Saiu no site INSTITUTO GELEDÉS:
Veja publicação original: Meu sonho é ser imortal
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Por Ana Paula Lisboa
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Em 120 anos, nenhuma mulher negra ocupou uma cadeira na ABL. Nenhuma.
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A biblioteca da Escola Municipal Soares Pereira, onde estudei da quinta à oitava série (sei que já não se diz assim, mas prefiro ser old school), ficava aberta nos recreios e nunca precisávamos fazer silêncio. Era um lugar para jogadores de xadrez e dama, leitores de revistas da Turma da Mônica ou qualquer um que não quisesse suar no pátio nos verões. Também era o reduto dos hipsters — que na época não tinham esse nome —, um pessoal que já se acha intelectual demais, mesmo aos 13 anos.
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Eu era uma dessas pessoas, confesso.
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Na verdade, foi nessa época que descobri que poderia ocupar vários espaços, que não precisava me prender à mesma turma de amigos o tempo todo ou só estar perto dos que tivessem a mesma vivência que eu. Havia dias em que eu pulava corda com os alunos da quinta série, em outros eu lia Clarice Lispector com as meninas da oitava. Era eu colocando em prática os ensinamentos do meu pai: “você pode ser o que você quiser”.
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Assim, um dia eu descobri uma instituição chamada Academia Brasileira de Letras e por volta dos 14 anos decidi que seria uma imortal. Provavelmente meu primeiro encanto veio pelo título dado aos membros, imortal parecia tão grande que certamente caberia em mim. Depois, eu amava aquela roupa verde e dourada, a possibilidade de se encontrar para conversar sobre literatura enquanto se bebia um chá, e, o mais importante, os imortais recebiam uma espada! Na minha cabeça era só mais uma turma com quem andar no recreio e o martelar da voz do meu pai: “você pode ser o que você quiser”! Do alto do meu ego adolescente, pensava que a única coisa que me impediria de ser uma imortal seria a juventude, mas, enquanto a maturidade e a idade não viessem, o plano era escrever, escrever e escrever.
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Essa história me voltou à memória quando soube da campanha por Conceição Evaristo na ABL. Há quem diga que Conceição não precisa da ABL, e eu concordo em parte. A parte em que concordo é porque ela não precisa mesmo, eles é que precisam dela. A parte em que discordo é a voz do pai dizendo “você pode ser o que você quiser” ou, como disse a escritora: “se é um direito, quero concorrer”.
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Uma petição pública na internet já tem mais de 20 mil assinaturas, mas o que era pra ser um ato de apoio e força — tudo de que uma mulher negra precisa pra seguir em espaços que dizem não ser para ela — foi encarado pelos membros da ABL como “pressão” e, segundo os próprios, eles não estão acostumados a fazer as coisas assim.
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Eu acho impressionante como a branquitude não está acostumada a sentir isso que as pessoas pretas sentem todos os dias desde que nascem: pressão.
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Eu poderia citar muitas coisas íntimas e afetivas sobre a obra da Conceição Evaristo, porque só a sua “escrevivência” já seria motivo suficiente para que ela fosse eleita, mas vou seguir na objetividade: ela é formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Publicou mais de seis livros e recebeu o Prêmio Jabuti na categoria contos por “Olhos d’água”. Em 2017 recebeu também o Prêmio Claudia e foi tema de exposição no Itaú Cultural.
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A escritora pleiteia a cadeira de número 7: o número de Deus, e ela, que é uma Deusa, não merece nada menos do que isso. É uma benção ler Conceição. Mas a benção maior é ouvi-la aos 71 anos, abraçá-la, cheirá-la, ser sua contemporânea neste cosmo. É divino tê-la encontrado em meio a mais de 7 bilhões de pessoas e sei lá quantos bilhões de escritores. É uma dádiva ler uma escritora do seu tamanho e importância ainda vida. Então que não façamos como fizemos com Lima — há choro e ranger de dentes na injustiça que foi o seu não reconhecimento e sua cadeira.
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Em 120 anos da instituição fundada por Machado de Assis, um homem negro que tentam a todo custo embranquecer, nenhuma mulher negra ocupou uma cadeira na ABL. Nenhuma. E, como disse, não é que ela precise, mas eu quero ver mulher preta em todos os clubes, Conceição andando com todo e qualquer grupo neste recreio que é a vida. A gente quer publicar no Cadernos Negros, mas no Segundo Caderno também.
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Outro dia, num jantar na casa de uma amiga angolana, encontrei “A mão e a luva” e “Dom Casmurro” em sua biblioteca. Dom Casmurro estava em inglês e quase chorei ao ler na primeira página “One night not long ago, as I was coming from the city to Engenho Novo…”
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A primeira vez em que li “Dom Casmurro” eu havia acabado de me mudar para o Engenho Novo e odiava. Eu tinha 11 anos, e todos os meus amigos moravam na Tijuca, eu precisei explicar a minha mudança de bairro para um bairro que ninguém conhecia, que não tinha nenhuma referência e nenhuma importância no imaginário carioca. Até que Machado me apresentou o seu Engenho Novo, e eu passei a andar pelas ruas imaginando em qual casa o personagem teria morado. Entendem o valor e o tamanho da representação do nome de um bairro na primeira linha do livro do maior escritor brasileiro, em sua maior obra, na cabeça de uma criança?
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Agora tentem imaginar uma mulher negra vestida com um fardão verde e dourado.
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Quanto a mim, perdi a vontade de ser imortal quando soube que as mulheres não recebiam espadas.
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