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Há espaço para profissionais transexuais no mercado de trabalho?

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Maria Fernanda foi a primeira funcionária trans da GE no Brasil: ‘Percebi a valorização em um mercado em crise, algo inimaginável’.

Por: Ana Beatriz Rosa Repórter de Vozes, Mulheres e Notícias, HuffPost Brasil

 

“Deixei para trás minhas questões de gênero e encontrei um lugar. Percebi a valorização em um mercado em crise, algo inimaginável para uma pessoa trans.”

 

Esta é parte da trajetória de Maria Fernanda Hashimoto, engenheira biomédica na multinacional de tecnologia em saúde Becton Dickinson (BD). Em um País em que 90% das mulheres trans precisam se prostituir como forma de sobrevivência, Fernanda é inspiração e, ao mesmo tempo, uma dura exceção.

 

Aos 24 anos, ela passou pelo processo de transição de gênero por não se identificar com aquele designado no seu nascimento. “Planejei minha vida inteira esperando por esse momento”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil.

Desde os 4 anos, ao se olhar no espelho, ela conta que simplesmente sentia-se mulher. “Eu me olhava no espelho e via uma garota”, lembra. “Sempre tive aparência andrógina e, com a chegada da internet, comecei a ter acesso a artigos sobre transexualidade. Eram poucas informações sobre terapias hormonais, cirurgias de redesignação sexual e fatores psicológicos decisivos para o diagnóstico da disforia de gênero. Mas mesmo limitado, isso foi uma imensa luz no fim do túnel para mim. Permitiu que eu entendesse pelo o que eu passava e ter noção do que viria pela frente”.

A tomada de consciência da realidade em que vivia não foi fácil para a engenheira. Juntou-se a pouca informação com a falta de compreensão da família para que Hashimoto se obrigasse a viver sem se reconhecer no próprio corpo por grande parte de sua vida. Encarar a transição começou a se tornar uma possibilidade, mas o medo de se tornar estatística da violência, já que o Brasil é o País que mais mata transsexuais do mundo, ainda pesava na decisão.

Foi então que o apoio veio de um dos ambientes mais improváveis: a empresa em que trabalhava.

Em julho de 2015, resolvi falar sobre a minha situação com o meu gerente na General Eletric (GE). Fui preparada para pedir demissão e jogar o meu diploma fora. Minha surpresa veio justamente do apoio inesperado. Saber que a empresa iria me ajudar facilitou as coisas em casa. Meus pais entenderam a situação e decidiram entrar na luta também. Percebi que era possível conciliar a minha carreira com a felicidade.

Dai em diante, a vida de Hashimoto se transformou em uma montanha-russa de descobertas. Desde a confiança para com a equipe médica e psicológica que prestou apoio à engenheira, até a ansiedade em relação a recepção de sua nova identificação pelos colegas, tudo foi amparado por um grupo em defesa da diversidade no ambiente de trabalho composto por funcionários.

Hashimoto passou por todo o processo de transição de gênero trabalhando normalmente. Após três meses fora da empresa para algumas cirurgias, ela retornou à empresa. “No dia em que retornei, a reação dos meus colegas foi de surpresa”, conta. “O comentário era: ‘Agora tudo faz sentido! Por que você não nos contou antes?'”, completa.

Um ano depois da transição, Hashimoto recebeu uma proposta para trabalhar em outra empresa — e trabalha nela até hoje. “Foi quando percebi que tinha conseguido deixar pra trás minhas questões de gênero e tinha de fato encontrado um lugar no mercado corporativo. Eu percebi a valorização em um mercado em crise, algo inimaginável para uma pessoa trans”, compartilha a engenheira.

A visão de dentro da empresa

JUAN_GOMEZ VIA GETTY IMAGES

Bruno Pitzer, líder do grupo LGBT da GE no Brasil, foi quem acompanhou todo o processo de transição de Fernanda. Responsável pelo grupo de apoio aos funcionários LGBTs da multinacional GE, ele conta que a empresa, nos últimos anos, tem investido em projetos de inclusão e diversidade há quase duas décadas.

No início dos anos 2000, o CEO global da empresa, Jeff Immelt, se posicionou na defesa de que ninguém, independente de gênero, raça ou religião, seria discriminado no ambiente de trabalho.

Segundo Pitzer, a partir daquele posicionamento, todos os profissionais seriam igualmente considerados para oportunidades de desenvolvimento dentro da empresa. “É o caso da Maria Fernanda”, conta.

Em texto recente publicado no Medium, a empresa afirma que seus funcionários têm um ambiente seguro para o desenvolvimento profissional, com ações de empoderamento e inclusão, mas questiona como pode contribuir com a pauta em outras companhias e setores da sociedade.

No Brasil, a companhia tem um grupo focado em recrutar, engajar, reter e desenvolver os talentos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.

O objetivo é garantir oportunidades iguais de crescimento e desenvolvimento de carreira dentro da companhia, e há mais de 400 aliados espalhados por 14 unidades da empresa dedicados ao grupo.

Este grupo de apoio no Brasil surgiu em 2003 e atualmente conta com 450 membros. Eles são responsáveis por iniciativas informativas sobre as vivências LGBTs, realizam trocas de experiências entre pessoas de outras empresas e apoiam iniciativas sociais, como o Grupo Purpurina, que acolhe jovens que foram expulsos de casa por serem gays ou trans.

Trouxemos esses jovens para dentro da empresa para eles verem que há outras oportunidades além da prostituição, inclusive no mundo corporativo.Bruno Pitzer

Maria Fernanda é a primeira funcionária trans da GE no País e Pitzer afirma que fazer parte dessa transição foi um aprendizado para a empresa.”Ela não sabia que o grupo existia. Apoiamos totalmente o processo com o auxílio médico e psicológico. Ela nos ensinou muito sobre sua vivência.”

O responsável pelo grupo de apoio chama atenção para o melhoramento da performance de Hashimoto. Segundo ele, faz parte do papel da empresa criar um local seguro para que seus funcionários possam ser eles mesmos sem qualquer medo de retaliação ou preconceito.

“Quando ela estava ‘dentro do armário’, ela não estava performando 100%. Quando ela pode ser ela mesma, ela começou a dar 120% dela para as tarefas da empresa. Todo mundo sai ganhando”, defende.

Pitzer, ainda, afirma que as empresas estão cada vez mais atentas para a diversidade em seus quadros de funcionários. De acordo com ele, isso faz parte de uma estratégia básica de competitividade: “Há grandes talentos que precisam de espaço. Se a gente não abre portas para eles, quem perde é a gente.”

Ser trans é um direito

NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

Daniela Andrade é analista de sistemas e ativista dos direitos trans. Ela trabalhou 19 anos no mercado de tecnologia de informação e diz que nunca se deparou com iniciativas realmente preocupadas com inclusão de pessoas trans em grandes empresas. Para ela, apesar dos avanços, a noção real de diversidade ainda é muito restrita.

“Hoje pode até estar na moda falar sobre direitos trans, mas esse discurso ainda é raso. Porque quando os empregadores falam da diversidade, eles pensam em homens, de classe média, que são brancos, se formaram em universidades de ponta e por acaso são gays ou trans. Às vezes não passa de um discurso para vender a empresa, enquanto o status quo é mantido”, analisa em entrevista ao HuffPost Brasil.

 

De acordo com a ativista, é preciso reconhecer as diferenças entre os grupos minoritários e compreender as discriminações e violências pelas quais essas pessoas já passaram ao longo da vida.

“O mercado é composto majoritariamente por homens brancos, que tiveram diversas oportunidades de experiências profisisonais e nunca foram discriminados. Como você pode achar que todos os outros devem alcançá-los? Como eles podem ser a régua no mercado? Como você ocupa um espaço em que você é violentada o tempo inteiro? É claro que essas pessoas vão ter mais dificuldades na competição. As pessoas trans não desistem, elas são expulsas.”

Para Andrade, a maior inclusão só será efetiva quando todos tiverem acesso à educação de qualidade. E, de acordo com ela, o Brasil tem se mostrado “a vanguarda no atraso” nesse quesito. A analista questiona a decisão do Ministério da Educação (MEC) de retirar os termos “orientação sexual” e “gênero” na última versão do documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que foi entregue no ínicio de abril.

“Ser trans é um desafio cotidiano. Você tem que se provar todos os dias, principalmente em uma área masculinizada. Em nenhum governo houve a preocupação com a população trans. Quando se retira a orientação de gênero como pauta de discussão das escolas, é o mesmo que institucionalizar que essa população não tem mesmo direito à escola. Porque se você é LGBT e vai para a escola, é certo que vai sofrer preconceito. Eles retiraram o respeito à população LGBT como um dos alicerces da educação”

De acordo com a pasta, a versão final do documento passou por ajustes que identificaram redundâncias na utilização dos termos. Mas o conteúdo “preserva e garante como pressupostos o respeito, a abertura à pluralidade, a valorização da diversidade de indivíduos e grupos sociais, identidades, contra preconceito de origem, etnia, gênero, convicção religiosa ou de qualquer natureza e a promoção dos direitos humanos”.

Para Andrade, há, sobretudo, um significado simbólico na decisão do Ministério que reforça uma visão de mundo conservadora em relação aos direitos trans.

“Eu sou privilegiada. Tive acesso à educação e ao mercado de trabalho, mas sempre ganhei menos fazendo a mesma função que homens da minha equipe. Ainda, fui sempre mais cobrada e nunca tive o direito de errar”, conta. “Quantas vezes já ouvi comentários do tipo: ‘Quem contratou esse traveco?’ Eu sempre fui a única trans. Não era a Daniela, mas era ‘a trans’. Percebe que você carrega toda a população com você? O peso do seu erro é o peso de todos. Se você não tem direito à escola, ao mercado de trabalho, é expulso da casa de seus pais, vive em um país violento, só te resta o direito de se prostituir e de ser assassinada. Se quisermos melhorar, precisamos de mudanças práticas”, conclui.

 

 

Veja publicação original: Há espaço para profissionais transexuais no mercado de trabalho?

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