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Legítima defesa da honra da vítima: um avanço histórico da justiça brasileira

Saiu no site CORREIO BRAZILIENSE

 

Não é incomum que essas mães, profissionais, filhas, irmãs, amigas sejam mortas duas vezes. Um assassinato do corpo e outro de sua história

A sentença também não pode levar em conta o passado sexual da vítima quando fixar a pena do agressor ou feminicida – (crédito: Maurenilson Freire)

Vítimas de violência, feminicídio ou outros tipos de agressões, as mulheres, muitas vezes, são mais julgadas que seus algozes. A roupa, a conduta, o número de parceiros, as relações pessoais, os cuidados com os filhos, os hábitos… tudo entra em cena quando elas são as vítimas.

Não é incomum que essas mães, profissionais, filhas, irmãs, amigas sejam mortas duas vezes. Um assassinato do corpo e outro de sua história.

 

Em maio, uma importante decisão unânime do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) avançou na proteção da biografia dessas mulheres. Os ministros concluíram que é inconstitucional a prática de questionar a vida sexual ou os hábitos da vítima na apuração e no julgamento de crimes de violência contra mulheres. Se os advogados insistirem nessa conduta, o processo deve ser anulado. O STF apontou que esse tipo de defesa do réu ou investigado perpetua a violência de gênero e vitimiza duplamente a mulher.

O juiz que permitir tal postura pode ser responsabilizado administrativa e penalmente. A sentença também não pode levar em conta o passado sexual da vítima quando fixar a pena do agressor ou feminicida. O entendimento foi firmado em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1107 proposta pela Procuradoria-Geral da República em que se discutiu a prática de desqualificar mulheres vítimas. Levou-se em conta que é comum que, nesses processos, os acusados, advogados, policiais, testemunhas, membros do Ministério Público e juízes façam perguntas ou considerações sobre o comportamento e os modos de vida da vítima.

Segundo o STF, na apuração ou em juízo, surgem perguntas como o tipo de roupa que a mulher usava, se bebia álcool, se era virgem ou com quem se relacionava. De acordo com a ação, essa prática é uma discriminação contra a mulher, pois tenta justificar o crime a partir do comportamento da vítima e dá a entender que a própria mulher teria culpa pela violência sofrida. A PGR, então, pediu que o STF proibisse essa prática.

 

Nada mais emblemático que a relatora do caso fosse a única mulher no plenário do STF, a ministra Cármen Lúcia. A magistrada ressaltou que, apesar dos avanços na legislação brasileira em relação às mulheres, essas condutas ainda são reproduzidas na sociedade.

Em março de 2021, o plenário do STF já havia decidido, também por unanimidade, que a tese da “legítima defesa da honra” viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e da igualdade de gênero. Por isso, este argumento não pode ser usado em nenhuma fase do processo penal nem durante o julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade.

 

 

O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, ressaltou que o Supremo tem dado a contribuição possível “para enfrentar uma sociedade patriarcal e de machismo estrutural, que se manifesta na linguagem, nas atitudes e nas diferenças no mercado de trabalho”.

Ao julgar o recente processo sobre a vida pregressa da vítima, o ministro Alexandre de Moraes ressaltou: “É lamentável que, terminando o primeiro quarto do século XXI, nós ainda tenhamos esse machismo estrutural, inclusive em audiência perante o Poder Judiciário”. O magistrado acrescentou: “E não há possibilidade de tratar isso com meias medidas. É importante que o Supremo Tribunal Federal demonstre que não vai tolerar mais isso”.

 

 

Por mais que o crime de legítima defesa da honra não seja aceito há décadas, muitos jurados ainda se impressionam quando os advogados de réus apresentam dados relacionados à vida da vítima. Há relatos de penas atenuadas em situações em que a mulher tinha um amante ou não se enquadrava nos padrões exigidos pela sociedade conservadora.

Para o promotor de Justiça Daniel Bernoulli, que atua no Tribunal do Júri do Paranoá, a decisão pode mudar as práticas da defesa. “Considero uma evolução em termos de crimes praticados contra a mulher. Em pleno 2024, é inadmissível que uma defesa tente desviar o foco da discussão jurídica ou penal para um viés de julgamento da vítima do sexo feminino, buscando algum sucesso na demanda”, avalia.

Experiente em atuar na promotoria de casos de feminicídio, Bernoulli acrescenta: “É uma questão de cultura. Imagino que a decisão do Supremo também sirva para nortear comportamentos dos atores do Direito. Em um primeiro momento, será preciso o alerta do juiz, mas acredito que, com o tempo, a própria defesa irá buscar novas formas de garantir o direito de seu cliente sem necessariamente precisar desonrar a mulher vítima do crime”.

A tese unânime na ADPF 1107 foi: “é inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais (CF, arts. 1º, III; 3º, I e IV; 5º, caput eI; 226, § 5º)”.

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