Saiu no site HUFFPOST:
Veja publicação original: Helen Fernandes, a engenheira que quebrou a internet com suas tatuagens ‘malfeitonas’
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O controverso artista visual americano Jean-Michel Basquiat costumava dizer que, apesar de não parecer, ele sabia desenhar. Só que ele fazia questão de fugir ao máximo disso. Helen Fernandes, por sua vez, teima veemente que não sabe desenhar de jeito nenhum – apesar de acumular quase 50 mil seguidores em seu perfil de trabalho como tatuadora no Instagram, sob a alcunha de Malfeitona.
Se você perambulou pela World Wide Web no ano passado, deve ter se esbarrado em alguma das suas tatuagens “peba“, que no dialeto soteropolitano quer dizer fuleiro, ordinário, de qualidade duvidosa. Nos mais diversos sites de notícias possíveis que veicularam os desenhos, o teor das matérias era o mesmo: como alguém, em sã consciência, optava por marcar de maneira vitalícia um original “Malfeitona” na pele?
“Eu sei fazer desenho técnico, perspectiva expandida, com régua. Mas o que é, no senso comum, saber desenhar? É, basicamente, saber fazer desenho realistas – e isso eu não sei fazer.”
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Aos que fugiram as aulas de estética, em 1955, o teórico de comunicação Walter Benjaminjá dizia que, em todas as épocas, a arte jamais foi autônoma e sempre esteve sob o domínio de valores exteriores – como os da religião, por exemplo. Portanto, a chamada “aura” da obra de arte, na verdade, jamais existiu e não passa da “intrusão de uma força exógena decidida a penetrar no campo da arte para melhor subjugar o mundo”. A perda dessa suposta aura não significa o desaparecimento da obra de arte mas, ao contrário, sua existência verdadeira.
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“Eu sei fazer desenho técnico, perspectiva expandida, com régua. Mas o que é, no senso comum, saber desenhar? É, basicamente, saber fazer desenho realistas, e isso eu não sei fazer”, conta Helen Fernandes, ao receber a reportagem do HuffPost Brasil em sua casa e também “ateliê”. Então, sem comentários de hater, por favor, vamos à história da nossa 69ª entrevistada.
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Helen tem 27 anos, nasceu em Salvador, cresceu no bairro do Engenho Velho de Brotas e passou a adolescência em Brotas – o que, para a informação daqueles não baianos, significa um up no quesito morar bem. Foi criada sob um regime de estudos rígido dos pais, que tiveram que ralar muito para conseguir manter as duas filhas em colégios particulares. Ao não passar de primeira no vestibular de medicina, ficou de castigo por seis meses. “Fiquei sem telefone, sem receber amigos em casa, sem sair, sem computador, sem poder ler qualquer livro que não fosse do cursinho”.
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“A área da engenharia é muito misógina – na minha turma, por exemplo, só tinha eu de mulher –, e na indústria é muito mais. Aí eu falei: não quero mais essa vida.”
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Se “retou”, desistiu da medicina, mas continuou optando por algo “seguro” que, em teoria, lhe garantiria emprego assim que se formasse: engenharia mecânica. Antes de estagiar na área – em uma empresa de ar-condicionado e numa termoelétrica –, trabalhou em shopping centers e deu aula de reforço para colegas e vizinhos. Ah, entre outras coisas, ela também passou seis meses na Áustria, traduzindo para o português do Brasil um software para a Petrobras..
Ao voltar para o País, se encontrou na pesquisa acadêmica. “Eu comecei a pesquisar porque estava cansada de só trabalhar e estudar. E, nossa, gostei muito. A área da engenharia é muito misógina – na minha formatura, por exemplo, só tinha eu de mulher –, e na indústria é muito mais. Aí eu falei: não quero mais essa vida”. Foi se debruçar então sob um biocensor de análise da degradação de óleos e, mais recentemente, desenvolve uma patente a qual não pode revelar nada sobre: “eu tenho que assinar uns papéis de confidencialidade a cada fim de reunião (risos). Só posso falar que é na área da saúde”.
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Antes de entrarmos no quesito tattoo, vale a pena ressaltar um traço da personalidade de Helen crucial para o início dela nessa arte: ela sempre foi, em suas palavras, muambeira. Frequentava muito o centro de Salvador, locais onde o comércio informal pulsa, como a Av. Sete de Setembro e a Barroquinha. “Comprava brinco, bijuteria por R$ 0,80 e vendia para as meninas do meu colégio por 12 reais. Comprava ingressos de shows nos primeiros lotes e vendia quando o preço subia. Fazia parte de um fã-clube do J. R. R. Tolkien – fui uma das fundadoras do Conselho Branco –, comprava coisa do Senhor dos Anéis no AliExpress e revendia”.
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“Nunca me preocupei com a estética do desenho, sobre o quão perfeito ele estava, porque, em tese, não era a minha área. Sempre foi um hobby, então eu nunca me cobrei de estar perfeito, só ia me jogando.”
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Em março do ano passado, quando começou a tatuar, o produto que revendia era, justamente, equipamentos de tatuagem. Percebeu que as opções nas lojas do gênero na capital baiana eram escassas, então comprava na internet milhares de opções e avisava aos amigos tatuadores que se precisassem era só chamar. Ela ressalta que o negócio em si não deu muito certo, mas foi o seu ponto de entrada no mundo das agulhas.
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Helen sempre desenhou. Rabiscava histórias em quadrinhos para a irmã, customizava camisas, cadernos, fazia colagens e tirinhas nos trabalhos de escola… tudo sempre num estilo cômico, de cartum. “Nunca me preocupei com a estética do desenho, sobre o quão perfeito ele estava, porque, em tese, não era a minha área. Sempre foi um hobby, então eu nunca me cobrei de estar perfeito, só ia me jogando”, conta.
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“Eu falei para ele levar em algum profissional para tatuar e ele me perguntou: por que você mesma não tatua? Como ele já tinha várias tatuagens, não ia se importar se ficasse muito ruim, então eu tatuei.”
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O namorado, Matheus, foi um dos presenteados com os rabiscos da garota. E decidiu que queria porque queria eternizar o “Morceguinho” na pele. Helen, por acaso ou destino, tinha todo o equipamento necessário em casa: agulha, tinta, tudo. “Eu falei para ele levar em algum profissional para tatuar e ele me perguntou: por que você mesma não tatua? Como ele já tinha várias tatuagens, não ia se importar se ficasse muito ruim, então eu tatuei”. Depois dele, outros amigos que também tinham um desenho da engenheira para chamar de seu fizeram o mesmo pedido. Em seguida, amigos de amigos também se interessaram pela coisa.
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Decidiu, então, criar um perfil no Instagram para compartilhar as obras com seu ciclo de amizade, mas não demorou muito tempo até a Malfeitona estourar: uma matéria num site nacional foi o suficiente para o seu número de seguidores saltar de 300 para 10 mil em dois dias. Sobre o processo criativo, ela garante que é aleatório: bichinhos, em geral, e pedidos de cliente. “As pessoas me fazem pedido muito doidos e específicos. Um menino, por exemplo, me falou que queria um tatu com nariz vermelho fazendo hangloose, puxando um carrinho com um Papai Noel em cima. Outro me pediu uma pizza nocauteada que ele viu num sonho que teve. Outra me pediu uma porta vermelha, aberta em determinado ângulo, num prédio branco, com o nome de várias pessoas com as quais ele morou junto. As pessoas são bem criativas”.
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“Apareceu muito hater, eu fiquei chocada. Eu normalmente não ligo para o que as pessoas pensam. Só que quando as críticas aparecem em um volume muito grande, é bem problemático.”
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O número de clientes aumentou, ela parou de tatuar em casa e seguiu para um estúdio. Só que com a repercussão do trabalho, vieram também os comentários desagradáveis acerca de seu estilo. “Apareceu muito hater, eu fiquei chocada. Eu normalmente não ligo para o que as pessoas pensam. Se for a minha mãe ou uma amiga, eu fico abalada, mas gente de fora eu ligo zero. Só que quando as críticas aparecem em um volume muito grande, é bem problemático”.
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Sem falar nos tatuadores, que alegavam que a artista estava “destruindo a arte” – “o que eu não liguei muito porque o meu trabalho não compete com o deles, não faz sentido nenhum” –, a militância feminista também se manifestou de maneira contrária a Helen. “Teve gente fazendo textão, falando que eu era branca, privilegiada, que tinha conseguido tudo muito fácil. Eu fui expulsa de um grupo de tatuadoras baianas no Facebook porque elas diziam que elas demoraram para se estabelecer eu manchava o nome do Nordeste na tatuagem… eu fiquei bem abalada, mas passou. Agora quase não tem hater. Inclusive a maioria das pessoas que se tatuam comigo são artistas, ilustradores fodas – que nem eu entendo o porquê tatuam comigo (risos).
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“Eu vendo uma coisa que, em tese, não tem valor. Só que eu consigo agregar esse valor pela forma com a qual ele é vendido.”
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A marca Malfeitona se expandiu além dos riscos em gente e agora tem lojinha online na qual Helen comercializa camisetas e adesivos com seus desenhos estampados. O site, com direito a estrelinha no cursor do mouse, parece te teletransportar para os tempos áureos da internet nos anos 2000, quando o Orkut, o Fotolog e a fonte Comic Sans reinavam absolutos. O destaque fica nos textos descritivos dos produtos que, irreverentes, honestos e bem-humorados, dão uma pista da razão do sucesso da tatuadora. “Eu vendo uma coisa que, em tese, não tem valor. Só que eu consigo agregar esse valor pela forma com a qual ele é vendido”.
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Sobre o que os pais cricri pensam da arte da filha, segue o relato: “contanto que eu me sustente, eles tão de boa (risos). Eles ficaram impressionados no início, minha mãe dizia que as pessoas eram loucas – mas agora tá até cogitando tatuar um flamingo comigo. Meu pai e ela usam as camisetas com a minha estampa, fazem propaganda”. Parafraseando a própria, em sua biografia no Instagram:,*~DeUs EsCreVe CeRtO pOr LiNhAs ToRtAs~*.
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Ficha Técnica #TodoDiaDelas
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Texto: Clara Rellstab
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Imagem: Juh Almeida
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Edição: Andréa Martinelli
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Figurino: C&A
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Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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