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Veja publicação original. “Grama’ é uma ode à resiliência em meio ao horror da violência sexual na Coreia da 2ª Guerra.
HQ de Keum Suk Gendry-Kim conta o drama de mulheres escravizadas sexualmente pelo exército japonês entre 1937 e 1945.
Finalista do Eisner, principal prêmio dos quadrinhos no mundo, e listada entre as melhores HQs de 2019 pelos jornais norte-americano The New York Times e o inglês The Guardian, o manhwa (quadrinhos feitos na Coreia do Sul) Grama, da autora coreana Keum Suk Gendry-Kim, que chegou ao Brasil em julho de 2020 pela editora Pipoca e Nanquim, é uma dessas obras arrebatadoras. Tanto pela poesia visual dos traços marcantes de Keum Suk quanto pelo impacto das histórias horrendas de sua narradora, Ok-sun Lee.
Grama foi escrita com base em entrevistas com Ok-sun Lee, hoje uma senhora na casa dos 90 anos que sobreviveu à miséria imposta pela colonização japonesa na Coreia e aos constantes abusos físicos e mentais das “casas de conforto”. A HQ ilustra não apenas seus relatos do passado, mas também a relação entre ela e a própria autora.
O fato de entrelaçar a narrativa em dois momentos distintos, sendo um deles uma relação tão pessoal que nasceu entre Keum Suk e a “vovó”, como ela chama Ok-sun Lee, dá a Grama ainda mais dramaticidade. “Dei para ela [Ok-sun Lee] o livro autografado. Ela olhou para a capa. Ela tinha lágrimas nos olhos. Disse que seu pai costumava pentear seu cabelo daquela maneira, fazendo tranças”, conta a autora em entrevista exclusiva ao HuffPost.
Grama conta uma história de resiliência em meio ao horror. É um relato cheio de momentos muito duros, dolorosos, mas que trazem consigo também uma forte carga de ternura e esperança. Tanto que mesmo bem debilitada, a vovó Ok-sun ainda luta por um pedido formal de desculpas do governo japonês e a devida reparação financeiras para as vítimas, fazendo de Grama uma obra tão necessária quanto urgente.
Leia aqui nossa entrevista completa com Keum Suk Gendry-Kim.
HuffPost: Quando você ouviu falar das “mulheres de conforto”? Por que quis escrever uma história em quadrinhos sobre o assunto?
Keum Suk Gendry-Kim: Em 1993, fui a um festival de cinema feminino. Uma cineasta estava exibindo um documentário sobre o tema. Foi a primeira vez que ouvi falar do assunto. Trabalhei como intérprete para uma autora coreana que veio para a França em 2008 e publicou um livro sobre o assunto. Em 2012, fiz um pôster para um filme também sobre esse tema. Em 2013, recebi uma encomenda. Tinha de fazer uma pequena história em quadrinhos (O Segredo) sobre o assunto como parte de uma exposição coletiva no Festival de Angoulême, na França. Depois desse trabalho, senti que não era suficiente. Hesitei bastante e me questionei muito. Finalmente, me convenci de que não poderia fazer outros quadrinhos antes deste.
Muitos artistas trabalharam com o tema. Mas, na maioria das vezes, o foco é nos crimes cometidos pelos japoneses. Isso infelizmente provoca uma reação de ódio ao Japão e aos japoneses. Mas a questão é muito mais complexa. As vítimas não eram apenas coreanas, mas também de outros países; chinesas, indonésias, taiwanesas, e havia igualmente uma francesa, uma holandesa.
Por muito tempo as vítimas não contaram sobre o abuso para ninguém. Porque eles sentiam medo. Medo de como seriam vistas pela sociedade. Elas não só foram vítimas, mas suas famílias corriam o risco de cair no ostracismo.
Queria evocar tudo isso nos quadrinhos. Queria dar um visual mais “objetivo”. É necessário mencionar os crimes de guerra cometidos pelo Japão, claro, mas também temos de admitir que existem outros problemas internos em nossa sociedade: a questão das classes sociais. A maioria das vítimas era frequentemente muito jovem e vinha de famílias muito pobres. As mulheres coreanas muitas vezes não tinham direito a uma educação formal. Tiveram de se sacrificar em nome de suas famílias e seus maridos. Também quis levantar o problema de uma sociedade falocrática. Porque em muitos países, ainda hoje, encontramos a mesma situação.
Aqui no Brasil sabemos muito pouco sobre o que aconteceu na Ásia durante a Segunda Guerra Mundial. O que mais sabemos é sobre a guerra entre o Japão e os Estados Unidos, mas sabemos muito pouco sobre as relações do Japão com outros países asiáticos. É um choque saber dos detalhes mais terríveis da ocupação da Coreia pelos japoneses. Por que o governo coreano não é mais categórico com o Japão em relação a pedidos de desculpas e reparações oficiais para as “mulheres de conforto”?
Bem, não sou política. Portanto, seria melhor fazer essa pergunta aos integrantes do governo coreano. Mas, dito isso, é um assunto muito tenso e delicado entre nossos dois países.
Como foi seu primeiro encontro com Ok-sun Lee? Foi exatamente como descrito em Grama?
Absolutamente. Não há como mudar a verdade. Todas as informações contidas no livro são, a priori, fiéis à realidade tal como relatada nos depoimentos.
Por que você escolheu as histórias de Ok-sun Lee como base para Grama?
Não queria fazer um livro de história. Então, optei por partir das palavras dessas mulheres e construir a narrativa dessa forma. Na história de Ok-sun Lee, tratava-se de dar voz às vítimas que ficaram em silêncio por muito tempo.
Apesar de todos os abusos sofridos, Ok-sun Lee é mais afetada por seu relacionamento com sua própria família, depois de reencontrá-la muitos anos após ser entregue pelos pais ao dono do restaurante de Ulsan. Por que as vítimas das chamadas “casas de conforto” sofrem tanto preconceito em suas próprias famílias?
Nossa sociedade era profundamente confucionista, as mulheres eram relegadas a segundo plano. No caso das escravas sexuais, relações sexuais (mesmo que sob coação) fora do casamento eram consideradas uma desgraça para a família da vítima. O fato de terem sido contaminadas pelo inimigo teve graves consequências para as mulheres. Além de serem vítimas, elas eram rejeitadas pelos seus e pela sociedade; ignoradas. É por isso que algumas delas optaram por não falar.
As histórias de Ok-sun Lee são muito duras, quase insuportáveis dado o nível de crueldade a que ela foi submetida, mas sua narrativa visual é muito poética, destacando a beleza da natureza em oposição à miséria humana. A sua escolha visual teve a ver com a resiliência da grama, que também servem de comparação com as próprias “mulheres de conforto”?
Absolutamente. Frequentemente as mulheres, até mesmo as crianças, são consideradas flores. Lindas de ver, de cheirar e de usar como adereço. Mas, na verdade, essas mulheres são filhas do povo que foram maltratadas, esmagadas como ervas daninhas. Mas elas vão sobreviver. É uma metáfora, a resiliência da grama que volta a crescer mesmo quando cortada.
Certas sequências visuais mostrando as reações de Ok-sun Lee ao contar suas histórias são muito bonitas, mas extremamente dolorosas. Como foi apresentar o trabalho concluído para Ok-sun Lee? Como ela reagiu?
Na verdade, Ok-sun é uma pessoa positiva e de ótimo humor. Ela também tem um grande coração. Durante a entrevista, ela estava pensando em mim, ela se ofereceu para compartilhar seu lanche. Dei para ela o livro autografado. Ela olhou para a capa. Ela tinha lágrimas nos olhos. Disse que seu pai costumava pentear seu cabelo daquela maneira, fazendo tranças. Na dedicatória, eu a desenhei com outro estilo de tranças, que exigiam uma técnica mais complexa. Ok-sun me disse que esse tipo de penteado quem fazia era sua mãe. Foi então que me convenci de que ela havia guardado por mais de 90 anos a alma daquela criança.
No final do livro, vemos que Ok-sun Lee se tornou uma ativista pelos direitos das “mulheres de conforto”. Que tratamento o governo coreano está dando a este problema em 2020?
Recentemente, uma ativista que trabalhou por 30 anos nesta questão foi eleita para o Parlamento. Veremos como ela vai abordar essas questões perante o governo.