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Veja publicação original. Medo e trabalho dobrado: a rotina de professora de volta à aula presencial.
A professora Jéssica*, de 30 anos, costuma rezar nos momentos de estresse e ansiedade.
Nos últimos dias, rezar foi uma forma de lidar com as notícias e imagens dos caixões empilhados em sua cidade, Manaus (AM), capital de um estado onde 108 mil casos de contaminação por coronavírus haviam sido registrados até metade de agosto. Os mortos passam de 3.000.
Desde o primeiro dia de quarentena, em 16 de março, ela se trancou em casa com os pais, ambos com 60 anos, em um apartamento da zona sul da cidade. “Mal descia para as áreas comuns, que permaneciam fechadas. Tentei cumprir a quarentena a fio. Meu pai é hipertenso e minha mãe tem câncer”, conta Jéssica, que dá aulas de inglês para alunos do ensino médio em uma escola pública e para o ensino fundamental 1 (quarto e quinto anos) em outra particular.
“Sempre fui muito ativa. Corria, dava aulas particulares à noite. Tudo isso foi por água abaixo. Tive muitos momentos de ansiedade. Não conseguir dormir, o cérebro ficava a mil e eu tentava me distrair assistindo séries a noite toda. Tento organizar o guarda-roupa, arrumar os cantos da casa que estavam bagunçados, revi álbuns de fotografias”, relembra.
Jéssica começou a dar aulas online e só saía de casa para ir ao supermercado, sempre sozinha. Levava máscaras, às vezes, luva. Chegava em casa, colocava a roupa num saco e ia direto para a lavanderia higienizar todos os produtos.
Com tantos cuidados, voltar à sala de aula não estava nos planos dela quando recebeu a notícia sobre a autorização da reabertura das escolas privadas da região. “Foi muito precipitado. Eu pensava: como vamos voltar nessa situação? Será que fiquei quatro meses em casa em vão?.
Não teve conversa. Jéssica voltou a pisar numa sala de aula no dia 20 de julho. Professores estariam imunes. Mas e os alunos?
Na véspera, por causa da apreensão, teve insônia e dormiu no máximo três horas. Quando o despertador tocou, depois que o sono venceu por cansaço, ela teve de correr para não se atrasar. Não teve tempo de rezar. As orações diárias foram substituídas por um econômico: “ok, vamos lá”.
Oito, de uma turma de 22 alunos, compareceram ao primeiro dia de aula após a quarentena. Naquela escola os alunos foram divididos em três grupos. O grupo A ia para as aulas presenciais às segundas e quartas. A turma B, às terças e quintas. A C era formada por alunos que optaram por seguir apenas com as aulas online. “Muitos pais ainda se sentem inseguros para mandar os filhos para a escola.”
A escola, disse ela, tomou muitas medidas de proteção. Disponibilizou testes de covid-19 para professores —o dela deu negativo—, sinalizou os ambientes e espalhou álcool em gel nos pontos estratégicos. Essa era uma exigência dos pais, que, em sua maioria, não queriam o retorno tão cedo das aulas. Com as medidas, a escola chegou a ser citada no jornal local como modelo.
Ainda assim, o medo ainda era frequente. “O corpo docente estaria imune, mas não sabemos a realidade dos alunos, se contraíram ou não, se têm coletores, se estão assintomáticos.”
Quando estava mais tranquila com aquela rotina, outra notícia voltou a causar apreensão. Em 10 de agosto, as aulas presenciais deveriam ser retomadas na outra escola, a estadual. O roteiro da véspera foi parecido, e ela acordou assustada, após um sono breve numa noite de insônia, com o despertador.
Latifúndio para proliferação do vírus Lá encontrou uma outra realidade, com alunos sonolentos e dispersos, como se tivessem jogado a toalha e dessem o ano letivo como perdido. Muitos não puderam ficar em isolamento. Vídeos para as aulas online foram disponibilizados pelo governo, mas poucos, sem wi-fi ou estrutura em casa, conseguiram acessar.
Pelas redes, começaram a surgir imagens de salas de aula sem janelas ou ventilação, um verdadeiro latifúndio para a proliferação do vírus.
“Estamos totalmente expostos ali. Estou fazendo de tudo para nem manusear o caderno. O material de higienização que o governo dá é o mínimo. Nossa preocupação é se vai ter o básico por muito tempo, como álcool em gel e sabão.”
Naquele ambiente, tudo era agravado por um elemento novo: o luto.
Na escola pública, em salas com no máximo sete alunos após a retomada, era comum ouvir relatos de quem havia perdido amigos ou familiares para a covid-19.