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Veja publicação original: Femicídio ‘em Portugal o perigo está dentro da família
Segundo o relatório, apenas 14% dos criminosos não tinham qualquer relacionamento com as vítimas e a arma de fogo e a arma branca continuam a ser os meios mais utilizados para a prática do crime. Dos dados disponíveis na altura da concretização do relatório, havia apenas a informação que 30 (menos oito que em 2015) das vítimas morreram em contexto conjugal/ relação anóloga. Destas vítimas, 13 eram mulheres e 4 eram homens. No que toca a relação familiar/dependência económica há a informação de que houve 13 vítimas, das quais sete eram mulheres e seis eram homens.
Feminicídio
A União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), em continuidade ao trabalho que desenvolve no âmbito do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA), reuniu num relatório final sobre o ano de 2016, os dados relativos ao Femicídio Consumado e Tentado ocorrido em Portugal e noticiado pela imprensa entre o primeiro dia de janeiro e o último de dezembro. Os números não diferem muito dos dados do relatório anual da Segurança Interna, mas a discrepância existente deve-se, sobretudo, como explica um inspetor da Polícia Judiciária, a alguns dados quanto à origem do crime poderem não estar atualizados, já que eram apenas reunidas informações de investigações concluídas na altura.
O femicídio consiste na concretização de um crime de homicídio voluntário baseado no ódio ao género feminino. Segundo os dados do observatório da UMAR, no ano de 2016 voltou a registar-se uma diminuição de taxa de incidência do femicídio consumado e tentado, quando comparado com o período homólogo dos últimos dois anos, contabilizando-se um total de 22 femicícios consumados e 31 tentativas de femicídio. Comparados a anos anteriores, com exceção de 2007 em que o número de crimes foi igual, 2016 foi o ano com menor número de registos em períodos homólogos.
No que ao femicídio diz respeito, a relação existente entre as mulheres assassinadas e os autores do crime é, na sua maioria, baseada em relações de intimidade presentes ou passadas, correspondendo a 64% dos casos de homicídio feminino. Das restantes, 23% foram assassinadas por descendentes, em primeiro ou segundo grau, apenas 9% foram registadas como vítimas de ‘outros familiares’.
Entre 2004 e 2016, «a tendência de maior vitimização das mulheres é às mãos daqueles com quem ainda mantinham uma relação, fosse ela de casamento, união de facto, namoro ou outro tipo de intimidade» lê-se no relatório do OMA que contabiliza 277 crimes nesta categoria, seguido pelo grupo de 101 vítimas que foram mortas pelos ex-maridos, ex-companheiros e ex-namorados.
Violência doméstica
Atendendo à suposta motivação/justificação verifica-se que a maioria dos femicídios praticados e registados pelo OMA em 2016, 41% morreram em contexto de violência doméstica. Dados que vão de encontro aos da Polícia Judiciária que ao contexto de violência doméstica somam os de relação passional que, em 2016, causaram 18 mortes. Desde 2013 o número de mortes neste contexto tem vindo a diminuir, sendo que nesse ano e em 2014 se registaram 40 mortes, e 18 mortos em 2015.
Embora os números tenham vindo a descer, a preocupação das autoridades é notória. Carlos Anjos, presidente da Comissão de Proteção às Vítimas de Crime, explica que os países na Europa onde há maior violência doméstica estão no norte, como é o caso da Finlândia. Porém, os países latinos têm uma diferença no tipo de violência dos nórdicos: enquanto no norte a violência é sobretudo de carisma psicológico, nos países latinos é mais física e produz mais mortes.
«O problema da violência doméstica é um problema de relacionamentos humanos, temos de encarar isto como um facto», explica o ex-inspetor da Polícia Judiciária que nos seus registos indica que no ano passado houve 99 homicídios, em que apenas 11 resultaram de crime cujos envolvidos não se conheciam.
Uma das preocupações de Carlos Anjos é a de que nestes casos a autoridade policial tem um papel pouco ativo na prevenção. «Somos um país extremamente machista e, no que diz respeito à mulher, existe uma carga social muito grave, uma equação machista». Como exemplo conta que foi há pouco tempo a um casamento em que ouviu uma leitura bíblica que induzia a mulher como um ser inferior ao homem. «Quando alguém lê uma coisa daquelas num casamento, quando se assina um contrato em que a base é esta, quando temos uma sociedade educada, isto é gravíssimo» comenta explicando que o problema é ainda mais profundo já que «curiosamente, em Portugal, grande parte da educação ainda é dada pelas mulheres – porque o homem teve sempre o direito de chegar do trabalho e ligar o modo dolce fare niente, sentado no sofá a ler o jornal. As próprias mulheres educam a sociedade machista, o problema é muito mais profundo do que se pensa, a violência doméstica não se combate só na Polícia, é um problema social que vem da educação», completa.
Para Carlos Anjos o contexto Judaico Cristão é um dos maiores problemas de um país em que ainda assume a mulher como inferior ao homem. Refere-se a passagens bíblicas como a do Coríntios, (14:34-35]) em que se lê: «Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembleias: não lhes é permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. Se querem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa aos seus maridos, porque é inconveniente para uma mulher falar na assembleia». Elisabete Brasil, da UMAR, considera também que a prevenção passa pela educação de valores de igualdade. «A prevenção que tem sido levada a cabo é essencialmente secundária e terciária. Ou seja, apoiamos vítimas e intervimos na pós vitimação», explica, completando «O desafio coloca-se ao nível da prevenção primária: como alterar comportamentos e atitudes por forma a pôr fim à legitimação da violência, em particular contra as mulheres, como desnaturalizar a violência, como educar para a igualdade entre homens e mulheres, para a não violência ou seja, pelo respeito pelos direitos humanos de todas/os. Este é o grande investimento que nos falta e o único capaz de alterar o status quo. Informação e sensibilização ainda que importantes não são suficientes para a mudança, ainda necessária».