarílis, tais perguntas são transfóbicas e inaceitáveis em uma entrevista. “O tratamento de pessoas trans tem que ser alinhado com determinações de dignidade, então é amplamente inadmissível a exposição e a objetivação dessas pessoas”.
Infelizmente, enquanto ainda existem muitos constrangimentos, há poucas informações e proteção legal para pessoas trans. “Muitas mulheres trans nem sabem que podem enviar currículos com o nome que escolheram. Não é permitido na legislação trabalhista, mas também não é proibido. É nessas brechas que encontramos espaço para ocupar com as nossas identidades”, explica Daniela.
Quando se é uma mulher trans, há ainda a barreira de gênero, já abordada aqui. Daniela fez um experimento que demonstra como a questão de gênero as afeta diretamente. Ela enviou, para as mesmas empresas, currículos assinados com seu nome de registro (masculino) e outros com seu nome social (feminino) e recebeu muito mais respostas com chamados para entrevistas com a primeira assinatura.
Apesar do cenário alarmante, que só pode ser resolvido com muita consciência por parte dos setores privado e legislativo, Amarílis traz uma visão positiva para o futuro das mulheres trans no mercado de trabalho: “A área jurídica também costuma trabalhar com a questão do costume. Se espera e se imagina que questões já pautadas e incluídas em ambientes educacionais, por exemplo, sejam aplicadas também pelas empresas”.
DEFICIÊNCIA NÃO DETERMINA APTIDÃO
Em se tratando de direitos trabalhistas para pessoas com deficiência, pode-se notar um cenário mais avançado quando os comparamos com outros grupos minorizados, como pessoas negras e transsexuais. Existe uma lei específica de cotas de contratação de pessoas com deficiência nas empresas dos setores público e privado. A Lei N° 8.213, de 1991 garante que a empresa com 100 ou mais funcionários está obrigada a preencher seus cargos da seguinte forma:
– até 200 funcionários = 2% de cargos para pessoas com deficiência.
– de 201 a 500 funcionários = 3% de cargos para pessoas com deficiência.
– de 501 a 1000 funcionários = 4% de cargos para pessoas com deficiência.
– de 1001 em diante funcionários = 5% de cargos para pessoas com deficiência.
Contudo, a analista de recursos humanos e recrutadora na ThoughtWorks Aneliz Silva, afirma que é preciso ficar atenta na maneira com que as empresas tratam o recrutamento de pessoas com deficiência. Muitas podem estar interessadas somente em preencher a obrigatoriedade das cotas, mas não em incluir ou adaptar suas instalações. “É possível perceber isso quando se aplica para uma vaga que não é dirigida para pessoas com deficiências. As empresas, muitas vezes, não têm nem mesmo a instalação necessárias para receber você”, explica Aneliz dividindo experiências que teve em função da própria deficiência.
Ela explica que, em função das cotas, a deficiência não afasta a candidata da oportunidade, mas a entrevista pode ser constrangedora quando o recrutador não está avisado e, principalmente, preparado para o atendimento. “O que se espera pela lei, é que todas as empresas tenham acessibilidade e a possibilidade de contratação diversa, do contrário, há discriminação”, diz.
Amarílis confirma e destaca que, mesmo no telefone para agendar a entrevista, muitas perguntas podem ser evitadas. “Existe a necessidade da empresa instrumentalizar o processo seletivo da pessoa com deficiência de maneira a não constranger o candidato. Quando a empresa precisa de alguma informação relacionada a locomoção, essas perguntas podem ser feitas em formulários. O ideal é que a empresa esteja preparada para contratar a pessoa que tenha a aptidão técnica, independente da característica física”.
Sendo assim, desconfie de perguntas feitas diretamente e, principalmente, as que colocam em teste a capacidade física da candidata de chegar ao local e utilizar as instalações da empresa. Na verdade, o contrário que deveria acontecer: como pessoa com deficiência, é importante questionar a empresa sobre esta acessibilidade como a ONU apontou, não são as pessoas deficientes, mas sim os ambientes que não estão preparados para recebê-las.
Por fim, entendemos que chegar à etapa final de um processo seletivo nesse mercado de trabalho cheio de fundamentos preconceituosos não é tarefa fácil para mulheres. Em pleno 2017, provar-se capaz não é suficiente. Ainda é necessário esconder nossa essência e nos sujeitamos a violências de diversas naturezas. Mas com informação e consciência, uma entrevista de cada vez, poderemos mudar esta realidade. Ao nos educarmos, educamos também a sociedade. Ao conquistarmos espaço, podemos trazer outras mulheres com a gente.
Arte: Ojima Abalaka.
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