Saiu no site MULHERES TRANSFORMADORAS
Veja publicação original: Joana D’Arc Félix de Souza, a cientista brasileira premiada que inspira alunas a seguirem seus passos
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“Sou de família pobre, de Franca. Meu pai trabalhava num curtume e minha mãe era empregada doméstica. Vi nos estudos o caminho para vencer e realizar meus sonhos”. É dessa forma, simples e direta, que Joana D’Arc Félix, PhD em Harvard e professora no interior de São Paulo, resume sua trajetória de vida. A brasileira, que superou a fome e o preconceito, soma mais de 80 prêmio na carreira, entre eles o de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de 2014, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim), e dezenas de patentes registradas, mas considera as jovens cientistas formadas com a sua ajuda, suas maiores conquistas.
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Reduzi o abismo entre os alunos e a universidade. Dos 40 jovens que já orientei, 32 estão hoje em universidades continuando suas pesquisas e oito seguiram para o mercado de trabalho”, comemora.
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Desde 2004, Joana é professora da área de Química e Sustentabilidade e coordena o curso técnico de curtimento na Escola Agrícola de Franca (Etec Prof. Camerlino Correa Júnior). Ela incentiva jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social a seguir o caminho da iniciação científica e se engajar em pesquisa de ponta. Muitos de seus orientandos trocaram o tráfico de drogas e a prostituição pelos estudos.
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Quando começou a trabalhar na escola, a professora tinha acabado de concluir seu pós-doutorado em Harvard, nos Estados Unidos, uma das universidades mais prestigiadas do mundo. Encontrou um ambiente hostil com muita violência e evasão escolar. Mas foi ali que descobriu a vocação de transformar vidas usando a ciência para levar jovens a criar, inovar, desenvolver autoestima e autonomia.
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A Ciência está de braços abertos para qualquer pessoa. O investimento em educação científica desde a infância é a chave para a construção de uma sociedade democrática, economicamente produtiva, mais humana e sustentável. É o caminho para um mundo melhor”, afirma Joana.
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Agora é que são elas
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Cerca de 80% das orientandas de Joana são mulheres, índice que contrasta com a escassez da presença feminina na área de exatas do Brasil. Um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostrou que apenas 20% dos projetos de pesquisa da área de exatas financiados pelo governo são de mulheres. No mundo, o quadro não é tão diferente: apenas 28% dos pesquisadores são do sexo feminino, segundo a Unesco.
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A gente precisa motivar essas meninas, especialmente as que estão em condição de vulnerabilidade social. Muitas delas são desencorajadas pela própria família, outras engravidam e não voltam mais para a escola”, analisa Joana D’Arc.
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Além de motivação, a inspiração pode incentivar o aumento de representatividade na área. Aos 14 anos, Havilla de Matos assistiu a uma reportagem sobre Joana. A jovem sempre quis ser engenheira e, aos 22 anos, descobriu que a cientista seria sua professora no curso técnico de Meio Ambiente. “Quando a vi na sala, chorei de emoção. Estar diante de um ídolo é surreal!”, relata.
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Depois de ser premiada com um projeto de redução de toxidade de resíduos da indústria de curtume, a jovem e seu grupo se preparam para apresentar o trabalho no México, em julho.
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Nunca esteve na minha imaginação representar o Brasil numa feira internacional, mas estou aprendendo que barreiras e limites são criados por nós mesmos”, conclui Havilla.
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Início difícil
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A professora é um exemplo dessas barreiras. Desde muito cedo, Joana descobriu que seria difícil viver em um país como o Brasil. E o estudo sempre foi uma válvula de escape. Caçula de três irmãos, aprendeu a ler com a mãe, aos três anos de idade, para ter uma ocupação enquanto a mãe limpava as casas onde trabalhava. A patroa da mãe ficou surpresa ao ver a menina com um jornal na mão e pediu para a pequena ler um trecho. Impressionada, propôs que Joana frequentasse a escola por uma semana. Se ela acompanhasse o ritmo, ganharia a vaga.
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E deu certo. Eu comecei a 1ª série do primário, atual ensino fundamental, com 4 anos. Aos 14 já estava completando o ensino médio. Minha mãe, que estudou apenas até a 4ª série, foi minha primeira professora”, conta Joana.
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Ao longo da formação escolar, sofreu com vários episódios de preconceito e exclusão devido à sua origem e por ser negra. As salas no ensino médio eram divididas por renda; na A ficavam os mais ricos, ela ficou na F. Foi após um desses episódios de rejeição que decidiu ouvir os conselhos do pai: “Meu pai me disse que não era para eu deixar o preconceito limitar meus sonhos. Estude para ser a primeira aluna da turma, ele me dizia”. E foi o que ela fez, tirou as melhores notas da sala e viveu cercada de livros. Na época, ela tinha o sonho de ser igual aos trabalhadores que via todos os dias onde morava e onde o pai trabalhou por 40 anos. “Minha ambição de infância era ser química para vestir jaleco branco e trabalhar no curtume”, revela.
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A dura rotina de estudos se estendia até às 23h, sem final de semana. Aos 14 anos veio a recompensa: passou no curso de química nas três universidades que prestou vestibular – USP, Unesp e Unicamp, onde escolheu seguir a carreira acadêmica. “No segundo semestre, consegui uma bolsa de iniciação científica e foi a grande transformação da minha vida. Com o dinheiro da bolsa, eu pagava minha moradia, comprava comida e ainda mandava um pouquinho para que minha mãe diminuísse o ritmo de trabalho”, enumera.
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Após a graduação, seguiu com o mestrado e com o doutorado. Estimulada por professores a seguir na vida acadêmica e encantada pelo campo de pesquisa, Joana ainda concluiria mestrado e doutorado em Campinas – este último com apenas 24 anos. Um dos artigos da cientista saiu no Journal of American Chemical Society, e logo ela recebeu o convite para seguir os estudos nos Estados Unidos. O pós-doutorado de Joana foi concluído na Universidade de Harvard. Um professor solicitou que ela aplicasse em seu trabalho um problema brasileiro, e ela optou pelos resíduos de curtume nas fábricas de calçados – desenvolveu a partir destas substâncias poluentes um fertilizante organomineral.
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Quando cheguei aos Estados Unidos, pensei que era ali que eu queria ficar para sempre”, conta.
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Mas não foi o que o destino reservou a Joana. A irmã e o pai faleceram, com a diferença de um mês, e a mãe ficou sozinha e doente, com os netos para criar. Joana largou tudo para voltar à cidade natal e cuidar da mãe e dos sobrinhos.
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Ciência que transforma
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De volta ao Brasil, Joana prestou concurso para lecionar na Escola Agrícola de Franca, localizada na mesma cidade em que nasceu. O que encontrou não era o que esperava. Uma noite, ligou para seu orientador nos Estados Unidos buscando apoio e coragem para sair logo dali.
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Fiquei reclamando de tudo, que a escola era péssima, que nem laboratório tinha, que os alunos não queriam saber de nada. Quando terminei, ele me disse: ‘Joana, deixa de ser preguiçosa. Não é porque você estudou em Harvard que você precisa trabalhar no melhor centro de pesquisa. Mude a realidade dessa escola, faça com que ela seja conhecida no mundo inteiro’. Aquelas palavras me bateram fundo e no dia seguinte eu já queria mudar tudo”, conta Joana.
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Como professora do curso técnico de curtimento, pleiteou bolsas de pesquisa para alunos e começou a pensar em projetos que estimulassem os jovens com uma nova estratégia de ensino e aprendizagem, voltada para a criatividade, inovação e empreendedorismo. “Desenvolvi uma metodologia na qual os alunos podem montar um mini curtume em casa, que não exige muito espaço e não gera resíduos tóxicos, já que substituí todos os produtos químicos por restos de frutas e vegetais. Assim, muitos alunos se tornaram empreendedores e envolveram toda a família nos negócios”, orgulha-se Joana.
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A Joana mudou a minha vida”, afirma Ângela Ferreira de Oliveira, de 22 anos, orientada pela professora desde os 15. A jovem conta que é filha mais velha de nove irmãos, a mãe é doméstica e o pai trabalha em curtume. “Aos olhos da sociedade, eu seria mais uma sem perspectiva. Só que a Joana enxergou meu potencial e me ajudou a superar todas as barreiras”, afirma.
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Ângela já segue passos semelhantes de Joana: ganhou mais de cinco prêmios nacionais com uma pesquisa sobre pele artificial para transplantes e testes farmacológicos, e ficou em 4º lugar na GENIUS Olympiad, em Oswego, nos Estados Unidos. Hoje está cursando o 3º ano de química na Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
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Diversidade e sustentabilidade
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Entre as patentes registradas, há de pele humana e gengiva artificiais a cimento ósseo. As pesquisas surgem de problemas trazidos pelos estudantes. A ideia da gengiva artificial veio quando um parente de uma aluna perdeu parte da boca em um acidente de trânsito. A pele humana artificial foi criada após professora e alunos verem um funcionário do curtume de Franca, onde são realizadas as aulas práticas do curso, derrubar um balde de ácido sulfúrico e sofrer queimaduras em 95% do corpo.
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Existem tecnologias nos Estados Unidos e na Europa para criar a pele artificial, mas são muito caras. Desenvolvemos uma pele a partir do couro do porco”, revela a professora.
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Todos os produtos criados no laboratório têm como base resíduos industriais, a maior parte do setor calçadista, principal atividade de Franca. “A cidade gera, por dia, 218 toneladas de lixo industrial”, diz. Foi a partir desses resíduos que Joana desenvolveu também, junto dos seus alunos, um colágeno para o tratamento de osteoporose e osteoartrite, um cimento especial feito com o lodo descartado pelos curtumes e até um sistema de filtragem de água usando escamas de peixes. Tudo devidamente patenteado. “Como a aprovação de uma patente, no Brasil, demora quase uma década, a gente parte para a internacional, que sai em dois anos e meio, no máximo”, afirma Joana.
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Em dezembro, Joana participou de um congresso da Organização Mundial da Propriedade Intelectual na sede da ONU, em Genebra. Uma realidade muito distante da estudante universitária que tinha apenas uma refeição por dia, o almoço no bandejão da universidade. Para Joana, porém, a maior recompensa vem no dia a dia.
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Alguns jovens estavam no caminho errado, mas fazendo a iniciação científica encontraram um rumo. Eles tomam gosto pela pesquisa. Muitos pais vieram me agradecer, e isso é muito gratificante dentro da escola básica”, diz ela, antes de concluir: “as armas mais poderosas que temos para vencer na vida são a educação e o estudo”.
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Da Revista Pazes com informações da Folha e do Uol
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