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Marie Claire passou um fim de semana em um acampamento sem-terra feminista

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:

 

Veja publicação original: Marie Claire passou um fim de semana em um acampamento sem-terra feminista

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Por Luiza Karam

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Com nome bíblico, o primeiro acampamento sem-terra feminista do país não para de crescer no interior de São Paulo. Liderado por duas mulheres, uma
cis e outra trans, reúne hoje 1.130 famílias. Com regras duras, homens que batem em mulheres são expulsos e mães solteiras têm prioridade no acesso
à moradia. Marie Claire passou um fim de semana nessa ocupação matriarcal para entender como se organizam militantes brancas, negras, héteros e LGBT em busca de um direito fundamental – o da moradia para todos

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O sol está a pino sobre nossas cabeças suadas, à medida que eu e o fotógrafo tentamos nos equilibrar pelo sobe e desce das ruas de terra, cheias de buracos, pedras e mato. Chegamos à Terra Prometida, uma ocupação apartidária em Mauá, município do Grande ABC paulista, numa manhã de sábado de março. “Se chover por esses dias, você vai ver o que é sujeira de verdade”, ri de mim uma moradora, enquanto bato a terra da calça antes de entrar no lote 11. Samara Arkcelio, 33, a anfitriã, nos recebe com o sorriso e a voz suaves que são sua marca, as mechas loiras presas num coque e a calça justa de plush rosa-choque combinando com a parede da casa. Nos acomodamos na sala, onde também funciona seu salão de beleza – os móveis são estrategicamente suspensos por pedaços de tijolo para que a água da chuva não estrague tudo. Samara tinge, penteia e corta o cabelo das vizinhas quando encontra uma brecha na agenda concorrida: durante o dia, divide-se entre a atuação como modelo e atriz (está no ar no seriado online Mulheres em Série, que discute questões de gênero e sexualidade e é transmitido pelo YouTube); à noite, cursa o ensino médio. Também é vice­­­-presidente (“presidenta”, como fala) da ONG Atravessa (Associação das Travestis e Transexuais de Santo André). Ela mesma uma mulher trans expulsa aos 14 anos de casa, em Várzea Alegre, no Ceará, trabalha para que outros jovens encontrem acolhimento e informação.

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Samara Arkcelio: trans, branca,  exemplo e a liderança do acampamento  (Foto: João Bertholini)

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Não só o engajamento social mas também a facilidade com que aprendeu a lidar com burocracias levaram Samara a assumir a administração da Terra Prometida, apesar dos preconceitos. “Já teve discussão em que me chamaram de ‘viado’, gritaram comigo. Eu não abaixo a cabeça. Quem mora aqui também deve isso a mim”, diz. Das brigas entre vizinhos à solução de problemas de ordem maior, como falta d’água ou questões jurídicas do terreno, Samara está sempre a postos. “Tenho condição de morar em outro lugar, de rua asfaltada, com esgoto, que não junte tanta poeira nem perrengue. Mas não quero. Aqui é todo mundo ajudando todo mundo a criar uma comunidade do zero. E de verdade.” Até pouco tempo, dividia a casa com o ex-marido. Depois de três anos de relacionamento, ele foi viver com ela – e levou a mãe. Samara, inclusive, construiu uma casinha ao lado da sua para a sogra. “Mas deu errado. Ela era muito religiosa, não me aceitava.” Hoje, tem um namorico com um rapaz da ocupação – ele também de família evangélica. “Mas nada ainda muito sério”, conta.

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Juliane Cristina:  cis, negra, exemplo e a liderança do acampamento  (Foto: João Bertholini)

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Uma vila imaginária

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Fundada em meados de 2014, a Terra Prometida abrange dois bairros de Mauá, região metropolitana de São Paulo, com 140 mil metros quadrados. Vivem ali 1.130 famílias. Tudo começou do jeito como começam as invasões de terra no Brasil: moradores da região que viviam de aluguel ou na rua notaram que havia tempos ninguém dava o ar da graça por ali e montaram acampamento. (Àquela altura, não se sabia quem era, legalmente, o dono do terreno.) Quem abriu os trabalhos foram crianças. Com linha de pipa, brincavam de demarcar o espaço de “suas casinhas” no terreno abandonado. Fundaram uma vila imaginária. Só no terceiro dia os adultos entraram na roda. Olharam o tamanho daquilo e do vazio que ecoava e tiveram o clique: por que não ocupar de verdade? A resposta: faltava uma liderança que se incumbisse da divisão justa dos lotes – e de peitar a polícia, o governo e o que mais aparecesse pelo caminho. Enquanto homens discutiam a respeito, o marido de Juliane Cristina, moradora da região que dividia com ele e quatro filhos um barraco de um cômodo com risco de desabamento, deixou os colegas matutando no terreno e foi buscá-la em casa. “Eu tenho coragem”, Juliane anunciou ao chegar.

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A parte que falta

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Embora o direito à moradia seja garantido pela Constituição, o cálculo do déficit habitacional brasileiro aponta uma carência de 6 milhões de domicílios. Mas nem por isso Juliane quis envolver a Terra Prometida com movimentos já consolidados, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que luta pela reforma agrária, e sua versão urbana, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). A ideia era criar algo novo e apartidário.

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Marie Claire encontrou a presidente da ocupação dando ordens a um grupo de homens no meio do mato, onde até junho quer liberar mais 130 lotes. Assim como fez nos idos de 2014, antes de essas famílias se alojarem, ela organizará o cadastro de todos: terão de entregar cópias dos documentos, fotos, carteira de vacinação das crianças e matrícula escolar – tudo devidamente guardado nas gavetas de um arquivo de metal cinza.

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A evangélica Bruna Santos, 22: “Viver aqui me faz ver que existe lugar pra todo mundo, como gays e trans. e me sinto respeitada” (Foto: João Bertholini)

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Aos 29 anos, mãe de seis filhos, quando toma a palavra, Juliane empunha a voz com a mesma firmeza com que estufa o peito e se faz crescer além do 1,57 metros altura que compartilha com o marido, um comerciante boliviano silencioso que se declara ciumento da esposa. Juliane costuma postar selfies apaixonadas do casal nas redes sociais. Cabe a ela a palavra final de todo o funcionamento da ocupação. Seu WhatsApp apita sem parar, com mensagens de moradores. Cinco anos atrás, já havia feito parte de uma invasão de sem-terra, mas que acabou em reintegração de posse. Estava grávida e, mesmo assim, foi agredida e tratada com desprezo pelas autoridades – não gosta de lembrar do assunto. Quando assumiu a Terra Prometida, quatro anos atrás, Juliane sabia um pouco do manejo – e, sobretudo, da importância de se cercar de companheiros leais. “A Samara conheço há anos. Teve um tempo em que trabalhávamos no mesmo prédio da República [Centro de São Paulo]; eu era cafetina, ela fazia programa”, conta.

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Elas são o movimento

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Com 70% de mulheres, a população da Terra Prometida tem princípios próprios. Como num verdadeiro matriarcado, a autoridade feminina prevalece: homens que agridem mulheres são expulsos da comunidade, e a educação das crianças é regra – se o filho não estuda, a mulher não pode se cadastrar na moradia. Aquelas que vivem só com seus filhos têm prioridade para escolher terreno e receber doações. “Sempre fui sozinha. Vejo as mulheres tomando o lugar dos homens lá fora e aqui. A gente é mais guerreira, sabe conviver com as diferenças e reunir todo mundo pra fazer algo bom”, acredita Vanessa Aparecida Pereira, 34, auxiliar de limpeza e mãe solteira de sete filhos, moradora há três anos.

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Com chão de terra batida, a Terra Prometida ainda tem estrutura precária: rede elétrica clandestina, falta de água e saneamento básico (Foto: João Bertholini)

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Outra característica da ocupação é a diversidade. Nos dois dias que passamos ali, encontrei vários transgêneros e homossexuais – em especial, casais de lésbicas. Natalia Aparecida, 22, saiu da casa da irmã, em outro bairro de Mauá, para ir morar com a namorada, Jully Barros, 25, há nove meses. “Minha família não aceitava. Agora, a gente mora junto. Preconceito a gente sofre em qualquer lugar, mas aqui tenho mais respeito.” “A gente é feminista”, afirma Jully.

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Letícia Souza Silva, 37, transexual moradora da Terra Prometida desde  a sua fundação (Foto: João Bertholini)

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Do outro lado, Bruna Santos, 22, é evangélica fervorosa e estudiosa da Bíblia. Funcionária de um call center, sonha em ser esteticista. Vivia em Diadema e há dois anos se mudou para a ocupação, onde se sente em casa. “Não consigo olhar pra Samara e enxergar um homem, por exemplo. Ou pra qualquer outra trans ou gay e não respeitar. Do mesmo jeito, sinto que as pessoas me respeitam por eu seguir minha religião. Viver aqui me ajuda a ver que existe muita diversidade. E lugar pra todo mundo.”

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Tenho condição de morar em outro lugar, em casa com rua asfaltada. Mas não quero. Aqui todo mundo ajuda a criar uma comunidade do zero”
Samara Arkcelio, 33 anos, administradora da ocupação
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Promessa é dívida

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Na manhã de domingo, chegamos atrasados ao evento das 8 horas, quando Juliane capitanearia a limpeza da mata para abrir espaço para os novos terrenos da ocupação. Na noite anterior, uma festa com funk, arrocha e cerveja invadiu a madrugada – diferentemente de assentamentos do MTST, não há toque de recolher na Terra Prometida.

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Após poucas horas de sono, passei a manhã com Katia Vasconcelos, 34, que mora ali desde o início, construiu sua casa com as próprias mãos e é braço direito de Samara e Juliane. “Sempre falo para minha filha [Natalie, 12]: estude, pois conhecimento ninguém tira da gente, tenha as suas coisas e batalhe para ser feliz. Para mim, só falta ter a minha casa. Não vejo a hora de pagar IPTU”, diz.

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A parede rosa-choque da casa de Samara (Foto: João Bertholini)
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O casal Natalia, 22, e Jully, 25: elas foram viver na ocupação para fugir do preconceito da família e lá se descobriram feministas (Foto: João Bertholini)
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A ocupação ainda se sustenta por rede elétrica puxada de gatos na rua e, no que diz respeito ao esgoto, possui aquilo que eufemisticamente se chama de falta de acesso a saneamento básico. A escassez de água é recorrente. Toda semana, chegam doações de roupas, eletrodomésticos e até alimentos. No ano passado, um político da região disse que era dono do terreno – o que fez Juliane e Samara arregaçarem as mangas para saber a verdade. Depois de muita pesquisa e algumas pistas dos proprietários reais, embarcaram numa viagem de quatro dias até o Paraná – e lá descobriram que um dos dois sócios estava morto. Agora, tentam na Justiça agilizar o processo para a compra do terreno do outro, que segue desaparecido. Por enquanto, a terra ainda não passa de uma promessa. Mas o legado feminino que construíram já é uma realidade.
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