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“Me humilhava”: SC tem oito denúncias de violência psicológica contra mulheres por dia

Saiu no site NSC TOTAL

 

Em 2023, foram registradas 3.201 denúncias de violência psicológica no Estado; para especialistas, sinais “silenciosos” dificultam denúncias e trazem inúmeros abalos emocionais às vítimas

No ano anterior, eram cinco denúncias por dia (Foto: Design de Ciliane Pereira sobre foto de Patrick Rodrigues, NSC Total)

Um ato silencioso que deixa marcas profundas, impacta a autoestima e isola a vítima. Os danos que a violência psicológica pode causar em uma mulher são inúmeros dentro de um relacionamento tóxico e abusivo. No entanto, a identificação dos sinais e a visibilidade sobre o tema têm auxiliado milhares de pessoas a identificarem e denunciarem situações que, por muitas vezes, são invisíveis.

 

Em 2023, foram registradas 3.201 denúncias de violência psicológica em Santa Catarina, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2024. Ou seja, a cada dia, oito denúncias são feitas. O número é 57,2% maior do que o contabilizado no ano anterior, quando foram  2.036 denúncias, sendo cinco a cada novo dia.

 

Entre os estados brasileiros, SC é o quarto que mais registrou denúncias contra a violência psicológica no ano passado, ficando atrás de Roraima (5.578), Rio Grande do Sul (5.074) e Amazonas (3.562). Enquanto isso, a unidade federativa que teve menos ocorrências registradas foi Rondônia, com 40. Não há registros na Bahia, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e São Paulo.

 

Ana Paula Nunes Chaves, advogada especialista em direitos das mulheres, destaca que o crescimento das denúncias no Estado não ocorre porque as ocorrências de violência aumentaram, mas sim porque as mulheres aprenderam a identificar os sinais.

— Temos percebido que as mulheres têm entendido essa violência, por isso o aumento da denúncia. Por muito tempo foi naturalizado esse tipo de comportamento nesses relacionamentos, principalmente a questão do controle e a fala para diminuir a autoestima da mulher — explica.

Foi esse tipo de comportamento que ex-o companheiro de Letícia* adotou durante os sete anos de relacionamento. Ela tinha cerca de 19 anos quando iniciou o namoro com o homem, que era três anos mais velho.

As violências foram escalando aos poucos, conta Letícia. No início, as atitudes eram mais sutis e a paixão não permitia que ela visse muitos dos sinais. Na época, a jovem acreditava que algumas coisas faziam parte da personalidade do namorado, que era algo normal.

 

— Depois de um tempo eu notei que ele me fazia sentir inferior. Qualquer briga que a gente tivesse ele me humilhava sutilmente. Eram atitudes de controle, querer regular o que eu fazia, o que eu deixava de fazer. Se eu não respondesse [mensagens] rápido ou demorasse na casa de parentes ou amigos, ele já se alterava. […] Naquela época, eu achei que era porque ele era assim, só que depois as coisas foram ficando um pouco mais complicadas — lembra Letícia.

“Fazia você se sentir um lixo”

O ciclo de humilhação cresceu no período em que Letícia adoeceu. O companheiro fazia com que ela se sentisse inferior, afirmava que ninguém mais gostava ou ficaria com ela. Nas palavras de Letícia, “fazia você se sentir um lixo.”

Foto: Design de Ciliane Pereira, NSC Total)

 

As agressões psicológicas ultrapassaram a vida íntima do casal. A jovem conta que o companheiro costumava a humilhar em público, gritava com ela na frente de outras pessoas e iniciava brigas enquanto ela se mantinha calada.

Quando a jovem ainda enfrentava problemas de saúde e estava internada em uma unidade hospitalar, o então namorado contou que a tinha traído. Além da saúde fragilizada e a ferida aberta pela quebra de confiança, houve também a manipulação.

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— Ele tinha me traído porque eu não era mulher para ele, que a culpa era minha da traição, que o que ele não tinha em casa ele ia pegar na rua. E ele fez isso dentro da minha casa, comigo internada. […] Eu fiquei em choque, estava muito fragilizada, mas foi uma violência. E, assim, eu não digo nem da traição, mas das coisas que ele falou para justificar o que ele tinha feito, me culpando o tempo todo — conta em meio às lágrimas e soluços, efeitos da lembrança dolorosa que foi o relacionamento.

O grau das violências começou a escalar cada vez mais. O homem impunha a humilhação e o isolamento à namorada. Começou a ditar quais eram as amizades que ela poderia manter, quem deveria bloquear nas redes sociais ou deixar de ver. Foi nesse momento que a jovem percebeu que estava em perigo.

— Foi o dia que eu senti mais medo. Além da violência psicológica, ele me ameaçava. Ele ameaçou que ia colocar fogo nas coisas em casa, que colocaria fogo até em mim. E  aí eu acordei, sabe? E quando ele me prensou na parede, a minha reação foi só grudar na garganta dele e afastá-lo, e gritar com ele, falando “cara, você vai me bater? É isso mesmo?”. Eu expulsei ele do quarto e tranquei a porta. Eu estava com muito medo de que ele fizesse alguma coisa. E ali, eu pensei: “eu não posso mais deixar ele fazer isso comigo, eu não consigo mais, eu não mereço isso” — lembra.

Foram sete anos até que a jovem, agora com 26 anos, percebesse o relacionamento abusivo e a violência psicológica. Apesar dos sinais, que hoje parecem claros, durante o tempo que ficaram juntos Letícia teve dificuldades para identificar as agressões sofridas.

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— Hoje eu percebo que praticamente desde o começo eu sofri violência psicológica. […] Muitas vezes eu já tentei terminar o relacionamento porque eu sabia que, lá no fundo, não era saudável, mas eu não conseguia porque ele sempre mudava minha cabeça, seja para sentir dó dele ou eu me sentir culpada, me sentir um lixo — diz Letícia.

Para a jovem, o fato da vítima ficar imersa naquela relação e normalizar as atitudes, cria uma dependência emocional e, por isso, é difícil dar um basta. Porém, alerta outras mulheres de que, depois, a sensação que fica é a de liberdade.

— Às vezes, a gente não sabe como sair ou acha que não tem como, mas sempre tem uma saída. Hoje, eu sinto um alívio enorme de ele não estar na minha vida. Foi a melhor decisão que tomei. Hoje eu estou bem e feliz, sei exatamente o que não aceitar de ninguém nunca mais — diz.

Como identificar um “monstro invisível”?

Letícia saiu da relação sem marcas visíveis da violência sofrida. Porém, a mente e o coração, assim como o de milhares de mulheres, acabam marcados pelas palavras, insultos, ameaças e o controle exercido.

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São poucas as pessoas que percebem quem são as vítimas desse tipo de violência, já que elas não deixam marcas visíveis no corpo. Inclusive, muitas das mulheres que sofrem essa violência demoram a reconhecer que tais atitudes são agressivas, justamente por não ser uma violência palpável.

— Todos conseguem, sem muita dificuldade, identificar a violência física, pois ela geralmente deixa marcas visíveis, mas a violência psicológica é lenta e gradual, vai se estabelecendo na relação através de, inicialmente, pequenos detalhes, como o controle, posse e diminuição da autoestima com críticas que no início começam de forma leve e vão se acentuando à medida em que a pessoa alvo da violência vai ficando cada vez mais vulnerável — cita a mestre e doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Andréia Isabel Giacomozzi.

Ainda assim, há sinais que podem ser percebidos. Conforme a pesquisadora, o Ministério da Saúde define a violência psicológica como toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa, o que inclui:

  • Ameaças
  • Humilhações
  • Chantagem
  • Cobranças de comportamento
  • Discriminação
  • Exploração
  • Crítica pelo desempenho sexual
  • Não deixar a pessoa sair de casa
  • Provocar o isolamento de amigos e familiares
  • Impedir que ela utilize o seu próprio dinheiro.

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Ana Paula Nunes Chaves, advogada especialista em direitos das mulheres, destaca que não existe um padrão para a violência psicológica. Os homens adotam diferentes comportamentos para minar a autoestima da mulher, fazê-las se sentirem inferiores, incapazes e desvalorizadas com o intuito de isolá-las e terem controle sobre elas.

Um dos casos atendidos pela advogada, por exemplo, a vítima era ridicularizada pelo companheiro por conta do timbre da voz, o qual ele dizia que era infantilizado. Em outra situação, o marido não permitia que a mulher saísse de casa, chegando até mesmo a sujar o chão para que ela limpasse, se atrasasse e cancelasse o compromisso.

A delegada e coordenadora das Delegacias Especializadas no Atendimento de Crianças, Adolescentes, Mulheres e Idosos (DPCAMI) de Santa Catarina, Patrícia Zimmermann D’Ávila, também cita os casos em que os homens ditam a aparência e controlam até a alimentação da vítima.

— Daqui a pouco a menina está usando a roupa que ele autoriza, [mesmo] se sentindo horrível,  não come mais o que gosta, não sai mais com as amigas porque ele não deixa. Está isolada do mundo, se apagando. Isso é um sinal muito claro da violência psicológica — exemplifica.

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Ainda conforme a psicóloga Andréia Isabel Giacomozzi, a agressão psicológica é a modalidade de violência mais difícil de ser identificada, apesar de ser bastante frequente. Por isso, ela facilita as chances da vítima adoecer mentalmente com a situação.

—  Pode levar a pessoa a se sentir desvalorizada, sofrer de ansiedade e adoecer com facilidade, situações que se arrastam durante muito tempo e, se agravadas, podem levar a pessoa a provocar suicídio — explica.

O que fazer depois de identificar a violência

A advogada Ana Paula Nunes Chaves indica que, após a mulher identificar a violência, procure uma rede de apoio junto aos familiares e amigos, que podem fornecer suporte emocional e prático. Também é importante reunir provas, fazer a denúncia, além de buscar apoio psicológico e de uma advogada.

Ela pontua que a reunião de provas é importante pois demonstra como ocorreram as violências. A vítima pode salvar mensagens ou gravar conversas com conteúdos humilhantes ou xingamentos, que visam a proibição e isolamento.

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Além disso, Ana Paula cita que é importante estabelecer limites e deixar claro para o companheiro que determinadas atitudes não são aceitáveis, já que, em muitos casos, o agressor acredita que aquelas ações são normais e estão corretas.

O pós da violência psicológica

A mestre e doutora em Psicologia pela UFSC Andréia Isabel Giacomozzi lembra que a violência psicológica deixa marcas profundas na vítima, que se sente cada vez mais impotente. Isto dificulta as formas como ela se coloca no mundo, seja como mulher, profissional, mãe ou amiga.

— Será necessário um processo de psicoterapia, seja individual ou em grupos reflexivos para mulheres vítimas de violência, como o Projeto Espelhos, por exemplo, para que ela possa identificar, entender, refletir e ressignificar as violências vividas e possa seguir adiante. Enquanto esse processo não for realizado, ela corre o risco de repetir a dinâmica das relações violentas, buscando o mesmo padrão de parceiro e mantendo o mesmo padrão de submissão — destaca.

Realizar a denúncia contra o agressor também é um passo importante. A mulher pode registrar um boletim de ocorrência, que servirá como um histórico daquele homem, assim como pedir medida protetiva. Posteriormente, o caso pode ser encaminhado para um processo criminal a partir da representação da vítima ou do próprio órgão de segurança, conforme o crime tipificado no Artigo 147-B do Código Penal. A pena pode variar de seis meses a dois anos de prisão, além do pagamento de multa.

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Serviços disponíveis

Para conseguir acolher todas as feridas das mulheres que sofreram violências, as forças de segurança disponibilizam uma série de serviços dedicados às vítimas. Entre elas as Salas Lilás ou as DPCAMIs, que são espaços e delegacias especializadas no atendimento à mulher, com policiais psicólogos, preparados para receber as demandas específicas deste público.

A delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila, coordenadora das DPCAMIs de Santa Catarina, também destaca o serviço da Delegacia Virtual, onde a mulher pode pedir uma medida protetiva 24 horas por dia. Ela  enfatiza que as violências sempre existiram, mas que diante da ampliação dos canais de denúncia e o reconhecimento das mulheres sobre as formas de violência, os registros têm aumentado, conforme indica o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

— Por isso que a gente tem estatísticas mais altas do que outros estados. Quando você tem uma estrutura de estado, como Santa Catarina tem, trabalhando nessa proteção, os crimes como a violência psicológica e a ameaça, vão aumentar — finaliza.

Conscientizando a sociedade

Para a advogada Ana Paula Nunes Chaves, que atua em defesa das mulheres, é importante trabalhar na prevenção e educar a sociedade como um todo.

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— Trabalhar como sociedade integrada, tanto as mulheres para o próprio conhecimento quanto com os homens. Todos nós temos que refletir sobre os nossos relacionamentos, como a gente cria os filhos, para que criem relações de igualdade e respeito — aponta.

Entre as iniciativas existentes em Santa Catarina está o “Projeto Espelhos”, que conta com acordo interinstitucional entre a UFSC, o poder judiciário de SC e a prefeitura municipal de Florianópolis. Segundo a mestre e doutora em Psicologia Andréia Isabel Giacomozzi, em um ano, mais de 160 mulheres vítimas de violência foram atendidas de forma online e presencial, sempre gratuitamente.

O objetivo é empoderar as mulheres para que elas possam identificar padrões abusivos, assumir relações mais saudáveis, lutar pela igualdade de gênero e diminuir a violência contra as mulheres, para estas mulheres e para as futuras gerações.

Como denunciar a violência contra a mulher

  • Realizar a chamada ao 190 e conversar como se estivesse realizando um pedido de delivery é uma forma útil de pedir socorro;
  • Qualquer cidadão pode fazer denúncias através da Central de Atendimento à Mulher, pelo número telefônico 180. As delegacias especializadas não são direcionadas a tratar apenas destes tipos penais, permitindo um socorro de forma mais ampla;
  • Por meio da Delegacia Virtual da Polícia Civil;
  • Disque Denúncia 181 (aceita denúncia anônima) ou (48) 98844-0011 (WhatsApp/Telegram).

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*Letícia é um nome fictício para preservar a identidade da vítima.

— Hoje eu percebo que praticamente desde o começo eu sofri violência psicológica. […] Muitas vezes eu já tentei terminar o relacionamento porque eu sabia que, lá no fundo, não era saudável, mas eu não conseguia porque ele sempre mudava minha cabeça, seja para sentir dó dele ou eu me sentir culpada, me sentir um lixo — diz Letícia.

Para a jovem, o fato da vítima ficar imersa naquela relação e normalizar as atitudes, cria uma dependência emocional e, por isso, é difícil dar um basta. Porém, alerta outras mulheres de que, depois, a sensação que fica é a de liberdade.

— Às vezes, a gente não sabe como sair ou acha que não tem como, mas sempre tem uma saída. Hoje, eu sinto um alívio enorme de ele não estar na minha vida. Foi a melhor decisão que tomei. Hoje eu estou bem e feliz, sei exatamente o que não aceitar de ninguém nunca mais — diz.

Como identificar um “monstro invisível”?

Letícia saiu da relação sem marcas visíveis da violência sofrida. Porém, a mente e o coração, assim como o de milhares de mulheres, acabam marcados pelas palavras, insultos, ameaças e o controle exercido.

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